Diálogos sobre pandemia

CAPA PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE PANDEMIA Edla Lula CASA LEIRIA

O Diálogos em Construção surgiu em 2016, em forma de seminário, a partir das inquietações relacionadas aos acontecimentos políticos que conduziram ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A intenção era buscar compreender os reais fatores que levaram ao seu afastamento e vislumbrar possíveis saídas para o intrincado momento político por que passava o Brasil. Promovido pelo Centro Cultural de Brasília (CCB), a partir de 2017 o evento passou a integrar também as atividades do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Dom Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Inicialmente, as discussões ocorriam na sala Anchieta do CCB, com transmissão pelo YouTube. Em 2020, com a pandemia do coronavírus, os debates passarama se realizar apenas no YouTube. Presencialmente ou no ambiente online, a participação de cidadãos e cidadãs é a marca principal do evento e, neste livro, ela se faz presente a partir dos comentários às colocações dos palestrantes, sempre em dois convidados. Como se trata de “diálogo” e não de “debate”, as visões aqui colocadas quase nunca são antagônicas, mas complementares.

PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE PANDEMIA

Província dos Jesuítas do Brasil Pe. Provincial Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil Pe. José Ivo Follmann, S. J. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA Diretor: Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo: Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Diretor do Centro Cultural de Brasília – CCB e Coordenador do Núcleo Apostólico de Brasília e Goiânia Pe. Antonio Tabosa Gomes, S. J. Coordenador do Projeto Diálogos em Construção Pe. Thierry Linard, S. J. Equipe Diálogos em Construção Ana Cristina Souza (in memoriam) Guilherme Costa Delgado Luciano Fazio Rui Miranda Edla Lula www.olma.org.br

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2021 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA SOBRE PANDEMIA Edla Lula VOLUME 5

Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA VOLUME 5: SOBRE PANDEMIA Edla Lula. Edição: Casa Leiria. Revisão: Eliana Rose Müller. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

À querida Ana Cristina Souza, integrante de primeira hora da equipe Diálogos em Construção. Em agradecimento pela zelosa dedicação na organização de cada evento, até o dia de sua partida à morada Eterna, vitimada pela Covid-19, em 11 de setembro de 2020.

9 Diálogos em Construção – Diálogos sobre pandemia SUMÁRIO 11 Apresentação 13 Prefácio Pe. José Ivo Follmann S. J. 19 Introdução Pe. Thierry Linard de Guertechin S. J. 25 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? 39 A crise institucional no Brasil e suas implicações externas 55 Saídas políticas e jurídicas à crise institucional no Brasil 69 Há crime na gestão pública da pandemia, segundo o Direito Internacional? 79 Pandemia e os cinco anos da Carta Encíclica Laudato Si’

11 APRESENTAÇÃO Edla Lula Este livro não é propriamente autoral. O que aqui está escrito expressa a síntese de pensamentos e palavras de pessoas que participaram, seja como palestrantes ou como audiência, do programa “Diálogos em Construção”. Ele surgiu da avaliação feita entre os integrantes da equipe que organiza os “Diálogos” de que seria necessário revisitar os quarenta eventos realizados entre os anos de 2016 e 2020. A ideia tinha dois propósitos básicos: o primeiro era o de não deixar dissolver pelas nuvens do ciberespaço os conteúdos apresentados pelos especialistas, criteriosamente convidados a nos ajudar a pensar aquele momento crítico pelo qual passava – e ainda passa – a história do Brasil. O segundo, verificar em que medida o propósito inicial dos seminários foi contemplado, alcançando o seu objetivo de buscar respostas que explicassem os acontecimentos políticos e os meandros do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, comos seus desdobramentos nos anos seguintes. A mera transcrição das palestras não seria opção, pois, embora trouxesse em detalhes a riqueza de tudo o que foi dito, resultaria em um calhamaço de mais de quinhentas páginas, além do fato de que vários assuntos ali tocados teriam perecido. A frieza de um relatório também não comportava, pois, diante de tantas confirmações que evidenciaram o que foi dito, seria necessário atualizá-lo e dinamizá-lo. Tornou-se necessário, então, compilar os assuntos e agrupá-los em volumes temáticos, lançando, assim, o olhar crítico, à luz dos acontecimentos que se sucederam e que, em quase tudo, confirmaram as teses trazidas pelos especialistas. É importante ressaltar que as falas aqui registradas são editadas e retextualizadas para que se cumpra a transposição da oralidade, com as suas peculiaridades e vícios, para a linguagem escrita. Precisaram ser editadas ainda para que pudessem transmitir a informação commenor número de ca-

12 Apresentação racteres, preservando-se, evidentemente, com fidelidade, o conteúdo do que se disse. Para que o leitor possa conhecer a integralidade das falas, o livro dá acesso direto aos eventos, através do QR Code colocado na abertura de cada capítulo, que levará às palestras registradas no canal do OLMA no Youtube. Por fim, resta esclarecer que a jornalista que assina o livro traz o sobrenome Lula desde sua certidão de nascimento, não guardando nenhum parentesco com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Edla Lula

