Diálogos sobre sociedade

CAPA PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE SOCIEDADE Edla Lula CASA LEIRIA

O Diálogos em Construção surgiu em 2016, em forma de seminário, a partir das inquietações relacionadas aos acontecimentos políticos que conduziram ao processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A intenção era buscar compreender os reais fatores que levaram ao seu afastamento e vislumbrar possíveis saídas para o intrincado momento político por que passava o Brasil. Promovido pelo Centro Cultural de Brasília (CCB), a partir de 2017 o evento passou a integrar também as atividades do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Dom Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Inicialmente, as discussões ocorriam na sala Anchieta do CCB, com transmissão pelo YouTube. Em 2020, com a pandemia do coronavírus, os debates passarama se realizar apenas no YouTube. Presencialmente ou no ambiente online, a participação de cidadãos e cidadãs é a marca principal do evento e, neste livro, ela se faz presente a partir dos comentários às colocações dos palestrantes, sempre em dois convidados. Como se trata de “diálogo” e não de “debate”, as visões aqui colocadas quase nunca são antagônicas, mas complementares.

PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE SOCIEDADE

Província dos Jesuítas do Brasil Pe. Provincial Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil Pe. José Ivo Follmann, S. J. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA Diretor: Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo: Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Diretor do Centro Cultural de Brasília – CCB e Coordenador do Núcleo Apostólico de Brasília e Goiânia Pe. Antonio Tabosa Gomes, S. J. Coordenador do Projeto Diálogos em Construção Pe. Thierry Linard, S. J. Equipe Diálogos em Construção Ana Cristina Souza (in memoriam) Guilherme Costa Delgado Luciano Fazio Rui Miranda Edla Lula www.olma.org.br

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2021 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA SOBRE SOCIEDADE Edla Lula VOLUME 4

Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA VOLUME 4: SOBRE SOCIEDADE Edla Lula. Edição: Casa Leiria. Revisão: Eliana Rose Müller. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

À querida Ana Cristina Souza, integrante de primeira hora da equipe Diálogos em Construção. Em agradecimento pela zelosa dedicação na organização de cada evento, até o dia de sua partida à morada Eterna, vitimada pela Covid-19, em 11 de setembro de 2020.

9 Diálogos em Construção – Diálogos sobre sociedade SUMÁRIO 11 Apresentação 13 Prefácio Pe. José Ivo Follmann S. J. 19 Introdução Edla Lula 25 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais 35 A mídia brasileira, a liberdade de imprensa e a interdição do debate público 51 Novo Ensino Médio para quê?

11 APRESENTAÇÃO Edla Lula Este livro não é propriamente autoral. O que aqui está escrito expressa a síntese de pensamentos e palavras de pessoas que participaram, seja como palestrantes ou como audiência, do programa “Diálogos em Construção”. Ele surgiu da avaliação feita entre os integrantes da equipe que organiza os “Diálogos” de que seria necessário revisitar os quarenta eventos realizados entre os anos de 2016 e 2020. A ideia tinha dois propósitos básicos: o primeiro era o de não deixar dissolver pelas nuvens do ciberespaço os conteúdos apresentados pelos especialistas, criteriosamente convidados a nos ajudar a pensar aquele momento crítico pelo qual passava – e ainda passa – a história do Brasil. O segundo, verificar em que medida o propósito inicial dos seminários foi contemplado, alcançando o seu objetivo de buscar respostas que explicassem os acontecimentos políticos e os meandros do processo que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, comos seus desdobramentos nos anos seguintes. A mera transcrição das palestras não seria opção, pois, embora trouxesse em detalhes a riqueza de tudo o que foi dito, resultaria em um calhamaço de mais de quinhentas páginas, além do fato de que vários assuntos ali tocados teriam perecido. A frieza de um relatório também não comportava, pois, diante de tantas confirmações que evidenciaram o que foi dito, seria necessário atualizá-lo e dinamizá-lo. Tornou-se necessário, então, compilar os assuntos e agrupá-los em volumes temáticos, lançando, assim, o olhar crítico, à luz dos acontecimentos que se sucederam e que, em quase tudo, confirmaram as teses trazidas pelos especialistas. É importante ressaltar que as falas aqui registradas são editadas e retextualizadas para que se cumpra a transposição da oralidade, com as suas peculiaridades e vícios, para a linguagem escrita. Precisaram ser editadas ainda para que pudessem transmitir a informação commenor número de ca-

