Pintando a psicologia de jenipapo e urucum

Casa Leiria SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM NARRATIVAS DE INDÍGENAS PSICÓLOGOS(AS) DO BRASIL Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) –ABIPSI (Organizadora) i

A Psicologia historicamente tem sido construída enquanto ciência e profissão de acordo com um modelo da sociedade ocidental. Suas práticas, por diferentes conjunturas chegou nas comunidades indígenas de diversos povos do Brasil. Contudo, chegou como uma ciência branca, colonizadora, etnocêntrica e por vezes, racista. Trazendo um discurso de explicar para os indígenas o que é saúde mental e pensando políticas públicas, por vezes, sem considerar os códigos culturais indígenas - negligenciando o próprio sistema de cuidado e cosmologia que os indígenas dispõem para enfrentar as fragilidades psicossociais que sofrem desde a Invasão do Brasil. Como a história é dinâmica, e por isso, nada está pronto ou totalmente acabado… um certo dia, um grupo de indígenas psicólogos e psicólogas resolveram romper com o silêncio da dominação e ocupar o seu lugar de fala (legítimo). Vislumbrando construir uma Psicologia Pensada por e para os parentes, ou seja, almejando uma ciência plural capaz de acolher as diversidades e singularidades dos povos indígenas. continua na aba da contracapa...

PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM NARRATIVAS DE INDÍGENAS PSICÓLOGOS(AS) DO BRASIL SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5

OBSERVATÓRIO NACIONAL DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL LUCIANO MENDES DE ALMEIDA – OLMA Provincial da Província dos Jesuitas do Brasil Pe. Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuitas do Brasil e Diretor do OLMA Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) - ABIPSI Coordenação/Diretoria Edilaise (Nita Tuxá) Vice-coordenador Edinaldo Xucuru Conselheiras Vanessa Terena Thaynara Xerente

Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) – ABIPSI (Organizadora) PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM NARRATIVAS DE INDÍGENAS PSICÓLOGOS(AS) DO BRASIL SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 Casa Leiria São Leopoldo/RS 2022

SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL.5 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM: NARRATIVAS DE INDÍGENAS PSICÓLOGOS(AS) DO BRASIL Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) – ABIPSI (org.) Arte da capa e da contracapa: Yacunã Tuxá. Edição: Casa Leiria. Os textos e imagens são de responsabilidade dos autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 P659 Pintando a psicologia de jenipapo e urucum : narrativas de indígenas psicólogos(as) no Brasil [recurso eletrônico] / organização Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) (ABIPSI). – São Leopoldo: Casa Leiria, 2022. (Série Saberes Tradicionais, v. 5) Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ olma/pintandoapsicologia/index.html > ISBN 978-65-89503-92-7 1. Antropologia – Povos indígenas – Psicologia. 2. Psicologia – Povos indígenas – Brasil. 3. Indígenas psicólogos – Brasil. I. Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) (Org.). II. Série. CDU 39: 159.9

7 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM SUMÁRIO 9 APRESENTAÇÃO Edinaldo dos Santos Rodrigues 11 PREFÁCIO Luiz Felipe B. Lacerda 13 TERRITORIALIDADE E SUBJETIVIDADE: UM CAMINHO DE RETOMADA DO SER Itaynara Tuxá 22 O PROTAGONISMO FEMININO TEMBÉ/TENETEHAR Miriam Tembé 43 CONTEXTO FÍSICO E SOCIOCULTURAL “TEMBÉTENETEHAR” NAAMAZÔNIA BRASILEIRA Miriam Dantas de Almeida 67 TRAJETÓRIA DOS ALUNOS INDÍGENAS TIKUNAS Ezequiel Tikuna 79 O “SOM” QUE DIZ QUEM EU SOU... Vanessa Terena 87 DE ONDE FALO, PORQUÊ FALO, O QUE QUERO FALAR... Edilaise (Nita Tuxá) 107 AS NARRATIVAS QUE ENTRELAÇAM AATUAÇÃO DE PSICÓLOGOS NOS DSEIS DE RORAIMA Edilaise (Nita Tuxá) 125 O PROCESSO DE LUTO DOS POVOS INDÍGENAS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19 Iterniza Macuxi

8 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 139 RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA PSICÓLOGA RECÉM-FORMADAATUANDO NA SECRETÁRIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA Dayane Teixeira Almeida 145 SAÚDE INDÍGENA E SABERES TRADICIONAIS: INTERFACES DE UM CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NUM TERRITÓRIO INDÍGENA DE PERNAMBUCO Edinaldo Xukuru 180 EU SOU TERENA... Vanessa Terena 181 UMA PURUTUYA OLHOU PARA MIM... Vanessa Terena 182 A MINHA PSICOLOGIA Nita Tuxá 183 INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES 187 RELAÇÃO DOS COMPONENTES DAARTICULAÇÃO BRASILEIRA DOS(AS) INDÍGENAS PSICÓLOGOS(AS) – ABIPSI 188 MAPA DO BRASIL COM REPRESENTATIVIDADE DE INDÍGENAS PSICÓLOGOS(AS) DAABIPSI

9 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM APRESENTAÇÃO Edinaldo dos Santos Rodrigues A Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) – ABIPSI é fruto da articulação e do diálogo de parentes indígenas graduados em psicologia pertencentes a diversos povos de regiões distintas Brasil afora. Ainda que a psicologia tenha história e lugar consolidado no país, tendo sido regulamentada há sessenta anos, só no início dos anos 2000 tivemos os primeiros relatos de indígenas estudantes de psicologia. Perdidos na imensidão do campo Psi e sem espaço para atuar nesse lugar, vêm as angústias: como atuar e o que fazer nos contextos indígenas? O que estudar? O que escrever sobre psicologia e povos indígenas? Atualmente, mesmo com indígenas com mais de uma década de atuação, ainda não é possível definir com exatidão o lugar das psicólogas e dos psicólogos nas diferentes e imensas problemáticas e questões indígenas. Para nós, indígenas psicólogos imbuídos nos processos de aprendizagem de uma ciência europeizada, descolonizar e abrir espaço para a interculturalidade multiétnica brasileira é essencial. Quanto aos psicólogos indígenas/indigenistas, cabe a responsabilidade de participar e colaborar com os movimentos da psicologia no sentido de reconhecer e incluir as diversidades étnicas brasileiras. Portanto, este espaço de coletivos indígenas psicólogos está se iniciando e terá um longo e desafiador caminho para promover uma Psicologia pintada de jenipapo e urucum, neste ano em que a psicologia no Brasil está comemorando sessenta anos de regulamentação como ciência e profissão. Ainda que em muitos momentos a psicologia tenha tecido um fazer etnocida, reconhecemos que são décadas construindo e acumulando saberes e práticas sobre a diversidade brasileira, inclusão de novos grupos e em defesa dos direitos humanos.