13 PREFÁCIO Pe. José Ivo Follmann S. J.1 Na história do Brasil talvez não se conheça tempos tão devastadores, de desencontros e de desencantos, como os que estamos vivendo nos últimos anos. São tempos tremendamente carregados por superficialidades e falseamentos e por uma grande ausência de diálogos construtivos. São tempos de truculências verbais, de desconstruções do outro; tempos que chegam a assumir, em alguns aspectos, tonalidades de barbárie obscurantista, por vezes estimulada pelos próprios governantes. Assim, a ideia de “Diálogos em Construção” soa como algo “contracultural” nos tempos atuais. Isto pode parecer um discurso duro para o início de um “prefácio”, e soa um tanto desconcertante, para algumas pessoas. São, no entanto, as melhores palavras que encontrei para desenhar um retrato caricato dos sobressaltos que muitos de nós vivemos, quase como assaltados por um pesadelo, sempre que tentamos entender o que está acontecendo no Brasil de hoje. Se “Diálogos em Construção” soa como “contracultural”, é disso que mais estamos necessitados. O terreno é falso e movediço e a “construção” exige passos de paciência e de reforços consistentes. Não somos, obviamente, um “país maldito” ou uma sociedade isolada sofrendo deste mal. Em muitas outras sociedades o desenho tende a ser parecido. A partir de inícios de 2020 fomos assaltados por uma pandemia assustadora. Mas o que introduz esta nossa reflexão não é a pandemia. Nem é decorrência da pandemia. Não estou falando da pandemia. Sim, é verdade, ela existe, é uma realidade dolorosa, tanto pelo que 1 Jesuíta. Sociólogo. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. Diretor do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.

14 Prefácio é em si, quanto pelo que poderia ter sido evitado ser. Nós fomos surpreendidos por esta pandemia avassaladora que está deixando traços indeléveis em todo mundo. Ela tendeu a agravar extremamente as coisas, entre nós, é verdade, mas o clima de esvaziamento humano e de desconforto geral já estava instaurado, há muito mais tempo. Estamos, há anos, vivendo a triste sensação de nos vermos reduzidos a contemplar um declínio melancólico de nossas esperanças. São muitos os sonhos acalentados com amor, dedicação e carinho, sobretudo, ao longo da primeira década de nosso século. Tudo parece estar ruindo aos poucos, como que sendo solapado diariamente por um turbilhão de perversidades cuja origem nem sempre sabemos identificar. Aqui estamos falando do Brasil, mas temos consciência que em muitas outras sociedades questionamentos semelhantes, com matizes e temporalidades diferentes, são também agitados. Certamente “Diálogos emConstrução” é fruto de reação sadia dentro deste contexto. Ou seja, foi uma resposta ágil e certeira, entre muitas outras. Mas, o que vivemos não é resultado de um movimento inesperado e incontrolável, que teria sido instaurado a partir dos últimos cinco ou seis anos. Muitos sonhos despertados e cultivados ao longo de nossa sofrida reconstrução do ordenamento republicano, pós-ditadura militar, já foram sendo solapados ao longo de todo esse processo. Foram muitas as buscas e ensaios de condições para uma autêntica democracia participativa, que se viram quase sempre frustrados ou morreram melancolicamente “em silêncios ensurdecedores”. Na verdade, também não é o que vivemos nas últimas décadas, anos pós-ditadura militar, que nos poderá fornecer elementos suficientes para um bom entendimento do momento presente. O que nós estamos vivendo hoje no Brasil, mais do que nunca, deve nos fazer voltar, também, para a triste herança que pesa de um passado de uma sociedade elitista e excludente, que ainda não conseguiu fazer as pazes consigo mesma e muito menos conseguiu amadurecer para um verdadeiro espírito republicano e de prática participativa e cidadã na democracia. Vivemos hoje em um regime democrático,

15 Prefácio sim, mas é uma perversão da democracia, expressa em um modo de governar estritamente fechado sobre os interesses de certos grupos em detrimento ostensivo do Bem Comum. Se este modo de exercer (ou perverter) a democracia conseguiu chão fértil para ser cultivado por quem hoje detém o poder, são necessárias, como sinalizei antes, referências mais amplas para um entendimento mais aprofundado. Parafraseando o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, somos uma sociedade sobre cuja história e estrutura pesa terrivelmente a tríplice marca do capitalismo, do colonialismo e do patriarcalismo. Esta tríplice herança continua desenhada vivamente pelos atuais traços de uma economia extrativista e acentuadamente financeira, geradora de desigualdades socioambientais escandalosas, pelo racismo estrutural quemostra de forma renovada as suas evidências emmúltiplos casos e pela consciência sempre viva da morosidade com que avança a conquista da equidade em todos os âmbitos da sociedade. A expressão “Diálogos em Construção”, na contracultura deste cenário, soa como uma brisa reconfortante dentro do clima de claro desconforto que assola todas as pessoas capazes de pensar para além da mordaça conjuntural e estrutural que nos emudece. “Diálogos em Construção” é um projeto poderoso cujas sementes discretas jogadas nas frestas de uma cultura política bitolada movimentam de forma singela e teimosa os sonhos e as esperanças que não morreram. Muitas dessas sementes vêm caindo em solo fértil e as sementeiras se multiplicam. E talvez se possa dizer que, com isso, plantações robustas são realimentadas desafiando a realidade adversa. Fazem amadurecer frutos vigorosos, portadores de processos de conversão, que acalentam os sonhos que jamais morrem, ali onde existem e persistem seres que acreditam em sua vocação humana. Se nos reportarmos para um quadro mais amplo, podemos nos amparar nos muitos avanços que estão sendo demonstrados focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões, em termos de humanidade e de planeta terra. É o que está sublinhado na ideia de que tudo está estreitamente interligado. Uma voz que se ergueu, neste sentido, com lide-