12 Apresentação racteres, preservando-se, evidentemente, com fidelidade, o conteúdo do que se disse. Para que o leitor possa conhecer a integralidade das falas, o livro dá acesso direto aos eventos, através do QR Code colocado na abertura de cada capítulo, que levará às palestras registradas no canal do OLMA no Youtube. Por fim, resta esclarecer que a jornalista que assina o livro traz o sobrenome Lula desde sua certidão de nascimento, não guardando nenhum parentesco com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Edla Lula

13 PREFÁCIO Pe. José Ivo Follmann S. J.1 Na história do Brasil talvez não se conheça tempos tão devastadores, de desencontros e de desencantos, como os que estamos vivendo nos últimos anos. São tempos tremendamente carregados por superficialidades e falseamentos e por uma grande ausência de diálogos construtivos. São tempos de truculências verbais, de desconstruções do outro; tempos que chegam a assumir, em alguns aspectos, tonalidades de barbárie obscurantista, por vezes estimulada pelos próprios governantes. Assim, a ideia de “Diálogos em Construção” soa como algo “contracultural” nos tempos atuais. Isto pode parecer um discurso duro para o início de um “prefácio”, e soa um tanto desconcertante, para algumas pessoas. São, no entanto, as melhores palavras que encontrei para desenhar um retrato caricato dos sobressaltos que muitos de nós vivemos, quase como assaltados por um pesadelo, sempre que tentamos entender o que está acontecendo no Brasil de hoje. Se “Diálogos em Construção” soa como “contracultural”, é disso que mais estamos necessitados. O terreno é falso e movediço e a “construção” exige passos de paciência e de reforços consistentes. Não somos, obviamente, um “país maldito” ou uma sociedade isolada sofrendo deste mal. Em muitas outras sociedades o desenho tende a ser parecido. A partir de inícios de 2020 fomos assaltados por uma pandemia assustadora. Mas o que introduz esta nossa reflexão não é a pandemia. Nem é decorrência da pandemia. Não estou falando da pandemia. Sim, é verdade, ela existe, é uma realidade dolorosa, tanto pelo que 1 Jesuíta. Sociólogo. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. Diretor do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.

14 Prefácio é em si, quanto pelo que poderia ter sido evitado ser. Nós fomos surpreendidos por esta pandemia avassaladora que está deixando traços indeléveis em todo mundo. Ela tendeu a agravar extremamente as coisas, entre nós, é verdade, mas o clima de esvaziamento humano e de desconforto geral já estava instaurado, há muito mais tempo. Estamos, há anos, vivendo a triste sensação de nos vermos reduzidos a contemplar um declínio melancólico de nossas esperanças. São muitos os sonhos acalentados com amor, dedicação e carinho, sobretudo, ao longo da primeira década de nosso século. Tudo parece estar ruindo aos poucos, como que sendo solapado diariamente por um turbilhão de perversidades cuja origem nem sempre sabemos identificar. Aqui estamos falando do Brasil, mas temos consciência que em muitas outras sociedades questionamentos semelhantes, com matizes e temporalidades diferentes, são também agitados. Certamente “Diálogos emConstrução” é fruto de reação sadia dentro deste contexto. Ou seja, foi uma resposta ágil e certeira, entre muitas outras. Mas, o que vivemos não é resultado de um movimento inesperado e incontrolável, que teria sido instaurado a partir dos últimos cinco ou seis anos. Muitos sonhos despertados e cultivados ao longo de nossa sofrida reconstrução do ordenamento republicano, pós-ditadura militar, já foram sendo solapados ao longo de todo esse processo. Foram muitas as buscas e ensaios de condições para uma autêntica democracia participativa, que se viram quase sempre frustrados ou morreram melancolicamente “em silêncios ensurdecedores”. Na verdade, também não é o que vivemos nas últimas décadas, anos pós-ditadura militar, que nos poderá fornecer elementos suficientes para um bom entendimento do momento presente. O que nós estamos vivendo hoje no Brasil, mais do que nunca, deve nos fazer voltar, também, para a triste herança que pesa de um passado de uma sociedade elitista e excludente, que ainda não conseguiu fazer as pazes consigo mesma e muito menos conseguiu amadurecer para um verdadeiro espírito republicano e de prática participativa e cidadã na democracia. Vivemos hoje em um regime democrático,

