Marco de orientação para o estudo e o trabalho com ecologia integral

GRUPO DE ECOLOGÍA INTEGRAL Red de Centros Sociales CPAL MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL DA REDE DE CENTROS SOCIAIS – CONFERÊNCIA DOS PROVINCIAIS PARA AMÉRICA LATINA E CARIBE (RCS-CPAL)

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL (RCS / CPAL)

Conferencia de Provinciales Jesuitas de América Latina y El Caribe (CPAL) Avda. Fulgencio Valdez, 780 – Breña 05-0052 – Lima 5 – PERÚ (+51) 1 433 8110 / 7747650 https://jesuitas.lat/ Editora Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (FEEVALE) (UNISINOS) (UNISINOS) (UNISINOS) (UNICAP) (UNISINOS) (UNISINOS) (UnB)

GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL (RCS / CPAL) MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2022

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL DA REDE DE CENTROS SOCIAIS CONFERÊNCIA DOS PROVINCIAIS PARA AMÉRICA LATINA E CARIBE (RCS-CPAL) Edição: Casa Leiria Tradução e revisão: Luciane Klein Vieira Observações As referências à Carta Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, nesta obra sempre serão abreviadas com LS, seguido ou não do número do respectivo parágrafo. As referências à Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco, nesta obra sempre serão abreviadas com EG, seguido ou não do número do respectivo parágrafo. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973

SUMÁRIO 9 Introdução 14 I. Ecologia integral 14 1. Perspectivas da EcologiaIntegral 20 2. Pilares para sustentar uma Ecologia Integral 22 3. Espaços estratégicos para se pensar em Ecologia Integral 25 II. Promoção da justiça na perspectiva da ecologia integral 27 1. Agendas estratégicas de Justiça Socioambiental 28 2. Níveis do impacto transformador da Justiça Socioambiental 29 3. Indicadores comuns para um caminho colaborativo 32 Referências 33 Anexo 1 Guia de apoio para projetos a partir da perspectiva da ecologia integral 33 1. Aspectos sobre as perspectivas que compõem a Ecologia Integral 34 2. Sobre os pilares 34 3. Sobre os espaços estratégicos 34 4. Aspectos relativos às agendas estratégicas 36 5. Aspectos relativos aos Indicadores Comuns 37 Anexo 2 Materiais de divulgação dos seminários virtuais em ecologia integral

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL Grupo de Homólogos de Ecologia Integral Rede de Centros Sociais CPAL1 Introdução Considerando que tudo está intimamente relacionado, e que os problemas atuais reclamam por uma atenção que leve em consideração todos os fatores da crise mundial, proponho que agora pensemos nos distintos aspectos de uma ecologia integral, que incorpore claramente as dimensões humanas e sociais. (LS, 137). OGrupo de Ecologia Integral foi criado em 2019, a partir da XII Assembleia de Centros Sociais da Conferência de Províncias da América Latina e do Caribe (RCS/CPAL),2 em Puente Grande, México. Atualmente está sob a coor1 O presente texto foi produzido em colaboração entre os membros do grupo de Homólogos coordenado pelo P. Ivo Follmann, com a secretaria executiva do Dr. Luiz Felipe Lacerda. 2 Na RCS participam mais de 40 centros sociais que interagem em três grupos de homólogos: “Ecologia Integral”, “Microfinanças” e “Democracia e Direitos Humanos”: tal rede é coordenada por Piero Trepiccione, do Centro Gumilla, Venezuela, e forma parte do Secretariado para o Apostolado Social da CPAL, a cargo de Carmen de los Ríos. O “Grupo de Ecologia Integral”, autor do presente documento, está coordenado por José Ivo Follmann S. J., com o apoio de Luiz

10 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL denação do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) do Brasil, e conta com a participação do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES), também do Brasil; o INFOCAP do Chile; a Equipe de Reflexão, Pesquisa e Comunicação (ERIC) de Honduras; o Centro de Direitos Humanos Miguel Agustín Pro Juárez (CPDH) doMéxico; a Rede de Centros Sociais Jesuítas (SEPSI) do Peru; e o CentroMontalvo da República Dominicana. Os centros sociais mencionados reuniram-se em agosto de 2019 para compartilhar experiências e, a partir do conhecimento mútuo, elaborar coletivamente um Plano de Trabalho Trienal (2020-2023). Tal Plano, no seu primeiro ano de execução, propôs como principal objetivo a elaboração de um “marco de orientação para o estudo e o trabalho com Ecologia Integral” que pudesse servir de referência para os centros sociais, além de propor acordos para a criação de um logotipo próprio e para pensar a forma de incidência de temáticas vinculadas à Ecologia Integral em outras redes e espaços da CPAL, em articulação com os órgãos globais da Companhia de Jesus e de outras instituições e redes externas. Este, portanto, é o documento que aqui se apresenta. Para garantir que a sua construção fosse o resultado de um processo orgânico, coletivo e participativo, baseado no estudo e na produção de conhecimento, assim como em práticas concretas de atores sociais específicos em diferentes territórios, os centros sociais integrantes do Grupo de Ecologia Integral organizaram uma série de seminários virtuais mensais, com convidados especiais que puderam representar tanto a voz técnica e da academia quanto a voz dos povos e movimentos populares e sociais da América Latina e do Caribe. Sendo assim, foram trabalhados os seguintes temas:3 Lacerda, do OLMA, Brasil; e pelos centros que o integram: Paulo Tadeu S. J. e Lidiane Cristo por SARES, Brasil; Javier Rojas pelo INFOCAP, Chile; Pedro Landa e Elvin Hernández pela ERIC, Honduras; Meyatzin Velasco Santiago pelo CPDH, México; Rómulo Torres pelo SPESI, Peru; e Heriberta Fernández Liriano pelo Centro Montalvo, República Dominicana. 3 No Anexo 2 foram incluídos os materiais de difusão dos Seminários Virtuais em Ecologia Integral. Os vídeos estão disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=Z-zkIm3T0gs&list= PL9iYeh-aBzdsyxMtqbJc1VEWnJTKN6tY-&index=2.