16 Prefácio rança destacada nos últimos anos é a voz do papa Francisco. Esta voz está mais sistematicamente sintetizada em suas duas cartas encíclicas sociais, a “Laudato Si’” (LS, 2015) e a “Fratelli Tutti” (FT, 2020). Nas expressões do papa Francisco subjaz um apelo evidente para pensarmos o todo em sua complexa interligação como um novo paradigma. É um convite que sinaliza para a condução do cuidado da humanidade e do planeta Terra, que é a nossa Casa Comum. Trata-se de um apelo a toda a humanidade, dirigida particularmente a todos/as aqueles/as que estão na frente da produção do conhecimento e das tomadas de decisão, na busca de respostas frente aos desafios manifestos, de forma dolorosa, na situação da humanidade, da vida e do planeta Terra nos tempos atuais. Está dirigida, também, ao modo de proceder dos seres humanos em seu dia a dia. Ao apresentar a carta encíclica FT, na Praça São Pedro, em 8 de outubro de 2020, o papa Francisco assim se expressou: “A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz”. É importante anotar que papa Francisco não fala “duas vias”, mas fala “uma única via”. Por trás desse cuidado com a linguagem reside, sem dúvida, um forte recado. O convite do papa interconecta, de forma orgânica, a produção do conhecimento, a tomada de decisões e o modo de vida do dia a dia, ao orientar a humanidade na grande tarefa que é o Cuidado da Casa Comum. Trata-se de uma Casa Comum que está caindo aos pedaços, ferida por um câncer mortífero: as tremendas desigualdades, expressões vivas da injustiça. “Vivemos em um mundo estragado”, dizia um documento da Companhia de Jesus, em 1999, fazendo eco a muitos gritos, escritos e declarações, gerados em circunstâncias de diferentes origens e por organizações e movimentos diversos. Um mundo estragado em todos os aspectos, desde as relações entre as pessoas, as relações de organização da ordem pública, as relações políticas, econômicas e culturais, até as relações ambientais no descuido clamoroso para com os dons da criação. Trata-se de um mundo sobre o qual se debruçam diferentes ecologias (humana, da vida cotidiana, econômica, am-

17 Prefácio biental, cultural, política, social etc.), todas elas representando importantes acúmulos de conhecimento e contendo ricas formulações, podendo-se vislumbrar, nelas, caminhos ou dimensões daquilo que é conhecido, mais radicalmente, como ecologia profunda, ou, através de novas composições, como vem sendo intuído na construção da proposta de uma ecologia integral (LS, 137-162). Os estragos quase indescritíveis em relação à harmonia da natureza, manifestos em paisagens horrendas de destruição da vida, sobretudo, nas periferias pobres das grandes cidades, não são mais do que manifestações dos estragos milenares que vêm marcando, de forma crescente, a autodestruição da própria humanidade, sua capacidade de se organizar e viver em seu habitat. Nessa realidade de autodestruição e degradação alguns tentam refugiar-se em seus mundos de refúgio silencioso e privado, enquanto outros engrossam a violência barulhenta. Mas há mais “uma opção sempre possível: o diálogo” (FT, 199). “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isso se resume no verbo ‘dialogar’” (FT, 198). Na carta encíclica FT (198-224) somos presenteados por uma rica reflexão sobre o “Diálogo e a Amizade Social”. É um convite para nos posicionarmos contra a cultura dos monólogos autodestrutivos e destrutivos dos outros, buscando construir juntos, de forma consensual os caminhos da verdade. Trata-se de toda uma nova cultura que deve ser construída, iluminada pela promoção do encontro e do prazer de reconhecer o outro. Em suma, um convite para trilharmos caminhos de reencontro com a nossa própria humanidade. Talvez, infelizmente, seja um convite para estarmos na contramão daquilo que hoje é mais ostentado e visível. “Diálogos em Construção” veio ocupando, desde 2016, determinados tempos e espaços de um valente grupo de pessoas, que se debruçou, mensalmente, sobre temas identificados como mais preocupantes de dentro dos múltiplos processos de degradação que estamos vivendo. Foram pautas envolvendo múltiplas problemáticas econômicas, políticas,

18 Prefácio sociais, éticas, culturais e ambientais. A publicação sistematizada dos “Diálogos em Construção” visa a ampliação dos diálogos e da sua construção para outras instâncias e grupos, para além dos públicos que estiveram diretamente envolvidos emmomentos dados em um espaço e tempo bem delimitados, em cada mês. A publicação talvez faça parte do processo de paciência e dos reforços consistentes na “construção”. “Diálogos em Construção” pulsa com vigor renovado, vendo, assim, o seu esforço reverberado e multiplicado com a possibilidade de novas qualificações das mesmas vozes, em círculos mais amplos. Com uma coletânea dividida em cinco grandes agrupamentos temáticos – “o momento da política”, “repercussões da pandemia”, “economia, ecologia e a questão agrária”, “fé e ensino social da Igreja” e “o momento da sociedade” – o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) propõe que os diálogos continuem em construção, repercutindo, despertando novas construções e novos diálogos. Com a reverberação esperada, os diálogos, com certeza, poderão reacender as chamas de nossas e novas esperanças. “Diálogos emConstrução” quer ser agente de multiplicação de esperanças e de cultivo do grande sonho sempre renovado de um “novo mundo possível”. Quando o termo “diálogos” como algo “contracultural”, é salutar que seja apresentado como “em construção”. Boa leitura e boas construções dialogantes!

19 INTRODUÇÃO Pe. Thierry Linard de Guertechin S. J.1 O contexto dos “Diálogos em Construção” situa-se na linha de contribuir para a superação do clima de divisão ideológica e intolerância política que, infelizmente, acometeu o Brasil em período recente, levando a polarizações e maniqueísmos de toda ordem, que dividem famílias, vizinhos e até amizades de longa data, praticamente impedindo conversas políticas respeitosas e diálogos frutuosos sobre diferenças de pontos de vista. Ele parte do princípio de que a sociedade brasileira não pode permitir que os diálogos e até mesmo debates civilizados sejam interditados em um momento em que o ambiente de crise econômica, social e política que vivemos clama por discernimentos éticos significativos, susceptíveis de superar as raízes mais profundas desse clima de incerteza geral. Quando os seminários tiveram início, em 2016, havia um formato presencial em que, numa pequena sala, reuníamos lideranças comunitárias, representantes da sociedade civil, igrejas, formadores de opinião e outros movimentos em uma interlocução com dois outros convidados, especialistas nos temas específicos de cada evento. A pretensão nunca foi a de convidar palestrantes que tivessem posições diametralmente opostas, pois, assim, arriscaríamos reproduzir os debates acalorados, inconclusivos e, portanto, infrutíferos que se viam em outros ambientes. O critério sempre foi o de trazer diferentes pontos de vistas localizados dentro do espectro do Estado Democrático de Direito. Também não faz parte dos objetivos formar uma grande plateia, mas reunir um pequeno grupo de pessoas capazes de replicar as mensagens em seus ambientes específicos de atuação. No entanto, optou-se por transmitir os eventos pelo 1 Teólogo, geógrafoedemógrafo, coordenadordoprojeto“DiálogosemConstrução”.