15 Prefácio sim, mas é uma perversão da democracia, expressa em um modo de governar estritamente fechado sobre os interesses de certos grupos em detrimento ostensivo do Bem Comum. Se este modo de exercer (ou perverter) a democracia conseguiu chão fértil para ser cultivado por quem hoje detém o poder, são necessárias, como sinalizei antes, referências mais amplas para um entendimento mais aprofundado. Parafraseando o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, somos uma sociedade sobre cuja história e estrutura pesa terrivelmente a tríplice marca do capitalismo, do colonialismo e do patriarcalismo. Esta tríplice herança continua desenhada vivamente pelos atuais traços de uma economia extrativista e acentuadamente financeira, geradora de desigualdades socioambientais escandalosas, pelo racismo estrutural quemostra de forma renovada as suas evidências emmúltiplos casos e pela consciência sempre viva da morosidade com que avança a conquista da equidade em todos os âmbitos da sociedade. A expressão “Diálogos em Construção”, na contracultura deste cenário, soa como uma brisa reconfortante dentro do clima de claro desconforto que assola todas as pessoas capazes de pensar para além da mordaça conjuntural e estrutural que nos emudece. “Diálogos em Construção” é um projeto poderoso cujas sementes discretas jogadas nas frestas de uma cultura política bitolada movimentam de forma singela e teimosa os sonhos e as esperanças que não morreram. Muitas dessas sementes vêm caindo em solo fértil e as sementeiras se multiplicam. E talvez se possa dizer que, com isso, plantações robustas são realimentadas desafiando a realidade adversa. Fazem amadurecer frutos vigorosos, portadores de processos de conversão, que acalentam os sonhos que jamais morrem, ali onde existem e persistem seres que acreditam em sua vocação humana. Se nos reportarmos para um quadro mais amplo, podemos nos amparar nos muitos avanços que estão sendo demonstrados focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões, em termos de humanidade e de planeta terra. É o que está sublinhado na ideia de que tudo está estreitamente interligado. Uma voz que se ergueu, neste sentido, com lide-

16 Prefácio rança destacada nos últimos anos é a voz do papa Francisco. Esta voz está mais sistematicamente sintetizada em suas duas cartas encíclicas sociais, a “Laudato Si’” (LS, 2015) e a “Fratelli Tutti” (FT, 2020). Nas expressões do papa Francisco subjaz um apelo evidente para pensarmos o todo em sua complexa interligação como um novo paradigma. É um convite que sinaliza para a condução do cuidado da humanidade e do planeta Terra, que é a nossa Casa Comum. Trata-se de um apelo a toda a humanidade, dirigida particularmente a todos/as aqueles/as que estão na frente da produção do conhecimento e das tomadas de decisão, na busca de respostas frente aos desafios manifestos, de forma dolorosa, na situação da humanidade, da vida e do planeta Terra nos tempos atuais. Está dirigida, também, ao modo de proceder dos seres humanos em seu dia a dia. Ao apresentar a carta encíclica FT, na Praça São Pedro, em 8 de outubro de 2020, o papa Francisco assim se expressou: “A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz”. É importante anotar que papa Francisco não fala “duas vias”, mas fala “uma única via”. Por trás desse cuidado com a linguagem reside, sem dúvida, um forte recado. O convite do papa interconecta, de forma orgânica, a produção do conhecimento, a tomada de decisões e o modo de vida do dia a dia, ao orientar a humanidade na grande tarefa que é o Cuidado da Casa Comum. Trata-se de uma Casa Comum que está caindo aos pedaços, ferida por um câncer mortífero: as tremendas desigualdades, expressões vivas da injustiça. “Vivemos em um mundo estragado”, dizia um documento da Companhia de Jesus, em 1999, fazendo eco a muitos gritos, escritos e declarações, gerados em circunstâncias de diferentes origens e por organizações e movimentos diversos. Um mundo estragado em todos os aspectos, desde as relações entre as pessoas, as relações de organização da ordem pública, as relações políticas, econômicas e culturais, até as relações ambientais no descuido clamoroso para com os dons da criação. Trata-se de um mundo sobre o qual se debruçam diferentes ecologias (humana, da vida cotidiana, econômica, am-