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 11 • Seminário Inaugural: Ecologia Integral, Crise Climática e Pandemia, com o Frei Sinivaldo Tavares OFM (Pesquisador da Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia – FAJE, Brasil) e Adelson Araújo S. J. (Faculdade Gregoriana, Roma). • Seminário 1: Ecologia Integral e Justiça Social e Ambiental, com José Ivo Follmann S. J. (Diretor do OLMA, Secretário para a Promoção da Justiça Social e Ambiental da Província e Pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Brasil) e Marcivania Sateré Mawé (Liderança Indígena Manaus, Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e arredores – COPIME, Brasil). • Seminário 2: Ecologia Integral e Direitos Humanos, com Jorge Padilla (Universidade Iberoamericana do México) e Mónica López (Rádio Huayacocotla, Voz Camponesa, México). • Seminário 3: Empregos verdes para a reativação sustentável, com Ana Belém Sanches (Organização Mundial do Trabalho – OIT, Monica Gazmuri (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, Chile), José Salas (Câmara de Indústrias Costarriquenhas). • Seminário 4: Ecologia Integral e Sínodo para a Amazônia: com Zenildo da Silva (Reitor do Seminário da Arquidiocese de São José, Arquidiocese de Manaus, Auditor do Sínodo para a Amazônia), Anitalia Kuyuedo (Liderança do povo Okaina, Amazônia Colombiana, membro do REPAM Colômbia, defensora do território e da soberania alimentar) e Lidiane Cristo (Analista Social do SARES – Brasil). • Seminário 5: Ecologia Integral e Defesa do Território: com Juventino Gálvez (Universidade Rafael Landívar), Omar Serrano (Vice-reitor de Projeção Social da UCA, José Simeón Cañas), Berta Zúniga (Conselho Cívico das Organizações Populares e Indígenas de Honduras) e Adilia Castro (Fundação San Alonso Rodríguez, acompanhante dos defensores de Guapinol, Honduras).

12 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL Todas as exposições realizadas durante estes seminários foram gravadas e transcritas, gerando-se, assim, um material sistematizado como suporte para a elaboração do Marco de Orientação que apresentamos. Posteriormente, cada um dos centros sociais que forma parte do Grupo de Ecologia Integral compartilhou esta sistematização com os seus pesquisadores, acadêmicos, líderes sociais e pessoas de outros setores de suas províncias com a finalidade de arrecadar maiores contribuições para este documento.4 Na terceira e última etapa, os representantes do Grupo de Ecologia Integral efetuaram um novo estudo detalhado do documento elaborado, consolidando, assim, o texto final, mediante apresentação do documento na Assembleia Geral e Diretores de Centros Sociais Este “Marco de Orientação para o Estudo e o Trabalho com Ecologia Integral” pretende ser um documento prático e propositivo que auxilie aos centros sociais e a outros setores da CPAL, a obras sociais de outras conferências, assim como a outras instituições, no aprofundamento de seu compromisso afetivo e prático em sintonia com as conversões ecológicas necessárias que se descrevem ao longo da encíclica Laudato Si’. O documento está em estreita concordância com o Plano Estratégico (2020-2023) da Rede de Centros Sociais da CPAL na sua missão de: “contribuir com a superação das desigualdades socioeconômicas, dos impactos socioambientais e da degradação das democracias na América Latina e no Caribe, através de alternativas de transformação social baseadas na justiça e na reconciliação”. O texto que apresentamos está dividido em duas grandes partes que oferecem, em primeiro lugar, os elementos conceituais, os princípios, bem como os pilares fundamentais da Ecologia Integral, e em segundo lugar, a operacionalidade (pistas práticas) deste conceito, através da perspectiva da Justiça Socioambiental e de suas diferentes dimensões de incidência: agendas estratégicas e indicadores comuns. Em anexo, são oferecidos uma guia 4 Outras pessoas que revisaram e colaboraram com a construção deste documento, além dos expositores dos Seminários virtuais antes mencionados: Adelson Araújo S. J. (Universidade Gregoriana de Roma, Itália), Ana Belén Sanches (Organização Mundial do Trabalho – OIT, Chile), José Salas (Câmara de Indústrias, Costa Rica), Monica Gazmuri (UNESCO, Chile), Mónica López (Rádio Huayacocotla – Voz Camponesa, México).

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 13 de apoio para que projetos sejam alinhados a partir da perspectiva da Ecologia Integral (n. 1), bem como os materiais de difusão dos Seminários Virtuais em Ecologia Integral (n. 2) aqui sistematizados. Boa leitura! GrupodeEcologia Integral (RCS /CPAL) Julho 2021