20 Introdução YouTube para dar àqueles comqualquer tipo de dificuldade de locomoção a possibilidade de acompanhar. Em março de 2020, surpreendidos com a pandemia do coronavírus, a Covid-19, tivemos – assim como aconteceu em todos os ambientes de aglomeração – que migrar totalmente para o formato online. Mantivemos estrutura semelhante, apenas diminuindo os tempos das falas iniciais para não submeter o espectador à superexposição na tela. O “Diálogos” foi favorecido, de certa maneira, por essa nova e indesejada circunstância, pelo fato de poder contar com a presença de alguns palestrantes que haviam recusado convite anteriormente por dificuldades de deslocamentos até Brasília, sede do evento. A partir daquele momento, tornou-se imperativo envolver o contexto da pandemia nos debates que se seguiram. O Brasil, que já vinha mergulhado em uma profunda crise política, econômica e social, precisou enfrentar a crise sanitária. O país perdeu por completo o rumo e o clima de intolerância se intensificou, com a polarização entre os que defendiam a priorização de programas emergenciais de saúde, que incluía o isolamento social e até o lockdown versus os chamados negacionistas, que priorizavam a manutenção das atividades econômicas, eram contrários ao isolamento social e até ao uso de máscaras. É deste ambiente que trata este volume da coleção “Diálogos em Construção”: sobre Pandemia. Aqui são tratados quatro blocos temáticos que buscam abranger questões que afetam a vida brasileira neste contexto de pandemia. No primeiro capítulo, aborda-se o aspecto econômico, com o questionamento “Economia pós-pandemia do Coronavírus: onde estamos e para onde vamos?”. Busca-se entender qual seria a saída, diante das necessidades de concentrar esforços para combater os problemas ligados à saúde, com hospitais com leitos esgotados, com colapso no sistema de saúde, como emManaus, e o crescente número de mortos que o Brasil acompanhou, figurando como o segundo país commais óbitos. A situação da saúde tornou-se um ingrediente importante para pensar um novo amanhã no campo econômico, em

21 Introdução que se valorizasse mais a vida e as pessoas em detrimento dos sistemas econômicos, sistemas esses que já davam sinais de esgotamento. Basta lembrar da crise financeira iniciada em 2008, nos Estados Unidos, que atingiu o Brasil mais agudamente em 2013, sem que o país conseguisse se recuperar até o advento da pandemia. A proposta desse capítulo é de discernimento entre voltar ao que existia antes ou aproveitar essa crise vendo claros momentos de reconstruir outro tipo de economia, outro tipo de sociedade que garanta a democracia política, mas também uma democracia econômica, uma democracia social. É momento de rediscutir alguns parâmetros do chamado neoliberalismo que está dominando o Brasil, assim como omundo, ou talvez seja para nós um momento interessante para ver onde estamos e para onde vamos. Complementarmente ao tema da crise econômica, o segundo capítulo trata da “Crise institucional do Brasil e suas implicações externas”. A já evidente crise institucional brasileira se acentuou durante a pandemia e ganhou a esfera internacional, não apenas em função das posições adotadas pelo presidente da República e seus ministros em função da pandemia, mas também a partir de atitudes em outros campos da vida brasileira, como o meio ambiente e as relações comerciais e diplomáticas. O terceiro capítulo aborda a face interna do país dessa crise institucional ao tratar da relação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A proposta é buscar soluções políticas e jurídicas para interromper o clima desarmônico entre os três Poderes da República que acabam por afetar também os ânimos da vida social. Com o tema “Saídas políticas e jurídicas à crise institucional no Brasil”, busca-se construir o caminho para retornar ao Estado Democrático de Direito. Na última década, o país acompanhou um processo de politização do judiciário e de judicialização da política de tal maneira que afetou drasticamente a imparcialidade, trazendo sérias consequências para a natureza desses que são os principais pilares da democracia.

22 Introdução Existem atualmente em processo de pré-exame, no Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, algumas denúncias de entidades brasileiras e internacionais sobre presumido cometimento de crime de genocídio pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, na gestão da Pandemia Covid-19. É disso que trata o quarto capítulo deste volume, onde são aprofundados aspectos do Direito Internacional que levaram as entidades signatárias das petições a recorrerem ao Tribunal de Haia. O livro se encerra questionando a razão de ser da própria pandemia, uma clara resposta da natureza a tanto deszelo com a Casa Comum. Ao comemorar os cinco anos da publicação da Carta Encíclica Laudato Si’, o “Diálogos em Construção” quis falar da importância de se prestar atenção ao apelo que faz a Laudato Si’ para a construção de uma nova economia. Já ficou muito claro para todos que o mundo não será o mesmo após a pandemia que, se de um lado provocou tristeza, desolação e sofrimento, foi por essa mesma dor que ela nos impele a construir um novo mundo, com ênfase em outros valores que não somente omonetário. Este capítulo reflete exatamente sobre uma nova economia, mais humana e mais ecológica. Que as linhas desse livro possam colaborar com o discernimento dos brasileiros sobre os rumos históricos a que estamos sendo fortemente desafiados e um novo país seja construído a partir dessa experiência de mortificação pela qual todos foram obrigados a passar.