17 Prefácio biental, cultural, política, social etc.), todas elas representando importantes acúmulos de conhecimento e contendo ricas formulações, podendo-se vislumbrar, nelas, caminhos ou dimensões daquilo que é conhecido, mais radicalmente, como ecologia profunda, ou, através de novas composições, como vem sendo intuído na construção da proposta de uma ecologia integral (LS, 137-162). Os estragos quase indescritíveis em relação à harmonia da natureza, manifestos em paisagens horrendas de destruição da vida, sobretudo, nas periferias pobres das grandes cidades, não são mais do que manifestações dos estragos milenares que vêm marcando, de forma crescente, a autodestruição da própria humanidade, sua capacidade de se organizar e viver em seu habitat. Nessa realidade de autodestruição e degradação alguns tentam refugiar-se em seus mundos de refúgio silencioso e privado, enquanto outros engrossam a violência barulhenta. Mas há mais “uma opção sempre possível: o diálogo” (FT, 199). “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isso se resume no verbo ‘dialogar’” (FT, 198). Na carta encíclica FT (198-224) somos presenteados por uma rica reflexão sobre o “Diálogo e a Amizade Social”. É um convite para nos posicionarmos contra a cultura dos monólogos autodestrutivos e destrutivos dos outros, buscando construir juntos, de forma consensual os caminhos da verdade. Trata-se de toda uma nova cultura que deve ser construída, iluminada pela promoção do encontro e do prazer de reconhecer o outro. Em suma, um convite para trilharmos caminhos de reencontro com a nossa própria humanidade. Talvez, infelizmente, seja um convite para estarmos na contramão daquilo que hoje é mais ostentado e visível. “Diálogos em Construção” veio ocupando, desde 2016, determinados tempos e espaços de um valente grupo de pessoas, que se debruçou, mensalmente, sobre temas identificados como mais preocupantes de dentro dos múltiplos processos de degradação que estamos vivendo. Foram pautas envolvendo múltiplas problemáticas econômicas, políticas,

18 Prefácio sociais, éticas, culturais e ambientais. A publicação sistematizada dos “Diálogos em Construção” visa a ampliação dos diálogos e da sua construção para outras instâncias e grupos, para além dos públicos que estiveram diretamente envolvidos emmomentos dados em um espaço e tempo bem delimitados, em cada mês. A publicação talvez faça parte do processo de paciência e dos reforços consistentes na “construção”. “Diálogos em Construção” pulsa com vigor renovado, vendo, assim, o seu esforço reverberado e multiplicado com a possibilidade de novas qualificações das mesmas vozes, em círculos mais amplos. Com uma coletânea dividida em cinco grandes agrupamentos temáticos – “o momento da política”, “repercussões da pandemia”, “economia, ecologia e a questão agrária”, “fé e ensino social da Igreja” e “o momento da sociedade” – o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) propõe que os diálogos continuem em construção, repercutindo, despertando novas construções e novos diálogos. Com a reverberação esperada, os diálogos, com certeza, poderão reacender as chamas de nossas e novas esperanças. “Diálogos emConstrução” quer ser agente de multiplicação de esperanças e de cultivo do grande sonho sempre renovado de um “novo mundo possível”. Quando o termo “diálogos” como algo “contracultural”, é salutar que seja apresentado como “em construção”. Boa leitura e boas construções dialogantes!

19 INTRODUÇÃO Edla Lula1 Faz escuro, mas eu canto Thiago de Mello “Noite escura” é uma expressão usada pelos místicos para designar experiências de ausência de sentidos e, no extremo, ausência de Deus, em situação de profunda desolação. É conhecido o poema “A noite escura da Alma”, no qual São João da Cruz descreve o difícil itinerário até o coração de Deus. Na vida emsociedade, uma noite escura pode ser aquela marcada pelo obscurantismo, em que, na ausência do diálogo, o que resta à coletividade é recolher-se, cada um de seus integrantes, à solidão individualista, retrair-se. É precisamente o que tem passado o Brasil, diante dos acontecimentos políticos que nos cercam desde o advento das chamadas “manifestações das ruas”, em junho de 2013. Noite escura é também a intercessão que une os temas trazidos neste quarto volume da coleção Diálogos emConstrução – Sobre Sociedade. Ao final de cada um deles, as conclusões a que chegam os palestrantes expressam a mesma desesperança em relação ao país. No primeiro capítulo, onde se aborda o tema O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais, a discussão é sobre o decreto que extinguiu ou enxugou os colegiados populares. A importância de tratar esse tema explica-se pelas consequências desastrosas presumivelmente advindas do desmonte dos conselhos de participação social, que aliás estão previstos na Constituição. Consequências essas que vão muito além da alegada “desburocratização” ou “simplificação”. 1 Jornalista, especializada em comunicação, mídia e política