10 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 Os campos e as formas de atuação da psicologia não são rígidos e estáticos. As transformações sociais, políticas, étnicas e o grito de grupos que por muito tempo foram excluídos e silenciados na sociedade exigem que a psicologia se coloque de forma crítica potencializando as diversas formas de existência e os processos de mudanças socioculturais. Outra questão importante que fomenta o nascimento da ABIPSI é a ausência de referências representativas sobre os povos nativos. É um equívoco pensar que a psicologia se materializa baseada apenas em seus pensadores clássicos. Todo e qualquer conhecimento está circunscrito ao contexto social e ao momento histórico em que foi produzido, trazendo novos conteúdos, produções e se reinventando dialeticamente. Nós assumimos o compromisso com uma psicologia decolonial, comprometida com a ética e a verdade, nos aproximando da sociedade brasileira excluída dos quais nós povos indígenas fazemos parte. Não podemos ser coniventes com uma psicologia excludente e preconceituosa que corrobora com os ideais fascistas. Para nós indígenas que buscamos esta formação, fomos fascinados pela psicologia porque enxergamos nela um lugar de acolhimento e de inclusão. Acolhimento de processos coloniais que marcam histórias, identidades e almas indígenas. São 522 anos de opressão aos povos indígenas ao mesmo tempo resistências, mesmo tendo que conviver com sequelas que doem, que matam, que adoecem e que se perpetua com muita força na atualidade. Os jogos de forças políticas e econômicas da sociedade brasileira, continuam produzindo injustiças e sofrimento. Percebe-se ainda forças que alimentam a alienação e o descompromisso da sociedade em geral, manipulando informação e as apresentando em canais de comunicação de largo alcance, produzindo desinformação sobre os povos indígenas e anestesiando corpos e mentes para o confronto. Diante destes contextos, a ABIPSI assume, através da psicologia, o compromisso social com a saúde mental e com a emancipação de povos e nações indígenas. Tomamos o fermento do desejo de nos colocarmos nos espaços de gestão e da promoção da psicologia junto a povos e comunidades indígenas, mas nos colocamos também no meio do debate para que esta ciência não neutralize a ciência tradicional, o saber dos povos, como outras profissões fazem no passado. Edinaldo dos Santos Rodrigues

11 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM PREFÁCIO Luiz Felipe B. Lacerda1 Há séculos a ciência estrutura-se sob a égide metodológica de transformar o que é vivo em objeto, a psicologia, em muitos casos, não ficou fora desta normativa. Mas esse tempo acabou! Não há mais espaço para a Razão Indolente, ausente de uma crítica a si mesma e que, guiada por um empirismo míope, não consegue produzir respostas eficientes para a diversidade do mundo e os fenômenos que o constituem. A ciência colonizadora, que embranquece e formata o que é pulsante dentro de suas linhas previamente esquadrinhadas, caiu por terra. Neste contexto, uma psicologia que compreende os processos de subjetivação exclusivamente a partir de modelos preestabelecidos triangularmente fechados em si mesmos, universais e eurocentralizados também se mostra insuficiente. É necessária a autoanálise de que, ela mesmo – a psicologia, guiada por esses moldes, foi e é utilizada, historicamente enquanto ferramenta para produção de múltiplas invisibilidades, silenciamentos e violências contra a diversidade constitutiva da subjetividade humana. Contra isto é necessário trazer mais cores, mais rostos, mais vozes para dentro da psicologia. É justamente a esta rotação paradigmática que se propõe a Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) – ABIPSI, promovendo uma psicologia pintada de jenipapo e urucum. Neste caso, descolonizar a psicologia significa encharcá-la de interculturalidade multiétnica, dotá-la de tamanha diversidade a ponto de que qualquer compreensão sobre subjetividade possa ser construída a partir de referenciais próprios de cada pessoa, coletivo, território ou povo. Significa alargar a compressão do ser humano a cosmologias secularmente colocadas à margem na construção dos saberes. 1 Secretário Executivo – OLMA, Coordenador Cátedra Laudato Si’ – UNICAP, Psicólogo, Doutor em Ciências Sociais, Membro Especialista da Plataforma Harmonia com a Natureza – ONU.

12 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 Esta psicologia com jenipapo e urucum nos convida a transcender os limites da individualidade, compreendendo a constituição de cada ser vinculada a um universo coletivo. Aqui a subjetividade humana não pode ser compreendida alijada da perspectiva territorial e cultural; e o que é concreto e visível transcende ao espiritual amparado em uma ancestralidade que guia e oferta sentido à história, ao presente e ao futuro. Nesta esteira rompe-se também com a linearidade hegemônica da academia e compreende-se a força da circularidade que, em forma de tempo, flui como espiral atualizando o passado sempre de forma manifesta no presente e como ferramenta estratégica de ação no futuro. São cartografias de luta e resistência frente a uma cultura hegemonicamente predatória. Não há, neste caso, saúde e bem-estar deslocados da compreensão de território, espiritualidade e ancestralidade. Seus sistemas de autocuidado e atenção psicossocial são milenares e sustentam-se por uma relação coletiva, harmônica e recíproca com tudo o que é vivo, humano ou não humano. Um psicologia com jenipapo e urucum, portanto, que nos oferta saídas efetivas e afetivas para a angústia do antropoceno, sua falta de sentido, seu materialismo narcísico, sua desconexão com a potência de vida. Estamos frente a uma inovação sem precedentes na psicologia e nas ciências em geral; aprendendo com estes psicólogos e estas psicólogas indígenas que podemos voltar a construir compreensões muito mais holísticas e saudáveis do ser humano e dos fenômenos que o constituem. Neste livro o leitor e a leitora encontrarão casos, relatos, vivências, cartografias que comprovam estes preceitos. Ednaldo Rodrigues, Itaynara Tuxá, Miriam Tembé, Ezequiel Tikuna, Vanessa Terena, Nita Tuxá, Iterniza Macuxi, Dayane Almeida e Edinaldo Xukuru, nos brindam com trajetórias de resistências apoiadas em ancestralidades, culturas e territórios que reclamam pela visibilidade de suas identidades individuais e coletivas, que exigem o respeito ao direto de Serem e Existirem à sua maneira, que advogam por uma psicologia integral. Uma psicologia com cor, com rosto, com identidade, uma psicologia plural, viva e coletiva, que luta, resiste e transcende, uma psicologia de jenipapo e urucum. Saudações interculturais, Boa Leitura!