Para acessar o debate utilize o aplicativo leitor de QR-Code disponível no seu celular apontando-o para a imagem abaixo ou acesse https://www.youtube.com/watch?v=mlTLwt1rcnY

25 ECONOMIA PÓS-PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS? Convidados Carlos Bernardo Vainer1 Guilherme Delgado2 Em março de 2020 o Brasil foi pego de surpresa com a pandemia do coronavírus que, no final de 2019, atingiu a China e rapidamente se propagou para a Europa e para as Américas. A crise sanitária juntou-se às já profundas crises econômico- -financeira e política do Brasil. Rapidamente o país ocupou o segundo lugar em número de óbitos e experimentou o colapso no sistema de saúde, seja público ou privado. O enredo que se desenrolou ao longo de dois anos caberia em uma série de streaming. Enquanto o mundo impunha regras rígidas de isolamento social, com medidas como lockdown, aqui em nosso meio, o próprio presidente encabeçou a campanha contra o uso de máscaras, apoiado em teorias negacionistas. Houve investimentos em tratamento precoce e propaganda de um kit Covid – conjunto de medicamentos supostamente capazes de curar a doença, sem o devido respaldo científico. A condução da política de combate à pandemia, totalmente contrária às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), resultou em mais de seiscentas mil mortes registradas no país até novembro do ano de 2021, grande parte evitáveis, segundo critérios de saúde pública internacionalmente aceitos. Tornou-se escândalo internacional o colapso no sistema de saúde de Manaus, atingindo muitas comunidades amazônicas. O Parlamento reagiu com a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar atos e omissões do 1 Sociólogo e economista, professor no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 Economista, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

26 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? governo federal. O relatório final apontou para ummacabro esquema de corrupção envolvendo agentes públicos e empresários na compra de medicamentos e negociações para compra superfaturada de vacinas. O resultado foi o indiciamento de oitenta pessoas, incluindo o presidente da República Jair Bolsonaro, acusado de ter cometido nove crimes: epidemia com resultado morte; charlatanismo; infração de medida sanitária preventiva; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; crime de responsabilidade e crime contra a humanidade. A pandemia da Covid-19 impactou negativamente as economias do mundo inteiro em seu primeiro ano. Apenas a China não registrou queda no Produto Interno Bruto, mas cresceu em um ritmo bem menos acelerado do que o de costume. Os Estados Unidos observaram retração de 3,5 %, a Alemanha, de 4,9 % e o Reino Unido, de 9,9 %. Essa performance refletiu a forte influência da pandemia somada a uma crise econômico-financeira que já estava latente. O PIB brasileiro, que já era fraco, caiu 4,1 %, influenciado também pela instabilidade política que vemmarcando o país desde o ano de 2014. Quando no mundo, em consequência da própria crise, o sistema capitalista e mais especificamente o neoliberalismo vem sendo questionado e repensado, no Brasil, a partir de 2019, optou-se por uma política econômica ultraliberal, e privatista, cujos efeitos danosos foram escancarados com a pandemia. Convidado do “Diálogos emConstrução” domês de abril de 2020, o sociólogo e economista Carlos Bernardo Vainer faz um trocadilho com o slogan do governo Jair Bolsonaro, “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, para buscar os fundamentos mais profundos da pandemia que, em seu entender, se originam em um processo de inversão, em que o sistema capitalista se sobrepõe aos interesses humanos. “A sociedade contemporânea coloca a economia acima de tudo e o interesse privado, sob a forma de capital, acima de todos. Mas se o desejo é pensar alternativas e possibilidades de superação da crise, de ultrapassagem histórica das formas dominantes vigentes de relações sociais, o desafio é questionar essa posição domi-

27 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? nante da economia na sociedade. O que nós temos que fazer, justamente, é nos interrogar sobre os modos e meios possíveis de práticas sociais de processo, seja a nível global, seja a nível micro localizado, em que a economia não comande a vida de todos e todas, mas, ao contrário, em que a vida de todos e todas comande a economia”, diz, citando o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, para quem “a vida tem que estar à frente da economia sempre e não apenas agora”. Vainer recorre ainda ao filósofo francês Bruno Latour, em seu artigo “Imaginando gestos que barrem o retorno ao consumismo e à produção insustentável pré-pandemia”,3 para sugerir uma mudança nos sistemas econômicos. “Não se trata mais de retomar ou transformar a produção ou de retomar e transformar um sistema de produção como querem aqueles que pretendem superar a crise para que tudo volte a ser como era. Trata-se de abandonar a produção como único princípio de relação comum”, preconiza Latour em seu artigo. Para resolver a crise, afirma Vainer, não basta criar prognósticos, é preciso “repensar os caminhos possíveis de sua superação, é necessário em primeiro lugar abandonar velhos preconceitos, velhos dogmas, velhas ideias que apenas repõem no âmbito das ideias aquilo que está colocado no regime das relações materiais sociais concretas, que é a dominação da economia”. O sociólogo avalia que se as crises, por um lado, contribuem para tornar mais visíveis as dimensões “mais perversas e brutais da sociedade, como as desigualdades, o patriarcalismo, o machismo, o racismo, a destruição das bases materiais da existência humana”, ampliando o sistema dominante, por outro também podem abrir caminhos para novas práticas, novas tendências e formas de sociabilidade, vivências, experiências e forças sociais com potencial transformador. Essas tendências apontariam não para a reprodução ampliada do sistema nem para o restabelecimento do status quo ante, mas para uma superação da crise no próprio sistema que a engendrou. 3 Disponível em: https://climainfo.org.br/2020/04/02/barrar-producao-insusten tavel-e-onsumismo/.