20 Introdução Para além da desestruturação dos Conselhos, o decreto implica no fim das políticas sociais, também previstas na Constituição Cidadã. Sem a atuação de representantes da sociedade civil, torna-se impossível o cumprimento efetivo das políticas sociais na promoção da igualdade e ampliação do espectro democrático. O capítulo é desenvolvido a partir das palestras de Camila Potyara Pereira, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB) e Gilberto Carvalho, ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência da República. O segundo capítulo, onde se aborda o tema A mídia brasileira, a liberdade de imprensa e a interdição do debate público, reúne pensamentos extraídos de três “Diálogos em Construção” que trataram da atuação da mídia brasileira diante dos acontecimentos recentes da história política do Brasil. Espera-se que a mídia, importante mediador do debate público, seja aquela que dá voz aos vários atores sociais, na busca de trazer luz aos fatos na busca de soluções para os problemas sociais. Os palestrantes – Venício Artur de Lima, Tereza Cruvinel, Laurindo Lalo Leal, Helena Chagas, Luís Nassif e Cid Benjamin – comnotório conhecimento no campo da comunicação, concordam que a mídia brasileira, especialmente a imprensa, erra por dois componentes fundamentais na sua formação. O primeiro ponto é que, tendo a mídia brasileira nascido segundo um modelo comercial, a exemplo dos Estados Unidos, na prática não passou pelos compromissos erigidos na Revolução Francesa, de mediação do debate público. Por outro lado, a legislação brasileira, que buscou manter tais princípios, é povoada por lacunas que permitem aos proprietários dos meios, manteremo seu caráter empresarial, associado ao pensamento oligárquico. Um exemplo, é a falta de regulamentação do capítulo constitucional que trata da Comunicação Social (arts. 220 a 224). No terceiro e último capítulo, Novo Ensino Médio para quê?, o Diálogos buscou conhecer a opinião de especialistas e

21 Introdução de estudantes sobre as mudanças trazidas com a Medida Provisória 477/2016, aprovada a toque de caixa no Congresso Nacional, sem o devido aprofundamento que o tema requer. O pesquisador Herton Ellery de Araújo, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) está entre os que defendem a reforma – ainda que apresente críticas à MP –, por considerar que o ensino médio brasileiro estava em “estado falimentar”, necessitando de mudanças que o tornassem mais atraente rever o número de disciplinas obrigatórias. O assessor jurídico da Câmara dos Deputados, Gustavo Moreira Capella, lotado no gabinete do deputado Chico Alencar, embora seja simpático ao modelo adotado, a partir da experiência estadunidense, elaborou o embasamento jurídico da ADI2 que questionou a constitucionalidade da medida. Para ele, a realidade brasileira impede que a proposta seja bem-sucedida no Brasil, assim como para a líder estudantil Sílvia Letícya Dias dos Santos, do Levante Popular da Juventude. No entender de Sílvia, a reforma desconsidera por inteiro a rotina de milhões de jovens brasileiros que precisam trabalhar para contribuir na renda familiar. A tendência, segundo esse entendimento, é que a ampliação da carga horária para sete horas evidencie ainda mais a desleal concorrência entre o estudante da escola pública e o da rede privada na busca de sua formação profissional ou acadêmica, além da evasão escolar. Ao longo de cinco anos dos seminários Diálogos em Construção forammuitos os debates que aprofundaram temas relacionados à sociedade. Além dos que são tratados neste volume, outros estão descritos nos demais livros da coleção relacionados aos temas da política, da fé, da ecologia/economia ou da pandemia. Outros ainda podem ser vistos no canal do YouTube do Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), os quais é muito recomendável que o leitor acesse. Nesta noite escura, faz-se necessário tatearmos os iguais para buscarmos juntos sair das sombras da caverna onde fomos todos acorrentados. Como ocorre entre os místi2 Ação Direta de Inconstitucionalidade.

22 Introdução cos, caminhamos e cantamos, ainda que faça escuro, porque acreditamos que, apesar de o espírito das trevas nos rondar, a luz há de prevalecer. É nisso que acredita o “Diálogos em Construção”. BOA LEITURA! NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM!