14 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL I. ECOLOGIA INTEGRAL 1. Perspectivas da Ecologia Integral O conceito de Ecologia Integral, referido pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, é inspirado no testemunho de São Francisco de Assis, sendo, portanto, o paradigma de referência fundamental do nosso Apostolado Social para a Promoção da Justiça. Segundo o Papa, o Santo de Assis “é um exemplo por excelência do cuidado com o frágil e com uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade.” (LS, 10). O conceito de Ecologia Integral propõe uma mudança paradigmática, uma ruptura epistemológica com o que vem sendo denunciado nos estudos que estão ocorrendo em nossa Casa Comum sobre a raiz humana da crise ecológica em direção aos sinais de vida descritos no Evangelho da Criação, e a refundação de uma espiritualidade ecológica encarnada e comprometida. Esta perspectiva não é puramente teórica ou intra eclesiástica; ao contrário, afeta diretamente as estruturas que organizam a sociedade e as suas dinâmicas políticas, econômicas, culturais, sociais e ambientais. Esta mudança de paradigma, que dialoga de forma sensível com o clamor da Terra e dos pobres, requer, portanto, uma modificação significativa na forma de proceder e, consequentemente, na concepção do mundo que nos rodeia. Os diálogos levados a cabo durante os seminários virtuais, assim como os estudos acumulados ao longo destes cinco anos da encíclica Laudato Si’ permitem sistematizar esta mudança de paradigma para compreendê-lo a partir de cinco grandes perspectivas: a) Perspectiva sistêmica: Tudo está interconectado! É necessário ter uma percepção ampla sobre os fenômenos e as realidades. Nestes relatos tão antigos, carregados de profunda simbologia, já estava contida uma convicção atual: que tudo está relacionado, e que o autêntico cuidado de nossa própria vida

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 15 e de nossas relações com a natureza não pode ser separado da fraternidade, da justiça e da fidelidade com relação aos demais (LS, 70). Diante da complexidade da realidade que nos circunda, é imperativo entender que tudo está conectado e que já não é possível separar, por exemplo, a crise social da crise ambiental. Efetivamente, estes fenômenos estão estreitamente vinculados, exigindo-nos, portanto, uma visão sistêmica que possa abarcar toda a gama de causas e efeitos de um determinado evento. Do mesmo modo, e contrariando a hegemonia da visão antropocêntrica, esta perspectiva também nos inclina a compreender a integralidade de tudo o que está vivo, ampliando a nossa compreensão da dimensão física, emocional, cognitiva e espiritual daqueles seres que compartilham conosco a Casa Comum, incluindo-se ela mesma, a Mãe Terra, como um ser vivo e sensível, dotado de um metabolismo próprio. b) Perspectiva transdisciplinar: Não seremos capazes de gerar respostas de forma simples e dissociada se o que vemos à nossa frente são problemas complexos e multifacetados. Necessitamos produzir uma ecologia dos saberes. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas há somente uma complexa crise socioambiental. As linhas para a solução requerem uma aproximação integral para combater a pobreza, para devolver a dignidade aos excluídos e simultaneamente para cuidar da natureza (LS, 139). Para avançar de maneira efetiva num enfoque mais sistêmico e integral é necessário escutar diversas vozes e conhecimentos. A interdisciplinaridade é um ponto central para esta mudança de paradigma e, tal como já destacou o Papa Francisco, nos convida a escutar, especialmente, as vozes daqueles povos que historicamente foram silenciados. Estes povos, nos seus territórios,

16 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL numa relação de respeito com a natureza, apresentam-nos, efetivamente, um exemplo de outro paradigma possível de humanidade. Nos diferentes âmbitos da produção de conhecimento, tal como nas escolas, universidades ou inclusive no contexto da produção de nossos projetos e ações sociais, esta escuta se relaciona, portanto, com a justiça cognitiva que exige da ciência ocidental moderna e de seus atores um profundo movimento de humildade. A transdisciplinaridade é o diálogo integral necessário para esta mudança de paradigma e isso também nos obriga a saber dialogar com a diferença, com a posição contrária e absorver a crítica construtiva. Ao mesmo tempo, nos faz vigilantes para sempre garantir a defesa dos princípios fundamentais relacionados com a promoção da vida. Estes princípios, atualmente, são vítimas de um certo relativismo discursivo extravagante e descontextualizado. c) Perspectiva transcendental e transgeracional: Deus também está presente (encarnado) na natureza, que deve ser preservada para as gerações futuras. Quando tomamos consciência do reflexo de Deus que há em tudo o que existe, o coração experimenta o desejo de adorar ao Senhor por todas as suas criaturas e junto a elas, como é expressado no precioso hino de São Francisco de Assis (LS, 87). Aqueles que não afirmam com palavras sustentam com os fatos, quando não lhes parece preocupar uma justa dimensão da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do ambiente ou os direitos das gerações futuras (LS, 109). Pensar de maneira integral também requer que sejamos capazes de superar o imediatismo da cultura moderna que, em última instância, conduz à cultura do descarte e a relações superficiais. Esta superação, no âmbito socioambiental, explicada na encíclica Laudato Si’, convida-nos a viver e a aproveitar as belezas e os benefícios deste Planeta, pensando no benefício dos que virão no futuro. Esta perspectiva dialoga com outras aqui mencionadas, na medida em que nos conclama para

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 17 uma mudança de postura ética, diretamente vinculada a nossos hábitos e costumes. Além disso, as futuras gerações, na verdade, já estão aqui, no cenário global e regional, reclamando por seu espaço e pela oitiva de suas vozes. Neste sentido, dialogando diretamente com nossas Preferências Apostólicas Universais (PAUs), necessitamos com urgência abrir espaços de diálogo com os jovens para aprender a escutá-los. Esta perspectiva de uma mudança paradigmática ressalta a dinâmica transcendental do que vemos e vivemos. Para nós, esta dimensão é precisamente a incorporação da espiritualidade e da esperança cristã como elemento fundamental para uma compreensão integral do que está vivo, do que sucede e de como o espírito criador do universo se manifesta e se materializa de todas as formas. Nesse sentido, a perspectiva transcendental desta mudança paradigmática também é contra hegemônica, frente à uma cultura materialista que só crê no que pode ser medido e controlado por parâmetros científicos. d) Perspectiva ética do cuidado, justiça e harmonia: Somos seres relacionais. É necessário refundar as relações entre os humanos, e entre eles e a natureza numa dinâmica de afeto e cuidado. Se nos aproximamos à natureza e ao ambiente sem esta abertura ao espanto e à admiração, se já não falamos a linguagem da fraternidade e da beleza em nossa relação com o mundo, nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou do mero explorador de recursos, incapaz de colocar limite nos seus interesses imediatos. Em contrapartida, se nos sentimos intimamente unidos a tudo o que existe, a sobriedade e o cuidado brotarão de modo espontâneo (LS, 11). Todas as perspectivas anteriores estão relacionadas com uma expansão empática para escutar o clamor da Terra e dos povos. Esta abertura cognitiva e procedimental deve nos conduzir efetivamente à consolidação de uma nova ética, dirigida a uma Ética do Cuidado. Não se trata, aqui, exclusivamente, de uma ética estabelecida entre os seres humanos, mas também dos humanos com outros seres vivos. Este mo-