13 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM TERRITORIALIDADE E SUBJETIVIDADE: UM CAMINHO DE RETOMADA DO SER Itaynara Tuxá “Eu ando nas terras alheia procurando a minha ciência, meu caboco índio rêa, reina, reina, reôa reâ” (Canto Tuxá) Os processos identitários e os aspectos culturais dos povos indígenas perpassam por essa noção e concepção da mãe-terra elencado não a um lugar de exploração dos recursos naturais e produções econômicas, mas de um entendimento e reverenciamento ao sagrado. Compreender o conceito de territorialidade dentro da perspectiva indígena torna-se fundamental para o entendimento dos desdobramentos a partir das demandas produzidas e criadas diante das dificuldades e lutas travadas a garantia das populações indígenas a terem seus territórios devidamente reconhecidos e demarcados pelo Estado, assim como consta na Constituição de 1988, que são parâmetros da sociedade envolvente, pois temos uma relação com esse território há mais de oito mil anos e nunca precisamos utilizar cercas, documentos para definir essa relação, pois compreendemos que não possuímos o domínio sobre o mesmo, possuímos o respeito...

14 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 Figura 1: Pajé da Aldeia-Mãe Tuxá, Seu Ormando Apako Fonte: Ayrumã Tuxá. A definição geral encontrada para território se reporta a uma grande extensão de terra, porém nos últimos anos as definições para essa categoria se aproximam mais das produções sociais, subjetivas, política, econômica e histórica dessa relação. Em um sentido mais profundo pode ser concebido como pertencimento e identificação, Medeiros (2009) reporta como vivencias significativas na formação e constituição de uma identidade social (coletiva). Portanto, a territorialidade produz a consciência daquilo que me constitui enquanto sujeito social formadora dos processos subjetivos. Nessa perspectiva encontramos elementos fundamentais para a manutenção da nossa cultura. Os elementos culturais produzidos a partir dessa relação entre a terra e o sujeito podem ser potencializados ao nível coletivo. As explicações, teorizações, histórias criadas a partir daquela realidade local é atravessada no tempo e intergeracional, assim como os costumes, produções de artesanato, conhecimento tradicional, práticas de cuidados, ritos e rituais, relação com o sagrado, conexão ancestral, entre tantas outras possibilidades, cria uma ligação mais profunda, entre os aspectos afetivos com o território e de significação e reconhecimento de uma identidade que é individual, porém abarcada por esse sentido de comunidade/ancestralidade e toda complexidade que compõe. Deste modo, podemos considerar que para os povos indígenas a terra simboliza a vida, bem viver, projeto de vida e o seu contrário seria a impossibilidade de se ter perspectiva, saúde e qualidade de vida. Os territórios seriam um mecanismo de promoção de saúde e a falta deles produziria uma serie de vulnerabilidades e mazelas para a população, o sentido da terra está intimamente ligado ao sentido do

15 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM eu. Pensando nesse conceito atribuído a essa última afirmação vemos uma simbiose ou fusão dessa relação: o território como extensão do corpo. A formação do sujeito, da psique humana perpassa também o campo das experiências, construção que o sujeito estabelece com o eu/território. Para um desenvolvimento saudável a relação com esse espaço precisa ser uma cadeia integrada, holística e harmônica, a desproporção, o desequilíbrio ocasionariam um desenvolvimento insatisfatório e ruim, pois os processos subjetivos determinam as demandas psicológicas e, pensando nos povos indígenas, o contexto em que estão inseridos influencia diretamente nessas questões. O corpo-território é atravessado por uma história, memória coletiva, território ancestral, por processos que formam enquanto subjetividade, sujeitos sociais, consciência coletiva e a ordem desse sofrimento não deve ser consideradas demandas individuais, seria muito perigoso essa aproximação porque impossibilitaria enxergar o território dentro de suas próprias complexidades e tornaria difíceis resoluções, o sofrimento é político, histórico e social. Rivera (2010) trabalha com o conceito de memória larga ou funda que traz a compreensão dos sujeitos resultantes de seus processos históricos e nos faz pensar em Freud quando ele fala de um inconsciente, que tem profundezas, recalques, origens obscuras, não reveladas e que se fazem presentes em nosso ser, regendo comportamentos que muitas vezes não nos vêm à consciência, tem um outro conceito que o autor trabalhou chamado de arqueólogo da psique, armazenamentos de experiências. Segundo o pensamento de Marx, ele nos diz de certos padrões repetidos que nos fazem questionar a casualidade ou intencionalidade das situações, ele diz “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” e essa farsa é continua, vindo de um longo e antigo período de ataques à cultura, disputas territoriais, esbulhos, sangraria, desde a ameríndia se estende aos dias atuais acarretando vários problemas e produzindo uma série de vulnerabilidades e adoecimento da população. Essas vulnerabilidades são resultantes de projetos societários desenvolvimentistas, que colocam grandes empreendimentos dentro das áreas indígenas e acabam contribuindo para as violências nessas localidades. Os empreendimentos são conveniados aos interesses do Estado que fica imparcial diante dos conflitos e, dependendo da