28 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? A crise também pode lançar luz sobre táticas como sociabilidade, vivências, experiências e forças sociais que podem vir a engendrar potencialidades transformadoras, tendências pois que apontariam para o que seria uma superação não apenas da crise, mas no próprio sistema que a gerou. Essas dimensões e tendências se expressam na luta política, que é também luta cultural, moral e espiritual em que se opõem de um lado aqueles que querem superar a crise o mais rapidamente possível, para restabelecer a normalidade, isto é, restabelecer a ordem, a ordem social vigente antes da crise. De maneira que a crise não seja senão um sobressalto, uma trajetória contínua e ininterrupta de reposição interminável dos mesmos pressupostos dessa sociedade: a exploração, a opressão e, claro, a subordinação da vida à economia, aos preceitos e preconceitos econômicos. Há também aqueles que querem superar a crise e acham que isso é possível sob a égide de um capitalismo, não obstante totalmente financeirizado, e resgatar os princípios que dominaram o pensamento econômico no pós-segunda guerra mundial, sobretudo nos países centrais, e até os anos 80 do século passado foi dominante e propagam um retorno ao pensamento keynesiano, defendem que a economia poderia sob a égide de um estado capaz de intervir para manter o crescimento e promover algumas medidas redistributivas. Defendem que a crise poderia ser superada nos marcos mesmos do regime capitalista e desta forma preservar o essencial desse regime, mas ao mesmo tempo propiciar a retomada de um crescimento que seria na promessa dos Neokeynesiano mais justo e equilibrado. Há ainda aquelas forças de tendências que apontam não apenas para a superação da crise, mas o regime social, regime social que também é econômico. Mas mais do que isso, regime social em que a economia sobre a forma de capital submete a vida humana, social e individual. Projetar o que viria no pós-pandemia tornou-se um exercício de adivinhação, tarefa difícil atémesmo para osmais inspirados futurólogos. Cunhou-se a expressão “novo normal” para dizer que a vida não será a mesma depois que tudo passar, mas também não se sabe o que será. “Em primeiro, em segundo e terceiro lugar, nada está escrito”, adverte Vainer, sem arriscar um palpite. Não está escrito que a situação vai piorar, assim como não está escrito que haverá uma revolução. “Não está escrito que, finalmente, já que a crise põe nuas as pro-

29 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? fundas desigualdades, a perversidade, o processo de destruição da esfera pública, da saúde pública, que por causa dessa evidenciação todos se levantarão conscientes para derrubar o que está aí e instaurar uma sociedade justa em que a vida domine produção, em que o princípio fundamental não seja o lucro, mas o bom viver. O desenlace da crise está em aberto”, observa. No entanto, salienta o sociólogo, algumas “tendências dominantes” apontam alguns indicativos. “Para entender essas tendências dominantes, é necessário dar-se conta olhando um pouquinho para o passado recente”. No caso brasileiro, Vainer menciona algumas “heranças pesadas”. A primeira delas seria a dos resquícios do regime militar que foram mantidos no processo de transição para a redemocratização, a partir dos anos 1980. O processo, segundo ele, não se completou porque “manteve intactos elementos fundamentais do regime social e do regime político vigente, inclusive do regime militar”. Ele enumera como exemplos a Lei de Segurança Nacional (LSN), os crimes cometidos por militares à época da ditadura e a militarização das polícias. Um dos principais instrumentos de repressão do regime militar, a LSN só foi extinta em setembro de 2021, após a constatação de que o governo de Jair Bolsonaro vinha usando esse expediente para calar os críticos ao presidente. Embora estivesse praticamente adormecida desde a aprovação da Constituição de 1988, ela foi amplamente utilizada entre os anos de 2019 e 2020. Somente em 2020 foram instaurados 51 inquéritos com base na LSN: entre os alvos estavam jornalistas, cartunistas e youtubers que teceram críticas a Bolsonaro. A outra herança seria a reforma neoliberal do estado iniciada nos anos 1990, no governo de Fernando Collor de Mello e que se estendeu até os governos de coalização do Partido dos Trabalhadores “que apesar de medida redistributiva, deixou intocado o essencial da reforma neoliberal: os processos de privatização e de autonomização do Banco Central”. Outra herança, para ele, foi o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a que chama de “golpe jurídico-parlamentar”, que acabou por revelar a fragilidade dos partidos e

30 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? movimentos sociais na resistência ao golpe. “Os partidos, os sindicatos, os movimentos da esquerda nascidos nos anos 70 e 80 se mostraram totalmente incapazes de convocar e liderar uma resistência. Eu não digo nem derrotar o golpe, mas pelo menos oferecer uma resistência minimamente consistente. Não apenas não fomos capazes de resistir ao golpe, como estamos sendo incapazes nos últimos anos, depois do golpe, de resistir a uma série de ataques diretos e brutais a direitos conquistados. Está aí a reforma da legislação do trabalho, da previdência, para citar alguns exemplos”. Para Vainer, tanto os partidos tradicionais da direita quanto os da esquerda foram incapazes de trazer respostas ao momento político, o que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro, apresentado como um outsider, apesar dos 29 anos que passou como deputado federal. “Os partidos da direita também se revelaram em uma profunda crise, incapazes de formular qualquer projeto nacional com capacidade hegemônica, isto é, com capacidade de atrair e penetrar setores importantes da sociedade”, avaliou. Já os da esquerda foram “incapazes de dar respostas fora dosmesmos já conhecidosmodelos demacropolíticas neoliberais com algumas compensações distributivas”. Personagens centrais de movimentos que impulsionaram episódios como as “Diretas Já”, pelo fim da ditadura e os “Caras Pintadas”, que derrubaram o ex-presidente Fernando Collor, os militantes de esquerda, no entender do pesquisador, também fraquejaram na resistência ao golpe de 2016. Houve um golpe, mas acho que é importante reconhecer que, além do golpe, houve uma derrota importante no tecido social, na base da sociedade. Aqueles militantes, aqueles grupos, aquelas dinâmicas que promovem, estimulam solidariedades, organizações e lutas no tecido social, também viram a sua abrangência diminuir. Embora combativos, aguerridos e inovadores na forma de pensar e agir, os grupos culturais, os grupos identitários, os movimentos territorializados, localizados, organizam, mobilizam, atingem, sensibilizam ainda parcelas bastante minoritárias, mesmo entre as camadas populares, entre as vítimas do patriarcalismo e do machismo, entre aqueles que sofrem o racismo, seja em suas formas mais especializadas ou seja em suas formas mais brutais, como o genocídio da juventude negra.