18 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL vimento poderá ampliar a nossa consciência a partir da posição que ocupamos hoje, como usuários dos benefícios deste sistema (consumidores), para uma consciência de guardiães de tudo o que está vivo. A condição essencial do Ser Humano na Ecologia Integral deve ser a de guardião de tudo o que está vivo. A realização desta perspectiva pode nos permitir aprofundar a missão de estabelecer relações justas com outros seres e com os Dons da Criação, mas exigirá um deslocamento da consciência de uma perspectiva antropocêntrica para uma perspectiva mais ecocêntrica. e) Perspectiva contextual e cultural: Todo conhecimento deve estar relacionado a um território, a um lar; todos temos um lar do qual falamos. Também é necessário acudir às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se de verdade queremos construir uma ecologia que nos permita sanar tudo o que destruímos, então, nenhuma rama das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser deixada de lado, tampouco a religiosa com a sua linguagem própria (LS, 63). Cabe destacar que esta transição de paradigma nos convida a olhar mais de perto os territórios e todo o conhecimento de quem os vêm habitando durante séculos. O diálogo, o cuidado, a percepção sistêmica e todas as demais perspectivas desta Ecologia Integral aqui desenhadas não são abstratas, nem puramente teóricas, devem ser entendidas como algo que se manifesta num território específico, numa cultura específica, com história, atores e, também, estruturas específicas, que devem ser percebidos e respeitados em toda a sua complexidade. Nesta complexidade sistêmica, na qual a Ecologia Integral afirma que tudo está interconectado, abre-se uma multiplicidade de universos que convivem com a realidade, um pluriverso que alguma vez foi negado pela razão linear contemporânea enraizada na ideia de progresso e de desenvolvimento técnico e monetário. A união destas percepções nos sinaliza, claramente, os princípios que sustentam o novo paradigma que propõe a Ecologia Integral. No contexto

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 19 deste Marco de Orientações, todos os projetos, ações e processos desenhados pelos nossos trabalhos no âmbito da Ecologia Integral são convidados a examinar cuidadosamente as suas interações. Imagem1:PerspectivasdoParadigmadeEcologiaIntegral. Fonte: Grupo de Ecologia Integral-CPAL. Também cabe destacar um elemento fundamental no conceito de Ecologia Integral que se refere à noção de “bem comum”, eixo central e unificador da ética social proposta na encíclica Laudato Si’: É o conjunto de condições da vida social que faz possível às associações e a cada um de seus membros o alcance pleno e mais fácil da própria perfeição (LS, 156). ECOLOGIA INTEGRAL Perspectiva sistêmica Perspectiva contextual e cultural Perspectiva transdisciplinar Perspectiva ética: cuidado, justiça e harmonia Perspectiva transcendental e transgeracional

20 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL Esta percepção pressupõe a compreensão do ser humano como sujeito de direitos inalienáveis, garantindo o seu bem-estar social a partir do princípio da sustentabilidade e da paz. Convém relembrar que nos nossos métodos de planejamento de ações e projetos somos convidados e convidadas a incorporar a capacidade de contemplar e de “reconectar” com o princípio vital que vai além de nossos próprios pensamentos e proposições, talvez este não seja o momento final mas, precisamente, o começo de uma mudança de atitude e de um novo paradigma, uma autêntica conversão à ecologia integral: Uma ecologia integral implica em dedicar o tempo para recuperar a serena harmonia com a criação, para refletir sobre o nosso estilo de vida e nossos ideais, para contemplar o Criador, que vive entre nós e no que nos rodeia, cuja presença não deve ser fabricada mas descoberta, desvelada. (LS, n. 225). 2. Pilares para sustentar uma Ecologia Integral O que deveria sustentar o movimento de mudança paradigmática? No que devemos nos apoiar para promover uma Ecologia Integral? As respostas a estas perguntas, como destacamos anteriormente, são explicadas na própria Missão da Companhia de Jesus. De maneira geral e na linha de nossa missão e preferências, damo-nos conta de que dois grandes pilares podem sustentar a mudança de paradigma rumo à consolidação de um enfoque ecológico integral: a) Reconhecimento da dignidade humana e especialmente da solidariedade com os pobres e descartados do mundo: Devemos apoiar todo o nosso discurso e a nossa ação na máxima concepção possível da dignidade humana e de seus direitos essenciais. Qual-