16 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 conjuntura política, o próprio Estado democrático de direito é o que mais atinge e produz mazelas para a nossa população, utilizando-se da necropolítica e seletividade para ditar as formas e condições de vida dos povos originários. Adaptando uma fala de Darcy Ribeiro eu definiria que a crise em que os povos indígenas enfrentam não é uma crise, mas um projeto! Projeto esse que serve a lógica do capital, da elite econômica dirigente, do jogo político que se beneficia das produções e explorações dos nossos territórios (garimpo, boiada, madeira ilegal, mineração, hotelaria, grilagem, agrotóxico, hidrelétrica etc.), a autora Bento (2002) trabalha com o conceito de pacto narcísico da branquitude enquanto pacto simbólico, mas, que produz a legitimação das políticas racistas que desresponsabilizam os autores de suas ações. Figura 2: Pintura Pataxó na aldeia Caramuru em Pau Brasil. Fonte: arquivo pessoal. Apesar da consistência de ataques e conluio contra as populações indígenas, vemos um movimento de forças contrárias que desafia a ordem, luta, resiste e se impõe através da luta organizada, fortalecimento dos vínculos e ações pensando no território, busca da sabedora ancestral, politizando as causas, ocupando os mais diversos espaços, visibilizando a luta, articulação com outros segmentos da sociedade, formação de alianças, utilizando-se da socioeducação como ferramenta e estratégia de subversão dos pensamentos que nos tutelam, falam e tomam decisões por nós, rompendo assim com práticas que não nos favorece ou potencializa, ao contrário, retira a nossa autonomia. As práticas racistas para se autopromoverem precisam criar conceitos sociais relacionados ao que é entendido no imaginário coletivo por “índio” para legitimarem seus atos, são as construções de

17 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM discursos que nos colocam em um tempo distante e fora de contexto, em uma posição mitológica e selvagem, nos retira a humanidade (alma) e nos aproxima a animalidade (irracionalidade), por tanto, não nos reconhecendo como semelhantes, produzindo assim um desafeto, uma desumanização, não sensibilização a esses corpos e trazendo um negacionismo, estranhamento a essas identidades. O que entendemos é que o período colonial acabou, mas pouco refletimos sobre as suas práticas colonizatórias que ainda perdurarem em nossos corpos, pensamentos e comportamentos, são os chamados determinantes históricos ou estrutura histórica. A colonialidade se sustenta na segregação e dominação do poder, entre a dualidade antagônica, na supressão de corpos e saberes, na desvalorização de uma cultura para a valorização de outra, na criação de posições sociais, onde o tirano cria uma realidade favorecida, cria suas minorias, as condições sociais, produz os fenômenos, as intersecções para se diferenciar, segregar. O autor Castro (1980) retrata a fome como resultante de práticas coloniais, para os países serem reconhecidos como desenvolvidos, precisa-se ter países subdesenvolvidos e o que determina essa relação é o jogo antagônico/dependência com outra estrutura. A colonialidade precisa da padronização, pois tem uma repulsa neurótica pelo que lhe é diferente, precisa da exclusão para não ter a aproximação, precisa das forças que sustentam a estrutura para silenciar, apagar esses sujeitos de todas as formas, todos os contextos, pois se começarmos a identificar esses modos de produção e confrontar ameaçamos a sua posição de poder, por isso utiliza-se da violência para se autoafirmar, perseguir, deslegitimar, desqualificar, excluir, tripudiar, aniquilar, matar, extinguir aquilo que atormenta e põe em dúvida a identidade, o poder, a farsa da mentira narcísica, a mentira que privilegia o padrão da branquitude. Precisamos ser intolerantes com as diversas formas de produções de violências e esse enfrentamento precisa ser introduzido nos nossos fazeres e saberes, nos nossos posicionamentos, ações cotidianas, pautadas levantadas, referências buscadas. A escrita é um importante mecanismo de transformação das realidades, nos possibilita captar os traços mais sutis e profundos das subjetivadas e, apesar de ser singular, traz reverberações e construtos coletivos, a subjetivação dos processos mal elaborados e que precisam

18 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 ser tomados e superados socialmente para não serem condenados a repetições. Dentro desses parâmetros encontramos barreiras nas narrativas, pois existe uma luta pelo domínio do saber e por mais espaços democráticos que as instituições promovam, ainda assim, precisa-se passar pela aprovação, legitimação dos discursos dominantes. A academia enquanto instituição e função social traz as estilhas coloniais e invisibiliza muitas pautas importantes que deveriam estar na base e nos projetos curriculares, e não como missão dos alunos buscarem essas faltas, essas referências. O modelo intelectual que predomina e embasa o teórico-científico é muito pautado nas indicações importadas, nas visões eurocêntricas e hegemônicas, o que acaba produzindo uma desqualificação ou descrédito e invisibilização das produções e construtos de referências de autores da casa, outros novos modelos mais próximos das temáticas, condições e problemáticas nacionais. Para os povos indígenas, as temáticas que vêm se engendrando e mais aparecendo são relacionadas a agendas climáticas, a discussões dos territórios e ao projeto bem-viver e, atualmente, aos impactos da pandemia nas condições de saúde da população. Trazendo o enfoque para a minha área de formação e atuação que é a Psicologia, tem se questionado o distanciamento dessa ciência diante dos nossos territórios, do sofrimento psicossocial das nossas populações, ao mesmo tempo em que se traça aproximações, caminhos novos possíveis e diálogos. A psicologia quando surge no Brasil, nasce no berço do capital cultural elitista, suas práticas e teorias reducionistas, classicista, excludente, ainda voltada para o contexto clínico biomédico. Considerada uma ciência nova, ao longo dos anos foi se adaptando e se introduzindo em contextos antes não pensados, repensando a partir das demandas produzidas suas práticas de atuações, se aproximando de realidades diversas, compreendendo suas limitações e reconhecendo que precisa partir do princípio da diversidade para alcançar a multiplicidade do ser humano em seus contextos, produtores históricos, enraizamentos e crenças, nas intersubjetividades e especificidades que lhes surgirão. E quando eu trago que a ciência mudou, quero pontuar que são os sujeitos do seu tempo que produzem e fazem essas atuações, construções e articulações e dentro dessa complexidade do ser humano e da multiplicidade da Psicologia é importante puxarmos eixos específicos para nos sentirmos referenciados/representados não de uma forma genérica