31 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? Nessas condições, em que estamos ainda longe de termos revestido as condições que conduziram às derrotas, o quadro é muito preocupante. A brutalidade com que Guedes [ministro da Economia, Paulo Guedes] anuncia a austeridade que virá ainda mais aguda, é assustadora. A solidez que parece demonstrar a base de apoio social de Bolsonaro e seus arreganhos totalitários é mais que preocupante. Como sempre, o problema dos dominantes será omesmo, fazer comque os trabalhadores mais pobres paguem a crise. E claro, criminalizando os que resistem. Favorável para os que poderão acionar os batalhões aguerridos da extrema-direita, violentos e sedentos de sangue. E, ao que parece, até mesmo não é de se eliminar essa possibilidade, as forças armadas que viriam sob a máscara da restauração da lei e da ordem e reprimir movimentos sociais. O economista Guilherme Costa Delgado, ao fazer o caminho de volta sugerido por Vainer, observa que a situação de saúde e de insanidade social em todo mundo – e não apenas no Brasil - se agravou com a pandemia, mas, na verdade, a Covid-19 replica outras epidemias dos últimos 20 ou 30 anos. Ele aponta a epidemia da Aids nos anos 1980; a H1N1, conhecida como gripe aviária; a epidemia do Ebola, mais restrita à África e a brasileira Chikungunya. “A maior parte dessas epidemias estão relacionadas a gripes. De forma que há uma cadeia epidêmica, em geral, de origem nas relações do homem com a natureza rural devastada ou, mesmo que não seja a natureza devastada, às vezes as epidemias surgem em espaços de alta concentração de animais de cultura pecuária, em que essa alta concentração, por razões econômicas, tambémprovocamum stress profundo e, no stress profundo, vem as mudanças, patógenos que afetam a vida humana”, comenta, ao relacionar o surgimento de tais surtos às formas de superexploração dos recursos naturais e à convivência humana em espaços degradados. “Não se trata de epidemia sem explicação. Existe ainda um fundo de natureza socioeconômica que precisaria ser mais bem clarificada para que se pudesse avançar nas medidas preventivas para um saneamento das próprias condições humanas, produtivas e reprodutivas dessa pandemia”, alerta Delgado.

32 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? O outro aspecto destacado pelo economista é o fato de, no mesmo período, ter havido “crises econômico-financeiras frequentes e intensas e cada vez mais profundas”, a última delas iniciada em 2008 e da qual o Brasil, por razões internas, ainda não saiu. Concordando com Vainer, Guilherme diz que a volta à normalidade econômica no pós-pandemia “é uma ideia perfeitamente anômala, no sentido de anormal. Porque a volta à normalidade depois da crise epidêmica seria a volta à economia em estado de crise permanente de governabilidade e de produção e reprodução da sua própria forma de ser”. O novo normal, portanto, não poderá ser a volta à normalidade de antes. “A normalidade é anormal e não nos garante, nem do ponto vista econômico nem do ponto de vista sanitário, que nós não estejamos cumprindo aquele papel de acomodar os ovos da serpente que mais adiante vão eclodir e se manifestar com toda a virulência”. Para situar o Brasil, Delgado traça um panorama das respostas dadas, de imediato, pelos governantes de vários países à Covid-19 e como essas respostas puderam criar um eixo de orientação para o imediato. Há umgrupo pequeno de países, que por razões de certo equilíbrio político, diligência interna, sistema de saúde mais estruturados, conseguiram em dois, três meses, resultados mais ou menos saudáveis, se assim pudermos dizer. Estariam nesse rol China, de onde surgiu tudo, Alemanha e Portugal, por exemplo. Estes três países conseguiram, de forma concertada, controlar a crise epidêmica. Obviamente nada implica dizer que a epidemia esteja controlada. Até porque, há um grau elevado de incertezas sobre a replicação da epidemia, volta de infecções, ainda está tudo em aberto.4 Há um outro grupo de países que foram retardatários nas respostas, não acreditaramnos efeitos propagativos da epidemia. Neste grupo estão Itália e Espanha, cujos resultados foram catastróficos, mas também, a posteriori, esses países apresentaram um perfil de superação da crise. Mas há um terceiro grupo de países onde, infelizmente, está incluído o Brasil, assim como estavam os Estados Unidos no primeiro momento e, por incrível 4 Ao final de 2021 a pandemia encontrava-se em sua 4ª onda na Europa.