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 21 quer mudança de paradigma é inconcebível sem a preservação de condições mínimas e integrais para todos e todas. Nesse sentido, um olhar mais próximo a todas as vítimas da violência, da perseguição, e das desigualdades socioeconômicas não é negociável e requer um diálogo e uma aceitação fraterna de todas as culturas, cores, credos, nacionalidades e orientações. A dignidade humana não somente na condição de vítima, mas também no direito, no lugar de pertencimento, no amor próprio e no orgulho pelo que somos, seja o que for, é um pilar estruturante e não negociável deste novo paradigma que queremos construir. b) O cuidado com os dons da Criação: O segundo pilar que sustenta esta Ecologia Integral e suas diferentes perspectivas é, precisamente, o cuidado com os dons da criação, o Planeta Terra, a “Pacha Mama”. Aqui residem ao menos duas dimensões específicas: a primeira é que assumamos nosso lugar como guardiães da natureza e transformemos, efetivamente, nossas formas de viver e produzir na sociedade em algo verdadeiramente mais sustentável e harmônico. Em segundo lugar, assegurar uma mudança de consciência, o que requererá que sejamos humildes para aprender da Mãe Terra, entendendo-a como um organismo vivo, com sua sabedoria própria, em relação de irmandade, como São Francisco, com seus elementos e seres numa consciência muito mais “ecocêntrica”. De fato, podemos ver a relação direta destes pilares que sustentam a Ecologia Integral com nossas Preferências Apostólicas Universais. Precisamente estes dois grandes pilares, a dignidade humana e o cuidado da Casa Comum, sugerem um ponto de vista através do qual devemos sempre compreender as implicações das perspectivas previamente sistematizadas, e, portanto, da Ecologia Integral. Ou seja, é praticamente impossível que algo que não respeite a dignidade humana e o cuidado da Casa Comum, de forma

22 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL indissociável, seja registrado dentro do universo de ações vinculadas à Ecologia Integral. Por sua vez, unindo a reflexão crítica a partir destas perspectivas, com base nestes pilares estruturantes, temos uma boa chave de leitura para compreender e fomentar a Ecologia Integral em nossos diferentes espaços, projetos, ações, práticas e reflexões. 3. Espaços estratégicos para se pensar em Ecologia Integral Ao longo dos nossos estudos e seminários virtuais, notamos alguns espaços predominantes nos quais poderíamos operar esta mudança de paradigma com eficácia e eficiência, utilizando as perspectivas antes mencionadas. Certamente não são os únicos espaços estratégicos nos quais podemos pensar numa ação transformadora, mas ao mesmo tempo nos parece que aqueles apresentados a continuação dialogam com uma demanda explícita de conversão ecológica de nossa parte, como Igreja, mas também como sociedade. Portanto, aproximamo-nos de um aspecto mais concreto de nossa elaboração conceitual, buscando entender como, em cada um dos seguintes espaços, podemos avançar nas perspectivas que desenhamos sobre o universo da Ecologia Integral e seus respectivos pilares de apoio. a) Espaço cotidiano (individual e comunitário): Refere-se às práticas relativas à nossa vida diária e às formas com as quais estabelecemos relações com o que produzimos e consumimos, conosco mesmo, com os demais e com o ambiente que nos rodeia. Está previsto no que o Papa Francisco chamou de “ecologia da vida cotidiana” que sugere uma “conversão interior”: Para que se possa falar de um autêntico desenvolvimento, deve ser assegurado que seja produzida uma melhoria inte-

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 23 gral na qualidade de vida humana, e isto implica em analisar o espaço relacionado à existência das pessoas. Os cenários que nos circundam influem no nosso modo de ver a vida, de sentir e de atuar. Por sua vez, no nosso quarto, na nossa casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente para expressar a nossa identidade (LS, 147). b) Espaço institucional: Refere-se ao exame de nossas próprias instituições, como se relacionam com os fornecedores, as relações justas que estabelecem com empregados e beneficiários, o uso da água, a energia renovável quantificável envolvida em nossas obras, etc. Sob a responsabilidade das instituições católicas de todo o mundo, temos a gestão de muitos lares, escolas, hospitais, centros sociais, instituições de educação superior. Parafraseando a Gandhi: devemos ser nós mesmos a mudança que queremos ver no mundo, começando, nas instituições pelas quais somos responsáveis, a mudança paradigmática que propomos para toda a sociedade. Se tudo está relacionado, também a saúde das instituições de uma sociedade tem consequências no ambiente e na qualidade de vida humana: Qualquer prejuízo da solidariedade e do civismo produz danos ambientais. Neste sentido, a ecologia social é necessariamente institucional, e alcança progressivamente as distintas dimensões que vão do grupo social primário, da família, passando pela comunidade local e pela nação, até a vida internacional (LS, 142). c) Espaço social: Entendido como um espaço mais amplo: o ambiente coletivo, os lugares de interação com diferentes identidades, os espaços de disputa, de conflito e de negociação, os espaços da “coisa política”. A dimensão social nos convida a pensar no aprofundamento da democracia, na defesa dos direitos humanos, na construção de um ambiente urbano sustentável e de um ambiente rural dotado suficientemente de direitos e de estruturas

24 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL que permitam a vida digna às populações camponesas. É o espaço da economia, das políticas públicas de transporte, da educação, da saúde, entre outras políticas que afetam diretamente a vida da população. Ante a possibilidade de uma utilização irresponsável das capacidades humanas, são funções impostergáveis de cada Estado planificar, coordenar, vigiar e sancionar dentro de seu próprio território. A sociedade, como ordena e cuida do seu porvir num contexto de constantes inovações tecnológicas? Um fator que atua como moderador executivo é o direito, que estabelece as regras para as condutas admitidas à luz do bem comum. Os limites que deve impor uma sociedade sã, madura e soberana se associam com: previsão e precaução, regulações adequadas, vigilância da aplicação das normas, controle da corrupção, ações de controle operacional sobre os efeitos emergentes não desejados dos processos produtivos, e intervenção oportuna ante riscos potenciais ou incertos (LS, 177). Efetivamente, cada um destes espaços é um campo de forças, com diferentes atores, agendas e interesses que disputam distintas narrativas e práticas. Na realidade latino-americana e caribenha, além do jogo natural de distintas forças de poder, estes espaços também estão permeados por um contexto de injustiças históricas, silenciamentos sociais e negligências de certas elites frente à grande parte da população. Este fenômeno conduz à consolidação de espaços permeados por profundas desigualdades sociais, o que termina por colocar tais atores políticos, sociais e eclesiásticos em diferentes perspectivas de possibilidade e ação, gerando, por consequência, relações injustas. Isto nos permite dar-nos conta de que a Ecologia Integral e suas perspectivas, ao aterrissarem no território latino-americano e caribenho permeado por tais desigualdades sociais estruturais, necessitam um conceito operacional de justiça que possa ser efetivo nas agendas estratégicas e espaços de incidência. Esta é a perspectiva de justiça ligada à Ecologia Integral que desejamos ressaltar na parte seguinte deste documento.