19 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM ou segregacionista, mas própria e continuada. Nesse sentido, a partir dessas lacunas que vamos identificando ao longo das nossas vidas e na academia não seria diferente. Buscamos a partir dessa nossa falta de representação, contemplação na formação e profissão uma força de união coletiva que anseia e conjectura uma Psicologia pintada de jenipapo e urucum, que transcenda os muros, limites culturais e instrumentalize as suas teorias e práticas, estas não devem se desvincular das ciências humanas, dos saberes populares e chamados sociais. Portanto, pensar a relação entre a psicologia e povos indígenas é dar um passo a mais na história, rompendo com a continuidade da dominação que produz o sofrimento psicossocial desses sujeitos. Figura 3: visita técnica ao polo de Porto Seguro na aldeia Coroa Vermelha. Fonte: arquivo pessoal. A relação de rompimento com esses modelos violentos se dá na instância de libertação dos pensamentos, na articulação e fortalecimento dos engajamentos e superação coletiva, na capacidade de fazer leituras sob as próprias condições em que se encontram, iden-

20 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 tificando e nomeando assim os fatores e forças que caminham contrários ao desenvolvimento de comunhão e, dentro dessa linguagem, a escrita se torna potente não somente pelo seu alcance, mas pelos determinantes que se impregnam, apesar de ter ciência que este mecanismo é de disputa de poder e controle, podendo ser muitas vezes excludentes e omissos e esses recursos de inviabilizações são intencionais, nesse sentido evidenciar outras formas de saberes se torna urgente para evidenciar também, outras soluções possíveis, outras realidades. Foi através da escrita que nos mataram (epistemicídio, subjeticídio) e será através dela que nos reergueremos nos registros da história, deixando um legado que nunca passará, pois independente do tempo seremos sujeitos (indígenas) atentos ao chamado (chamado ancestral), que nos movimenta, orienta e instrumentaliza os nossos corpos, as nossas lutas e essa é a nossa condição/missão. Para nós, detentores das travessias humanas e suas experiências fica a incumbência de destacar essas novas construções e narrativas favorecendo a autonomia e libertação desses corpos, potencializando seus discursos e fazendo da Psicologia uma ferramenta política de transformação e uma ciência e profissão que valida as várias nuances do existir, mais do que um posicionamento ético, sobretudo humano. O nosso fazer psicológico é atravessado pelas identidades que nos constroem. Figura 4: atuação profissional como Psicóloga de Saúde Indígena. Fonte: arquivo pessoal. Sou tuxá nação proká pragagá do arco flecha e Maracá malacutinga tuá Deus do ar, abençoada por Kupadzuá, filha das matas, das forças dos mais velhos, dos encantos da jurema e como bem define Itayná Ranny “eu nasci no berço dos encantados com a mãe d’água cantando pra mim”. Sigamos na luta!

21 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM REFERENCIAS BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. 185 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. CASTRO, José de. Geografia da fome: O dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares e Achiamé, 1980. MEDEIROS, Rosa Maria Vieira. Território, espaço de identidade. In: SAQUET, Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério (org.). Território e territorialidades: teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa. Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.

22 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 O PROTAGONISMO FEMININO TEMBÉ/TENETEHAR1 Miriam Tembé 1 Introdução O presente artigo tem como objetivo demonstrar o protagonismo feminino dos Tembé, na Aldeia Sede no município de Santa Luzia do Pará, localizada no território Indígena do Alto Rio Guamá, (TIARG), bem como evidenciar a força das mulheres, seus costumes e crenças. Essa etnia vem, através dos tempos, buscando um fortalecimento cultural, preservando as tradições familiares, pois a cultura Tenetehar, presente nas comunidades Tembé, tem sido mantida principalmente pela manutenção do idioma tenetehar, que os anciões têm repassado aos jovens, adolescentes e crianças. Na cultura Tembé, todos na aldeia são incentivados a conhecer e participar dos rituais que são apresentados durante as comemorações e aprender de maneira simples e agradável (CUNHA; ALMEIDA, 2009). Essa população tem a sua própria organização religiosa, política, econômica, social e cultural, tem como referencial a sua relação com a natureza, meios diversos de utilização dos recursos naturais de acordo com o território no qual está localizada. Os primeiros contatos com a população indígenas, depois que meu pai faleceu aconteceu em 2006, em Tomé-Açú, Pará. Com a liderança da Aldeia Acará Mirim no polo, em Quatro Bocas, de onde vieram os ancestrais da pesquisadora, em seguida foi desenvolvido um trabalho voluntário em psicologia na Casa de Saúde do Índio 1 Trabalho apresentado à disciplina Teoria em Psicologia Saúde e Sociedade.