33 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? que pareça, a Nicarágua. Eles integramo grupo negacionista, ou seja, os países que negam a existência da pandemia. Graças a Deus que não o país como um todo, mas a figura central do governo, o presidente da República, como o Jair Bolsonaro, o Donald Trump, então presidente dos EUA e Daniel Ortega. E, com isso, eles colocam uma dificuldade enorme para o trato político da questão. Porque mesmo uma pessoa, mas sendo o dirigente máximo do país, se não puder fazer muito bem, muito mal ele pode fazer. Esses negacionistas estão no rol daqueles que agravam no tempo e na profundidade as implicações da epidemia. Porque são vírus da parte da virulência política, da crise política que está aí e aparentemente uma das consequências da pandemia é erodir a liderança que esses chefes de governos detêm nas mãos ou detinham nas mãos antes do surto epidêmico. Portanto, nem tudo são flores nem tudo são espinhos nesse tipo de análise. De fato, o negacionismo de Trump foi um empurrão para o seu fracasso nas eleições presidenciais de 2020, nos Estados Unidos. Já os dois latino-americanos amargarambaixos índices de popularidade em seus respectivos países e chamuscaram ainda mais a sua imagem perante a comunidade internacional, após insistirem emminimizar a gravidade da pandemia. Delgado também destaca a importância de Estado e sociedade civil atuarem no combate aos elementos que circunscrevem a crise. “O Estado, ali onde ele está organizado, em termos de saúde pública como em termos de política econômica, tende a exercer uma política neo-keynesiana-clássica, que é a política de sustentação de renda e de emprego para o conjunto da população enquanto durem as exigências de isolamento sanitário mais radicais. Essa, portanto, tem sido a trajetória dos países da União Europeia”. No Brasil, houve forte resistência do ministro da Economia e do próprio presidente Jair Bolsonaro em conceder o auxílio emergencial, mas, sob pressão do Congresso Nacional, foi aprovado o repasse de R$ 600,00 para população de baixa renda. “Ora, se o desemprego aumenta, há uma queda de demanda, há uma queda de oferta, se o Estado não sustentar a renda e o emprego das pessoas, o sistema ‘vai ainda mais para o brejo’, isso não tem discussão”, salienta Guilherme Delgado.

34 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? UMA NOVA ECONOMIA Ambos os especialistas veem no abalo emocional provocado pela pandemia, com sofrimento, dor, mortes e mazelas sociais como o desemprego, uma oportunidade para os sistemas econômicos saírem mais regenerados da crise. Bastante emblemática foi a forma como a natureza expressou gratidão quando, por força da pandemia, diminuiu-se a emissão de gases em todo o mundo. Em poucos meses, o lockdown imposto a bilhões de pessoas, diminuindo o ritmo de produção de bens e serviços, menos carros circulando pelas grandes cidades, desencobriu belas paisagens antes incrustadas pela poluição. Um estudo divulgado pela Universidade de Toronto, no Canadá, constatou a diminuição de 40 % na poluição do ar ao comparar os níveis de emissão de gases entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2020, em cinco grandes cidades da Europa e Ásia que haviam decretado o isolamento social em fevereiro de 2020. Em abril de 2020, apenas três meses após os primeiros anúncios de medidas de isolamento social, rodaram o mundo fotos do pico do Himalaia visto por moradores no norte da Índia, coisa que não acontecia há mais de trinta anos. Esta reação da natureza foi vista como um clamor por um sistema econômico menos poluente e chama atenção para a necessidade de um retorno à normalidade econômica demodo sustentável. Outro fenômeno observado a partir da quarentena é a economia solidária, que possibilitou o comércio do pequeno produtor, a troca de mercadorias e as compras coletivas, por exemplo. Para Vainer, são sinais de que uma nova economia é possível. A crise revelou a perversidade do regime vigente. Ela parece estar suscitando um renascer de formas de solidariedade em relação as camadas populares que pareciam sufocadas pelo avanço da ideologia individualista, competitiva, que tem na chamada teologia da prosperidade sua expressão mais aguda. Nessas novas formas, ressurgemdispositivos, práticas de sociabilidade e convivência, de trocas subjetivas, mas também de trocas de materiais que não são dominadas pela lógicamercantil. Trocasmateriais de produção e reprodução da vidamaterial que es-

35 Economia pós-pandemia do coronavírus: onde estamos e para onde vamos? tão fundadas em outras relações que não as relações do ganho privado, no interesse individual, da competição. E essas formas podem ser a semente de alternativas não apenas à crise, mas ao retorno à normalidade. Na pior das hipóteses, essa esquerda social, se não for capaz de reverter as tendências dominantes será, em qualquer circunstância, a base principal de resistência às novas e brutais agressões que a direita e as nossas elites farão aos direitos da classe trabalhadora das camadas populares, das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos quilombolas. Portanto, mais do que fazer um prognóstico do que deve vir a acontecer, eu estou chamando a nós, a todos, a nos engajarmos para fazer com que o desenlace dessa crise seja a abertura de novas possibilidades históricas. A história está em aberto e as possibilidades estão aí. A situação é dramática, muito difícil, mas as possibilidades de uma história ser reinventada são colocadas para todos nós. Guilherme Delgado se ressente da ausência de “uma consciência da sociedade civil, mais firme, no sentido de intentar inovações por fora do sistema econômico”. Em sua perspectiva, seria necessário “relançar a economia”. Será necessário um conjunto de inovações por fora da política keynesiana, no sentido de criar mecanismos de trocas, mecanismos de atendimentos, mecanismos de produção, formas de sociabilidade que permitam às pessoas ultrapassar a crise e criar uma engenharia social que lhes devolva capacidade, devolva formas de organização, formas de atendimento de necessidades básicas e que, de certa forma, não estão na linha da economia mercantil. Existem experiências inovadoras com um papel fundamental na educação popular. Pode-se incluir, dentro da sociedade civil, mas com um papel específico, as igrejas, principalmente as cristãs, mais ainda depois do apelo do papa Francisco por uma nova prática de economia humana e ecológica. As igrejas têm um momento ímpar de solicitação na perspectiva de colocar essas experiências concretas em circulação, a partir de um processo de formação de grupos de base, de estímulo às redes entre esses grupos. Os anos da pandemia são períodos de recessão econômica e, por mais que houvesse um estado político e social organizado, que não é o caso, dificilmente seria possível resolver a situação. Portanto, a resposta da sociedade civil organizada e a resposta das igrejas, nummomento como esse,

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