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 25 II. PROMOÇÃO DA JUSTIÇA NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA INTEGRAL Se a crise ecológica é uma eclosão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não podemos pretender sanar nossa relação com a natureza e o ambiente sem sanar todas as relações básicas do ser humano (LS, 119). Enquanto que a prática da “justiça social” é o cuidado do ser humano dentro da organização social que envolve as formas justas de organizar a sociedade, a “justiça ambiental” é o cuidado do ser humano no seu habitat natural, envolvendo o cuidado pela vida em toda a sua diversidade como um presente do Criador. Há um novo desafio para nosso trabalho de promoção da justiça implícito no amplo conceito de Ecologia Integral. Esse conceito se fundamenta, precisamente, nos princípios que a sustentam como uma mudança de paradigma, como ampliação da percepção da realidade em que vivemos através de uma visão sistêmica na qual tudo está interconectado e que implica, portanto, numa visão inter e transdisciplinar sobre os fenômenos. Trata-se de um convite para participarmos da luta pela justiça social e ambiental de maneira integrada. Em outras palavras: um convite para promover a Justiça Socioambiental. Não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, senão uma única e complexa crise socioambiental. As linhas para a solução requerem uma aproximação integral para combater a pobreza, para devolver a dignidade aos excluídos e simultaneamente para cuidar da natureza (LS, 139). Como bem se descreve ao longo dos três primeiros capítulos da Encíclica Laudato Si’, construímos e vivemos numa sociedade doente, que ao longo da modernidade tem intensificado um ritmo de vida descontextuali-

26 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL zando práticas e relativizando princípios. Construímos uma crença irracional no progresso e nos modos de produção e consumo que são prejudiciais para as relações interpessoais. Avançamos na mercantilização da natureza, na privatização dos espaços públicos e, em consequência, na perda da biodiversidade que ameaça todas as formas de vida na Terra. Com este estilo de vida, tecnicista e egocêntrico, geramos mudança climática, migração forçada e, em última instância, degradação da qualidade de vida para todos e para tudo. A promoção da Justiça Socioambiental, refletida nos preceitos da Ecologia Integral, é uma urgência. Se entende por “Promoção da Justiça Socioambiental” (PJSA) todas aquelas ações que colaboram com a superação das injustiças presentes no nosso patrimônio histórico e reproduzidas pelo atual modelo de desenvolvimento extrativista e financeiro, que gera desigualdades sociais e agressões ambientais indescritíveis. No conceito de Ecologia Integral que nos apresentou o Papa Francisco, na sua encíclica Laudato Si’, há uma sinalização implícita do conceito de (in) justiça que envolve a nossa convivência na Casa Comum em todos os âmbitos de suas relações, com um convite a um processo urgente e necessário de reconciliação e construção de relações justas (MPJSA, 2020). É precisamente ante esta sinalização, que ressalta o caráter injusto de nossa sociedade, buscando uma transformação paradigmática com perspectivas e pilares enaltecidos pela Ecologia Integral, que a justiça socioambiental é chamada para se fazer presente como palavra e ação nos mais diversos espaços estratégicos, como os aqui destacados, buscando através de uma postura integral, construir relações justas. Neste injusto cenário social e nestes espaços estratégicos nos quais a justiça socioambiental busca produzir seus impactos, encontramos uma enorme variedade de temáticas. Todas elas reclamam por uma visão integral, com perspectivas éticas e sistêmicas. Entre as escutas e reflexões que realizamos durante os seminários virtuais que apoiaram a construção deste documento, assim como as leituras posteriores e os estudos sobre os males que afetam aos povos latino-americanos e caribenhos, destacamos algumas agendas estratégicas para a Justiça Socioambiental e, portanto, para a Ecologia Integral.

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 27 1. Agendas estratégicas de Justiça Socioambiental As agendas estratégicas das quais falamos agora são lineamentos, temas e áreas de ação relevantes para a construção de uma sociedade mais justa, nas quais se insere a promoção da Justiça Socioambiental como um conceito operativo da Ecologia Integral. A Rede de Centros Sociais da Conferência de Províncias da América Latina e Caribe (RCS/CPAL) se insere num amplo espectro de ações, projetos, territórios e áreas de atividade que obviamente não poderíamos cobrir em sua totalidade nas páginas que seguem. Mas através de uma escuta atenta e de estudos aprofundados sobre nossas realidades e o perfil que constituem, em geral, os centros sociais articulados nesta Rede podemos destacar alguns temas relevantes para estarmos atentos a partir de uma perspectiva socioambiental de justiça e Ecologia Integral. • Diálogo inter-religioso e luta contra a intolerância. • Educação para as relações étnico-raciais e a luta contra o racismo e a discriminação étnica. • Infância e juventude segura e saudável. • Migrantes, refugiados, direito à moradia. • Gênero e luta contra o machismo e a homofobia. • Políticas públicas, defesa da democracia, direitos humanos, defesa de presos políticos e defesa de defensores ambientais. • Povos originários, defesa de territórios tradicionais, educação popular, saberes populares, agroecologia e agricultura familiar. • Defesa de biomas e ecossistemas, combate a grandes projetos de mineração e de infraestrutura, e direitos da natureza, defesa da água. • Trabalho digno e decente, emprego sustentável, consumo consciente, economia sustentável, microfinanças e economias alternativas, transição energética.