23 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM (CASAI), em Belém. Posteriormente, no período de 2012 a 2013, foi realizado um trabalho pela Secretaria Especial de Saúde do Índio (SESAI), como psicóloga no qual aumentou a inquietação de escrever sobre o cotidiano das famílias da etnia Tembé, na Amazônia, usando como base na vivência com esses indígenas para demonstrar um pouco da sua cultura. Trabalhar a etnia Tembé é buscar compreender a individualidade cultural desses indígenas que têm na tradição a riqueza de seus conhecimentos, sobretudo a ética perpassa a compreensão de que o indígena vive um processo de transformação (WAGLEY; GALVÃO, 1991) que, não necessariamente, implica em descaracterização de suas tradições. Todavia a ideia do isolamento social já não parece mais viável e há a necessidade de transformar as relações de domínio e imposição de uma cultura sobre a outra para uma relação efetivamente de trocas de saberes e respeito mútuo. Sociedades indígenas têm enfatizado a importância dos determinantes socioculturais relacionados aos agravos como, por exemplo, a falta condições de subsistência econômica das famílias, a escassez de suprimento, a falta de condições para a reprodução dos modos de vida saudável próprio das diferentes comunidades, como as comunidades desejam viver. Dessa forma, com vistas a contribuir para o estudo sobre o fortalecimento do protagonismo feminino, preservação da história e cultura dessa etnia que utiliza a tradição oral como principal meio de transmissão dos saberes tradicionais é que se tomou a decisão de se realizar este estudo. Ressalta-se que a autora desta pesquisa já havia convivido com essa etnia como psicóloga realizando um trabalho de promoção de saúde e prevenção de doenças por trinta dias, em novembro de 2013. A vida do Tenetehar-Tembé é marcada por fases bem definidas dentro de seu próprio universo, pois a comunidade Tembé da Aldeia Sede se originou de apenas uma família, a partir da qual, consecutivamente, os casamentos aconteceram entre parentes, por isso a família é extensa e o cruzamento entre parentes é comum, uma vez que a relação de parentesco desse grupo Tupi é patrilinear (COELHO, 2015a). Contudo, a estrutura familiar pode ser decisiva na formação da personalidade de seus integrantes a partir dos relacionamentos individuais estabelecidos (ZANNONI, 1999) na medi-

24 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 da em que norteia, por cerimônias próprias, a inserção do indivíduo na sociedade desde o seu nascimento. Pouco se encontra na literatura sobre o protagonismo feminino indígena Tembé, observa-se pouco interesse da psicologia pela temática indígena (VITALE; GRUBITS, 2009). Desse modo, nota-se a necessidade de abordagem desse tema no contexto acadêmico, com o intuito de dar a conhecer esse protagonismo feminino Tembé-Tenetehar. 2 Metodologia O estudo desenvolveu-se a partir do método de observação participante segundo Santos (2005) que retrata sobre as metodologias participativas, realizadas no período de 20 de janeiro a 5 de junho de 2017. Constituindo-se em três etapas, sete dias em janeiro, sete dias em abril e sete dias em junho, contabilizando o total de 21 dias de convivência com as famílias da Aldeia Sede, localizada em Santa Luzia do Pará, entre os municípios de Capitão Poço e Garrafão do Norte. Dessa forma, apresentar-se-ão alguns dados coletados por meio desse contato com os indígenas tanto do alto rio Guamá como os do Gurupi. Durante a pesquisa foram entrevistadas: lideranças indígenas mulheres, professoras e mulheres da Aldeia, a entrevista foi semiestruturada. Ainda foi feito um levantamento bibliográfico sobre o assunto, bem como o diário de campo. A partir dos relatos sobre o protagonismo feminino indígena, relação familiar, organização social e cultural dos Tembé. Após esse processo, foi construído o artigo Metodologias participativas: caminhos para o fortalecimento de espaços públicos socioambientais de Ailton Dias Santos (2005). 3 Resultados A partir da observação realizada foram identificados alguns aspectos relevantes da cultura Tembé que serão relatados a seguir.

25 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM Para descrever o protagonismo feminino, a luta dessas mulheres por reconhecimento, o ambiente e vivência dos Tembé-Tenetehar, primeiramente se faz necessário conhecer as mais relevantes características socioculturais e ambientais dessa etnia para, assim, se fazer possível a contextualização com as atividades realizadas no referido local de estudo, com as lideranças indígenas, pertencentes a essa etnia. 3.1 Povo Tembé: aspectos culturais e sociais As ciências sociais e humanas buscam, continuamente, abranger o universo humano em suas pesquisas. Contudo, elementos essenciais das culturas indígenas na enormidade desse planeta ainda não foram abordados. Em vista dessa realidade, o presente artigo busca conhecer um relevante aspecto sobre o protagonismo feminino indígena Tembé na amazônica, no que compete a esse assunto. Tembé é escrito no singular e não no plural, pois Tembé é uma etnia que vive em vários lugares da Amazônia legal. Para tanto, buscar-se- -á contextualizar o elemento de estudo e, num segundo momento, se desenvolverá apreciação objeto desse artigo. Os Tembé são povos indígenas que vivem às margens do Alto Rio Guamá, Gurupi e seus afluentes e também são encontrados no interior do Pará, mais precisamente em Santa Luzia do Pará, Tomé-Açú, Paragominas, Acará e Santa Maria do Pará. Porém, esse estudo foi realizado com as comunidades dos Tembé do Alto Rio Guamá e do Gurupi. Essas etnias vivem nas proximidades dos rios, igarapés e florestas, de onde os retiram parte de seu sustento. A caça e a pesca são a base da alimentação indígena, assim como o cultivo de milho, mandioca, batata e outras raízes comestíveis. Eles dividem a colheita com os idosos que não têm mais condições de realizar tarefas árduas, desse modo, as famílias vivem em comum acordo. Esses indígenas são caracterizados por seu jeito diferente de falar o idioma tenetehara e por seu território, indianidade e “saúde diferenciada” (PONTE, 2014, p. 28). Existe um formato de comunidade para cada etnia de acordo com sua cultura e, geralmente, todos seguem o modelo sem questionar ou sem querer mudar as regras que lhes são apresentadas. A maioria das descrições do ciclo de vida familiar típico, incluindo as