24 Para acessar o debate utilize o aplicativo leitor de QR-Code disponível no seu celular apontando-o para a imagem abaixo ou acesse https://youtu.be/t0TQg9UYN7c

25 O DESMONTE DOS CONSELHOS: ESTRATÉGIA PARA A EXTINÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS Convidados Camila Potyara Pereira1 Gilberto Carvalho2 No dia 11 de abril de 2019, Jair Bolsonaro celebrou os seus cem dias no comando do país com a assinatura do Decreto 9.759, que extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Na lista do que define como “colegiado” o decreto inclui, entre outros, os conselhos, comitês e comissões com participação de representantes da sociedade civil para discutir as políticas públicas adotadas no país. Após este, houve outros decretos mais específicos, anulando ou diminuindo conselhos. Em outubro de 2021, um levantamento elaborado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)3 mostra que 75 % dos Comitês e Conselhos Nacionais haviam sido esvaziados durante o governo Bolsonaro. A formação dos conselhos é um dos principais aspectos que proporcionaram ao legislador batizar a Carta Magna brasileira de “Constituição Cidadã”. Por meio dos conselhos, a sociedade civil formula, junto com os gestores públicos, as ações e prioridades orçamentárias nas políticas sociais. A Constituição de 1988 prevê explicitamente a participação cidadã na elaboração e gestão das políticas sociais, como determinado, por exemplo, nos seus artigos 198, 204 e 206. Além disso, ela determina os meios financeiros necessários e as regras gerais de equidade no campo da proteção so1 Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB). 2 Ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência da República 3 https://cebrap.org.br/pesquisa-do-cebrap-sobre-desmonte-nos-comites-e-con selhos-nacionais-e-destaque-do-jornal-nacional/

26 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais cial e de atendimento de algumas necessidades básicas, mediante os quais o conjunto das políticas sociais promoveria, de fato, a igualdade e a ampliação democrática da esfera pública do Estado. O decreto de Bolsonaro, somado a outras iniciativas começadas ainda no governo Temer, como a desvinculação orçamentária das políticas sociais e alterações nas regras da Seguridade Social, representou um ataque frontal à Constituição. Camila Potyara Pereira, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB), diz que o decreto demonstrava a intenção clara de uma atitude antidemocrática de ferir o princípio constitucional da participação popular. “Os conselhos previstos na Constituição Federal são órgãos colegiados, deliberativos com participação popular, paritária que foram incluídos com o objetivo de aumentar a democracia, de aumentar a participação popular das decisões, de fiscalizar os planos, as políticas, os projetos, os gastos governamentais. São instituições colegiadas que surgem para combater a formação de oligarquias no trato da coisa pública, que surgem para combater as ações individualizadas e a defesa dos interesses particulares, que têm como objetivo máximo a proteção do cidadão. Não tem nada mais indesejável e ameaçador do que isto para quem não tem interesse nenhum na democracia e justiça social”, comenta a professora. Ela completa que Bolsonaro deixou essa intenção evidente no comentário que fez em entrevista coletiva quando assinou um dos decretos: “Nós queremos enxugar os conselhos, extinguir a grande maioria deles para que o governo possa funcionar, não podemos ficar reféns dos conselhos”. A interpretação que Camila faz da declaração do presidente é que as decisões passariam a ser tomadas verticalmente pelo governo. Este governo precisa funcionar sem a participação da sociedade. Sem esse controle democrático que é estabelecido pelos conselhos, a fiscalização das políticas sociais, dos planos e dos gastos fica prejudicada, a corrupção pode correr solta que ninguém vai reclamar. E

27 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais mais, a proteção de grupos específicos historicamente massacrados, invisibilizados e desvocalizados pode ser nula. Essas pessoas não terão mais defensores e representantes, elas não se representarão mais perante o governo. Os conselhos – lugares heterogêneos, do contraditório, onde várias vozes se juntam para disputar no conflito que é natural de qualquer tipo de deliberação democrática e interesses diversos, são substituídos por instituições autoritárias, onde a ordem ou a decisão de um grupo homogêneo prevalece sempre, claro, a favor dos seus próprios interesses. Comando, ordem, decisões homogêneas de pequenos grupos são características de governos autoritários. O desmonte dos conselhos não representa o mero ataque à sociedade. Ele representa um governo autoritário, para não usar outras palavras que são mais polêmicas. Camila defende que o desmonte dos conselhos é mais uma evidência de afronta à democracia no país, diante da queda de braço com o capitalismo, que “é estruturalmente antitético à democracia e ao bem-estar social”, diz a professora, citando a cientista política Ellen Wood. “Vivemos uma democracia de fachada”, prossegue, ao apontar que os cidadãos não têm voz nas decisões públicas. “Quem toma as decisões hoje são as grandes concentrações privadas de capital, que têm como objetivo a maior intervenção política, o lucro e a expansão dos seus poderes. A democracia torna-se um acessório do capitalismo, uma palavra-chave que é acionada quando convém, ou que é acionada até mesmo para mascarar e ocultar práticas antidemocráticas”, observa a pesquisadora ao citar o que os estudiosos chamam hoje de “corporocracia”, em que decisões que impactam a coletividade são definidas pelas grandes corporações. A fala da professora Camila Potyara se deu em agosto de 2019, mas é oportuno destacar o áudio de André Esteves, dono do banco BTG/Pactual, revelado pelo portal Brasil 247 em outubro de 2021, que ilustra bem a tese de Camila. Em palestra feita para clientes, o banqueiro conta que costuma ser consultado por autoridades da República sobre temas nacionais. Nominalmente, o banqueiro cita o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira; o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que inclusive pede a opinião dele sobre o limite