28 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL Efetivamente, não se trata de restringir a cobertura temática de nossas ações, mas ao contrário, de sustentar uma percepção prática e concreta sobre o que realmente estamos trabalhando em nossos diferentes espaços e territórios quando se trata da promoção da Justiça Socioambiental. 2. Níveis do impacto transformador da Justiça Socioambiental A partir do Grupo de Homólogos de Ecologia Integral podemos sistematizar as possibilidades de incidência em três níveis. a) Produção de conhecimento: Através do reconhecimento das diversas formas de se conhecer e perceber a vida e as coisas, além do simples conhecimento disciplinar do mundo acadêmico; portanto, no esforço de superação do abismo que separa por um lado o conhecimento valorizado academicamente e, por outro, o conhecimento popular, cotidiano, coletivo, tradicional, geralmente excluído do mundo científico-racional. Nossas agendas estratégicas devem procurar o diálogo com e entre os distintos saberes (acadêmicos, populares, coletivos, etc.) existentes em cada território, obedecendo ao princípio sistemático e transdisciplinar da Ecologia Integral e, por conseguinte, da Justiça Socioambiental. b) Tomada de decisões na sociedade: Com atitude aberta e não excludente, imprimindo práticas cada vez mais democráticas, gerando uma autêntica e ampla cultura de participação e reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões políticas, econômicas, sociais, culturais e institucionais, sugere-se avançar até formas mais inovadoras de implementação e avaliação de políticas públicas, que se baseiam em indicadores mais sustentáveis e na busca da equidade e da justiça política, econômica, social, cultural e ambiental.

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 29 c) Práticas cotidianas: É o campo da vida cotidiana, do cuidado e das relações justas na vida; espaço e tempo para a sedimentação – afirmação do cuidado de nossa Casa Comum e do reconhecimento do outro. Todos somos chamados à uma conversão socioambiental radical em nossas práticas diárias, sejam elas pessoais ou institucionais. 3. Indicadores comuns para um caminho colaborativo A diversidade é um forte imperativo na Rede de Centros Sociais da CPAL: estamos em muitos lugares e trabalhando em muitas coisas que envolvem diferentes pessoas, culturas e desafios. Uma forma prática e eficaz de garantir um caminho coletivo e colaborativo é compartilhar indicadores comuns. Além de um alinhamento teórico e prático sobre a Ecologia Integral e de sua derivação operacional: a Justiça Socioambiental, a coordenação de indicadores entre coletivos diversos pode, efetivamente, ajudar a trilhar um caminho comum. Para isso tentamos destacar aqui alguns indicadores que podem nos servir em temas de Ecologia Integral e de Justiça Socioambiental. a) Sistema internacional de direitos humanos: Este marco aponta ao desenvolvimento e promoção do respeito aos direitos humanos de todas as pessoas, consagrados na Declaração Universal e especificados em várias convenções e tratados internacionais adotados por um bom número de Estados, entre eles o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), cujo preâmbulo comum proclama a indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos. No âmbito regional, vale a pena destacar o Acordo Regional sobre o Acesso à Informação, a Participação Pública e o Acesso à Justiça em Assun-

30 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL tos Ambientais na América Latina e no Caribe – conhecido como Acordo de Escazú, que recentemente entrou em vigência ao ser ratificado por 24 países da região. Para este marco foram criados sistemas universais de proteção, da ONU, e regionais do sistema interamericano. Estes sistemas incluem mecanismos para vigiar o cumprimento dos tratados, como a realização de um exame periódico sobre o cumprimento das obrigações e compromissos em matéria de direitos humanos de cada Estado ante ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. b) Preferências Apostólicas Universais (PAU): Depois de um longo debate, a Companhia de Jesus enumerou quatro preferências apostólicas que se transformam em importantes indicadores usados para entender se os nossos projetos e ações estão alinhados com os passos dados e desejados pela Companhia: i)Mostrar o caminho para Deus, mediante Exercícios Espirituais e discernimento; ii) Caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade numa missão de reconciliação e justiça; iii) Acompanhar os jovens na criação de um futuro esperançoso e; iv) Colaborar no cuidado da Casa Comum. As PAU são não somente indicadores privilegiados, mas também pré-requisitos fundamentais (básicos) para todas as ações planejadas pelos centros sociais da CPAL no campo da Ecologia Integral e da Justiça Socioambiental. c) Compromissos de ECOJESUIT: Em 2020, depois de uma série de diálogos que contaram com a participação de representantes de todas as Conferências provinciais, ECOJESUIT, organismos de incidência global dos jesuítas no campo da ecologia formularam seis compromissos globais que também podem servir como indicadores para os projetos de Ecologia Integral e de Justiça Socioambiental; a saber: i) Apoiar a agricultura familiar e as cadeias camponesas de produção; ii) Abordar a integridade socioam-

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 31 biental frente à pobreza e à degradação ambiental; iii) Advogar pela ação climática, considerando os direitos humanos e os povos indígenas; iv) Fortalecer a plataforma de ação das universidades em favor da Laudato Si’; v) Promover a eco-espiritualidade e a consciência crítica na educação básica; e vi) Monitorar e estudar as instituições econômicas emergentes no contexto global. d) Plano Estratégico 2020-2023 da Rede de Centros Sociais: A partir deste Plano destacamos as metas (orientações acordadas) não como indicadores de resultados, mas sim como horizontes comuns; a saber: i) Promoção da qualidade da democracia e modelos alternativos de desenvolvimento na América Latina e Caribe, através da cultura urbana, da Ecologia Integral e da economia solidária; ii) Promoção de espaços de formação, análise e discernimento para capacitar o desenvolvimento dos centros sociais; e iii) Fortalecimento institucional na sua dinâmica de articulação e compromisso com a justiça e a reconciliação. Cada uma destas linhas tem suas próprias ações e métricas planejadas para avaliar impactos e resultados. O que é bom sempre tende a ser comunicado. Toda a experiência autêntica da verdade e da beleza busca, por si mesmo, sua expansão; e qualquer um que experimente uma profunda liberação se torna mais sensível às necessidades dos demais. E, uma vez comunicado, o bem expande suas raízes e se desenvolve. Por isso, quem deseja viver com dignidade e plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer ao outro e buscar o seu bem. (EG, 9).