26 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 dos não indígenas, varia de acordo com a “etnicidade e da religião em todos os aspectos” (CARTES; GOLDRIK, 1982, p. 26). O modelo de família vista como tradicional, o pai, a mãe e filhos, é visto como primordial entre os indígenas. Todavia, diferencia-se conforme o local que eles ocupam, não tendo um modelo único para todas as etnias, pois os povos indígenas têm diversificado o modelo de procedência, embora, talvez, se ignore a diversidade de comportamento com que eles se relacionam e vivem no círculo familiar. Entretanto, o modelo de família tradicional é o mais comum entre as etnias, inclusive a Tembé, nas quais, pai, mãe e filhos convivem em harmonia em ocas, e levam uma vida normal entre parentes. Dessa forma, a comunidade pode ser direcionada pelas lideranças a partir das famílias. Alguns indígenas relatam que quando as famílias vivem de acordo com as regras existentes em seu território, a comunidade vive bem e todos podem ser capazes de gerenciar suas vidas com a ajuda da mãe natureza, que é considerada por eles como a provedora de todos os recursos para a sua sobrevivência, para o melhor “bem viver”, último conceito de saúde mental produzido pela SESAI. Os Tembé agregam suas famílias em aldeias que são construídas, estrategicamente, em círculos, para que possam ser acompanhados no cotidiano pelas lideranças. Algumas aldeias ficam próximas de comunidades não indígenas, pelas quais os Tembé têm respeito. No entanto, alguns não indígenas possuem outras concepções sobre essa etnia, como: “índios preguiçosos, violentos, briguentos, misturados, não índios, manipuladores, oportunistas e madeireiros” (PONTE; AQUINO, 2012) e por acharem que necessitam sempre de recursos, querem mais do que devem ter e fazem questão de tudo que não lhes pertence. Por causa disso, muitos conflitos são gerados entre os Tembé e os colonos que adentram suas terras (VIVEIROS DE CASTRO, 2006). Ser Tembé é constituir uma identidade étnica, o que significa dizer que depende do local onde estão localizados, também – como fazem os Tembé do Gurupi de forma mais rígida e os Tembé do Guamá de forma mais flexível – recorrer à “tradição” e a elementos da cultura que, como prevê a etnografia, podem ter tido seu sentido alterado com o decorrer do tempo. Apesar de esses elementos serem

27 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM vistos pelos indígenas mais velhos como fragmentados ou desconectados dos “passos certos”, isto é, como elementos que adquiriram novos significados diferentes dos originários, mas que não deixam de se apresentar como significativos. Essas transformações não descaracterizam a identidade dos Tembé, pelo contrário, compreender a alteração de alguns hábitos, como o modo diferente de se vestirem, de conviverem com os (karai) não indígenas, pois o fato de estudarem fora de suas aldeias, conquistarem o nível superior, usarem os mesmos utensílios dos não indígenas, fortalece a sua cultura, porque a interação social tem o significado étnico que define os Tembé, dentro do seu território, assim constrói a sua etnicidade e fortalece sua identidade que é repassada de geração em geração pelos mais idosos da aldeia (BARH, 2000). 3.2 A liderança feminina na aldeia Entre os Tembé existe uma separação nítida capaz de fazer diferença entre “lideranças” e o “cacique” ainda que as lideranças possam desempenhar papéis de autoridade máxima, como as “capitoas”, os(as) caciques podem assumir o papel de liderança e atuar como intermediários entre a aldeia e o mundo externo. É relevante acrescentar que cada aldeia tem um representante que pode ser um cacique, ou capitoa como liderança, porém, como via de regra, a aldeia que tem capitoa não tem cacique, pois a capitoa assume o papel de liderança maior, assim a aldeia fica sob cuidado e comando de uma liderança feminina. Por exemplo, existe aldeia em que o cacique tem uma função distinta que é exercida por uma pessoa que não pode resolver as situações isoladamente, mas ele deve estar sempre de comum acordo, com a comunidade caracterizada por grupos separados em “velhas lideranças, novas lideranças, cacique e capitoa” e cada grupo exerce uma função e pode desempenhar um papel de destaque, as assembleias gerais são momentos em que os caciques de diferentes aldeias se reúnem para planejar ações, corrigir as distorções e minimizar conflitos entre aldeias e movimentos externos (TEISSERENC, 2010).

28 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 3.2.1 Participação feminina Entre os Tembé, a autoridade máxima e a capacidade de orientar o cacique pertencem às mulheres idôneas, conhecidas como “capitoas”. Duas capitoas bem conhecidas no meio indígena foram Verônica e Brasilícia. A primeira, dona Verônica, faleceu em 2014 sem deixar substituta para o cargo que ocupava e deixou um legado para muitas gerações de várias aldeias, legado esse marcado pela coragem, determinação e autonomia. Por exemplo, por não concordar com situações apresentadas em algumas comunidades onde residia, ela reunia a família e saía de barco rio abaixo, a fim de encontrar outro espaço para montar uma nova aldeia, para agregar a família e os parentes que a acompanhavam, fez isso algumas vezes durante a sua vida (Almeida, Diário de campo, 2017). Com isso, a senhora Verônica Tembé e sua família foram responsáveis pelo nascimento de novas aldeias que surgiram em diversas localidades do Pará, tanto no Guamá quanto no Gurupi, fronteira com o Maranhão (VALADÃO, 1981). Essa indígena levava com a família anos de conhecimento, experiência no controle de situações difíceis que a diferenciavam de outras famílias. Ela possuía a coragem de iniciar um novo ritmo de trabalho dentro da mata, para construir novas ocas, ou seja, começar do zero uma vida nova, a única coisa que trazia de velho era a experiência cultural para ser transmitida para a próxima geração, ela também fazia questão de falar somente na língua tenetehar, embora entendesse o português, mesmo assim a confirmação de sua compreensão do assunto era na sua língua nativa. Os conhecimentos que dona Verônica possuía eram utilizados como instrumentos de dominação sobre os mais novos da aldeia Tekohaw, pois era dela a palavra final. Dessa forma, essa capitoa tinha a autoridade sobre os caciques, estes são considerados como as maiores autoridades nas aldeias, após o término das reuniões nas comunidades, os caciques vinham aconselhar-se com ela. Suas palavras proporcionavam bons resultados para as aldeias, mesmo nas situações mais complicadas e conflituosas, de forma que ela se apresentava como mediadora nos conflitos e sempre saía como vitoriosa, por isso recebia o respeito e consideração das autoridades governamentais e das comunidades indígenas pelas quais lutou por anos,