28 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais mínimo da taxa de juros no Brasil; e até ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). “Se as decisões políticas são tomadas por corporações, por bancos, por instituições financeiras com objetivo de aumentar o lucro, o poder e a interferência política, qual é o interesse em manter uma instituição colegiada, democrática, participativa, que defenda o direito das pessoas idosas, das crianças e dos adolescentes, das pessoas em situação de rua, das pessoas LGBT, dos indígenas, dos quilombolas, da floresta?”, indaga Camila. Ela enumera diversos conselhos que, embora não tenham sido extintos, foram esvaziados pelo governo, imprescindíveis para a sociedade, mas que não interessam à “corporocracia”. O Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), por exemplo, era composto por 26 membros e passou a sete, dos quais apenas dois representam a sociedade civil, outros são do governo. “Alguns conselhos foram impedidos de convocar as suas conferências nacionais. O Conselho Nacional de Assistência Social não pode convocar a sua conferência, e convocou em luta, uma conferência democrática, primeira Conferência Democrática de Assistência Social (que se realizou em novembro de 2019, por meio de financiamento público). Outros conselhos tiveram categorias profissionais expulsas, como no CONAD (Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas). Não tem mais médico, não tem mais assistente social, nem psicólogo, nem enfermeiro, nem educador para discutir drogas”. O que se pretende, para Camila, não é apenas a extinção dos conselhos, como disse o presidente, mas sim o fim das políticas sociais. “É óbvio que existem políticas sociais que dependem da atuação dos conselhos, eles são essenciais para isso. Desmontando-os e retirando o seu poder deliberativo, extinguem-se as políticas sociais. A intenção parece ser o fim do nosso já extremamente precário estado social”, sentencia. Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria Geral da Presidência da República no governo de Dilma Rousseff recorda que o primeiro colegiado criado nesta modalidade foi o Conselho Nacional de Saúde, ainda na década de 50. Mas foi a partir

29 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais da Constituição que houve a regulamentação e a estruturação dos conselhos sociais. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, vários conselhos foram estruturados. Em 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência pela primeira vez, transformou a Secretária Geral de um órgão de relação da presidência com o parlamento em um órgão de relação com a sociedade civil, colocando Luiz Dulci para chefiar a pasta. “Naquele momento começou um processo muito intenso de estímulo à participação social, é naquele momento que nós temos o desenvolvimento muito mais intenso dos órgãos colegiados e dos conselhos”, conta Carvalho. “Para se ter uma ideia, até 2003 o Brasil havia realizado 41 conferências desde o nível municipal, estadual, e depois nacional – as chamadas conferências setoriais de saúde, educação, criança e adolescente, uma infinidade. De 2003 a 2016 foram realizadas 115 conferências. Agora nós estamos vendo o lado reverso dessa medalha”, completa. A partir das proposições dos conselhos, prossegue Gilberto, houve muitas conquistas “objetivas e materiais” na promoção das políticas públicas. “Foi possível verificar também um amadurecimento [da sociedade] porque a participação começa a ter um papel importante na estratégia de elaboração de programas, de alternativas e de controle social, de fiscalização”, comenta o ministro. Entre os exemplos de bons resultados que surgiramnos conselhos, Carvalho cita o Estatuto do Idoso. “Foi um trabalho redentor, porque o Estatuto do Idoso não foi apenas uma letra, ele fez com que os idosos, assim como as pessoas com deficiência, deixassem de receber meio salário mínimo mensal, para receber um salário mínimo. Isso permitiu, em parte, essa explosão do crescimento das regiões mais deprimidas economicamente do país onde muitas vezes o aposentado, o idoso, o único da família que recebe o salário e que o avô, cuida do neto porque a mãe e o pai estão desempregados e assim por diante”. Outro exemplo é a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), “que segue as linhas fundamentais do SUS, fruto também de um processo de conferências, logo de-