32 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL REFERÊNCIAS Compañía de Jesús (2019). “Preferencias Apostólicas Universales”. Em: https:// www.jesuitas.lat ------ “Quiénes somos”. Em: https://www.jesuits.global/about-us/the-jesuits/. ------ “Congregación General 34”. Em: https://pedagogiaignaciana.com/. ------ “Congregación General 35”. Em: https://www.educatemagis.org/. ------ “Congregación General 36”. Em: https://www.educatemagis.org/. Conferencia de Provinciales de América Latina y El Caribe. “Quiénes somos”. Em: https://jesuitas.lat/somos/somos-la-cpal. ECOJESUIT. “Compromisos frente al nuevo contexto postpandemia”. Em: https://www.ecojesuit.com/. Grupo de Ecología Integral (2020). “Ecología Integral y Derechos Humanos” – Seminario Virtual. Em: Somos Jesuitas (YouTube). ------ “Ecología Integral, Pandemia e Mudanzas Climáticas” – Seminario Virtual. Em: Somos Jesuitas (YouTube), 2020. ------ “Empregos Verdes para uma Reativação Sustentável” – Seminario Virtual. Em: Somos Jesuitas (YouTube), 2020. ------ “Plan Trienal de Trabajo 2020-2023”. OrganizacióndelasNacionesUnidas.“ObjetivosparaelDesarrolloSustentable”. Em: https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel/. Papa Francisco (2015). “Encíclica Laudato Si’”. Em: https://www.vidanueva digital.com/. Papa Francisco (2015). “Exhortación Apostólica Evangelii Gaudium”. Em: https://www.vidanueva digital.com/. Provincia Jesuita del Brasil. Rede de Promoción de Justicia Socioambiental. “Marco para Promoção da Justiça Socioambiental”. 2020. Em: https://olma.org.br/wp-content/uploads/2020/07/MarcoPJSA -2020-PUBLICA%C3%87AO-PROVISORIA-MAIO2020.pdf. Red de Centros Sociales de la CPAL. “Plan Estratégico 2020-2023.

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 33 ANEXO 1 GUIA DE APOIO PARA PROJETOS A PARTIR DA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA INTEGRAL Trata-se de um guia simples que sistematiza os elementos apresentados ao longo deste documento em relação aos desafios para o planejamento, execução ou avaliação das ações alinhadas com as perspectivas e pilares da Ecologia Integral. Este guia não pretende ser uma estrutura definitiva ou fechada; ao contrário, quer estar aberto a melhorias complementares, segundo o desenvolvimento de nossas práticas e reflexões em cada centro social ou projeto. 1. Aspectos sobre as perspectivas que compõem a Ecologia Integral Este projeto ou ação que planejamos: • Contempla uma percepção sistêmica dos fenômenos, lugares e pessoas envolvidas? • Promove um diálogo entre os diferentes tipos de conhecimento, garantindo, principalmente, a visibilidade daqueles conhecimentos que não são viáveis pelo sistema hegemônico atual? • Compreende elementos transcendentais – os mistérios da vida e os rostos de Deus na natureza e nos pobres –, além de ter alguma preocupação específica, direta ou indireta, com as gerações futuras? • Baseia-se numa ética do cuidado e na justiça socioambiental? • Relaciona, observa e respeita o contexto cultural local onde estamos inseridos e destaca os aspectos históricos destes territórios?

34 MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 2. Sobre os pilares • Como se vincula à defesa da dignidade humana e dos direitos humanos? • Como se vincula à defesa da Casa Comum, dos biomas e dos ecossistemas onde se insere? 3. Sobre os espaços estratégicos • Dialoga com algum (ns) elemento (s) da vida cotidiana (individual ou comunitária) promovendo um certo incentivo à mudança, em favor da Ecologia Integral e da Justiça Socioambiental? Em caso afirmativo, qual (is)? • Dialoga com algum (ns) elemento (s) do contexto social e/ou político, promovendo uma mudança em favor da Ecologia Integral e da Justiça Socioambiental? Qual (is)? 4. Aspectos relativos às agendas estratégicas • Com quais agendas estratégicas este projeto ou ação dialoga? Em que níveis?

MARCO DE ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO E O TRABALHO COM ECOLOGIA INTEGRAL GRUPO DE ECOLOGIA INTEGRAL 35 Agenda de Incidência Produção de conhecimento Tomada de decisões na sociedade Práticas cotidianas Diálogo inter-religioso e luta contra a intolerância. Educação para as relações étnico-raciais e luta contra o racismo e adiscriminação étnica. Infância e juventude segura e saudável. Migrantes, refugiados, direito à moradia. Gênero e luta contra o machismo e a homofobia. Políticas públicas, defesa da democracia, direitos humanos, defesa de presos políticos. Povos originários, defesa de territórios tradicionais, defesa de biomas e ecossistemas, defesa da água, combate de grandes projetos de mineração, defesa de defensores ambientais, educação popular e direitos da natureza. Trabalho decente, emprego sustentável, consumo consciente, economia sustentável, agroecologia e agricultura familiar. Outras?, Quais?

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