29 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM buscando a preservação da cultura e dos direitos conquistados pelos indígenas. A liderança indígena mais forte do povo Tembé em faleceu em 2013, cega e com uma forte desnutrição. Depois que ficou cega por motivo desconhecido, a capitoa Verônica Tembé teve momentos muito delicados em sua liderança, pois a sua filha, a qual herdaria o título de capitoa, faleceu de uma doença desconhecida, logo dona Verônica não conseguiu preparar outra indígena de sua família para ocupar o seu lugar. Dias antes de sua morte dona Verônica veio para Belém trazida por seu esposo em busca de recursos para melhorar a sua saúde, infelizmente seu estado de desnutrição já estava avançado e ela não conseguiu sobreviver (ALMEIDA, 2017). Outra liderança indígena feminina de autoridade máxima é a capitoa dona Brasilícia, da aldeia Sussuarana, também da região do Gurupi, que representa, nas reuniões do grupo, o interesse das mulheres da aldeia, tudo no que se refere às mudanças e ao que está relacionado ao desenvolvimento de sua gente. Quando as mulheres da aldeia têm seus posicionamentos, contestam, reclamam, e por vezes falam mal das lideranças esse processo acontece por meio da liderança feminina da “capitoa”, que ouve as reivindicações levando para o cacique e as demais autoridades existentes nas comunidades indígenas, isso ocorre nas rodas de conversas, reuniões com lideranças na “Ramada”, local exclusivo para rituais, encontro comunitário, planejamentos de ações e reuniões (PONTE, 2014). Dona Brasilícia é uma “capitoa” de palavra forte, decisiva e por vezes severa para conter as autoridades masculinas da aldeia onde reside. Ressaltando que em outras aldeias da etnia Tembé já existem outras capitoas que foram nomeadas pela comunidade Tenetehar. Talvez, por não conhecerem as realidades e dinâmicas das aldeias, muitos afirmam que as mulheres indígenas não possuem participação ativa nas comunidades onde vivem (VIVEIROS DE CASTRO, 2006). No entanto, em visitas às aldeias Tembé observou-se que essas mulheres são trabalhadoras produtivas, o que pode confirmar a sua participação também pela existência da Associação das Mulheres do Gurupi. De acordo com Ponte e Aquino (2012), essa associação tinha como objetivo principal a comercialização de artesanato (adereços de festa como saias, sutiã, colares, cocais, brin-

30 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 5 cos e pulseiras todos confeccionado e produzido pelas mulheres do Gurupi. As organizações das mulheres em associações são polêmicas e de difícil adequação para os grupos indígenas, porque as indígenas estão sempre questionando sobre a divisão de tarefas entre homens e mulheres, reclamam por não se sentirem confortáveis em alguns momentos, pois, para elas, se homens e mulheres trabalhassem juntos teriam mais forças. As formas como as “capitoas” procedem junto ao grupo e como conduzem as questões do cotidiano das aldeias são mais compatíveis e mais legítimas para as mulheres indígenas que sentem orgulho de serem representadas por uma mulher com autoridade expressiva nas aldeias. Outras lideranças femininas de destaque também são encontradas nas aldeias do Alto Rio Guamá, entre os Tembé, são mulheres que ocupam posições distintas, tanto nas aldeias do Gurupi, quanto nas proximidades do rio Guamá e arredores, lembrando que os Tembé estão espalhados pelo interior do Pará e do Maranhão. Essas mulheres são lideranças que não têm o título de capitoa, porém têm legitimidade para adquirir status de líderes. Elas realizam mediações entre os órgãos oficiais e as aldeias, com o intuito de promover ações diferenciadas no cotidiano, que levariam os indígenas a ascender na escala social e política, lembrando que suas participações são fundamentais na área da saúde. Apesar disso, essas mulheres ainda lutam para serem reconhecidas dentro das aldeias como autoridades, e credenciadas para exercer domínio completo sobre a comunidade onde residem juntamente aos grupos que apoiam essas lideranças. 3.2.2 A liderança do pajé Atualmente restam poucos pajés que conduzem os rituais nas aldeias dos Tembé, assim como em outras etnias, o(a) pajé, o(a) rezador(a), o(a) curandeiro(a) que em muitos momentos durante os rituais entra em contato com o mundo espiritual para curar os doentes. Antigamente somente com o consentimento do(a) pajé, é que qualquer indígena, quando estava doente, podia deixar a aldeia para ser tratado por um médico. Atualmente, quando a medicina tradicional não resolve os problemas dos enfermos, o cacique intervém

31 PINTANDO A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM junto ao/as pajés para a retirada da pessoa da aldeia, em muitos casos o(a) pajé acompanha o paciente até a consulta, ouve o diagnóstico do médico e então retorna para a aldeia ou fica na cidade junto com a família do paciente até que o mesmo retorne para a aldeia de origem. Assim, percebe-se que a figura da mulher pajé é tão importante quanto a figura da Cacique e demais lideranças femininas. Ressalta-se que o pajé é uma liderança em extinção no mundo dos indígenas Tembé, pois esse cargo pode-se dizer que poucos querem ocupar, considerando ser uma posição de muitas responsabilidades, sendo que antes, se os indígenas morressem nas aldeias, não se questionava a razão, pois o(a) pajé sempre tinha a solução, porém, se algo saísse errado era culpa dos espíritos e não dos pajés. Hoje já se questiona a posição dos pajés diante de algumas doenças apresentadas pelos indígenas transmitidas pelos não indígenas, por esse motivo os mais novos, raramente têm interesse em aprender os ensinamentos dos pajés para preservação da cultura que tende a desaparecer, pois cada pajé, ancião, curador, benzedor que morre é um livro que se perde, que não foi escrito junto à comunidade indígena, assim como já desapareceram etnias inteiras (ALMEIDA, 2017). 3.3 Costumes e rituais de passagem 3.3.1. A Festa da Criança A Festa da Criança marca a pré-iniciação dos meninos e das meninas Tenetehar-Tembé. Esse ritual acontece a partir dos cinco meses de idade. Durante a festa, o maracá apesar do ser um instrumento de som usado somente pelos homens, em alguns momentos a criança pequena também tem acesso (Diário de Campo, 2016). Entende-se que o maracá serve para demarcar a importância de um momento ou situação que pode ou não ter conotação religiosa. Por exemplo, quando oferecido às crianças que queiram manejá-lo para realizar alguma brincadeira, a elas é permitido (LOBO, 2016). De acordo com as mães o maracá, também tem a função de promover um sono tranquilo e agradável para as crianças no período noturno.

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