30 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais pois da Constituição de 88 e que foi fundamental para mudar a política no Brasil”. A Lei Maria da Penha e as políticas em defesa da comunidade LGBT e de direitos humanos são outros exemplos citados pelo ministro como avanços. Bastante ilustrativo, diz ele, foram as parcerias com Organizações Não Governamentais (ONGs) na busca de soluções para questões sociais. Carvalho conta a experiência no semiárido nordestino. Havia no Nordeste uma organização social, a ASA (Articulação do Semiárido), que construía cisternas de um modo pedagógico, ensinando as pessoas a fazer, ensinando o manejo das cisternas e assim por diante. No governo Lula foram construídas 350 mil cisternas, com o financiamento da Petrobras e do Banco do Brasil para a ASA - usando mecanismos governamentais para financiar a sociedade civil. Quando a presidenta Dilma assume, como ela tinha tido muito êxito na questão do Luz para Todos (quando ocupou o cargo de Ministra de Minas e Energia), ela determina: assim como nós fizemos o Luz para Todos, quero fazer o Água para Todos, vamos fazer direto com as prefeituras. E aí ela determina que não se destinasse mais verba para a ASA e sim para as prefeituras, e ainda com as cisternas de plástico, e não as cisternas feitas com o material de tijolos, aquela argamassa toda, com a tecnologia. Eu alertei a ela e à ministra Tereza [Campello, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome]: vai dar errado esse negócio, dito e feito, as cisternas ficaram paradas, as prefeituras não tinham interesse em fazer a distribuição das cisternas, o povo não aceitava aquela tecnologia. Graças à pressão da ASA e de uma manifestação ocorrida na beira do São Francisco, entre Juazeiro e Petrolina, com 12 mil pessoas, Dilma teve o bom senso de recuar e nós voltamos ao leito normal de fazer as cisternas com a ASA. Depois disso, o governo dela fez mais 750 mil cisternas. Digo isso para dar um exemplo concreto da importância que a participação traz também para corrigir erros, também para buscar as melhores soluções. Foi Dilma Rousseff quem criou, por meio do Decreto 8.243/2014 a Política Nacional de Participação Popular. A ideia, segundo Gilberto Carvalho, era que os instrumentos de participação, como os conselhos, “não ficassem a depender da vontade do governante de plantão”. O decreto estruturou

31 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais legalmente as formas de participação, definindo o que são os conselhos, as conferências, as ouvidorias e as mesas de diálogo. Inúmeras mesas de diálogo foram realizadas até que o jornalista Reinaldo Azevedo, à época na revista Veja, reproduziu em sua coluna um artigo de Daniel Jelin, no qual qualifica o decreto como “bolivariano” e “soviético”. Os deputados Ronaldo Caiado e Mendonça Filho tentaram derrubar a política por meio de umdecreto legislativo, que passou na Câmara, mas foi derrubado no Senado. Quando o governo Bolsonaro emite o decreto, em 11 de abril de 2019 e extingue os conselhos, está em perfeita coerência com um processo de quebra do Estado naquela pequena parte que ele ainda, de alguma forma alterado por nós, fazia um processo de permitir não só a participação, mas as consequências da participação: a distribuição, o acolhimento das vítimas da exploração da acumulação capitalista. Nesse momento, a linha que nós temos é uma linha que nos fere em dois aspectos gravíssimos, no presente, com a miséria e a destruição caprichosa, cínica e implacável dos principais fios de uma rede que dava sustentação aos pobres. Ao reduzir e fazer uma “moralização” do Bolsa Família, ao reduzir o Minha Casa, Minha Vida, ao reduzir o Prouni, ao reduzir o financiamento da pequena agricultura familiar, ao reduzir as cisternas, e outros programas, o governo foi quebrando, insisto, cortando, por um capricho deliberado, uma verdadeira teia, uma verdadeira rede que cuidava dos pobres e impedia a morte e a fome. A miséria, que está evidente em todo o país, é resultado dessa lógica. Na outra ponta, está a alienação do futuro do país, com a privatização, com todo o processo de entrega de um futuro estratégico para o capital financeiro internacional, essa submissão brutal aos americanos”. Em tom não menos funesto, Camilia Potyara, comenta que o país passa por um momento dramático de perda de importantes conquistas civilizatórias. “Nós aqui nos perguntamos como se perguntou Bertolt Brecht, que tempos são esses em que é necessário defender o óbvio. O que se busca agora não são alternativas ao neoliberalismo, mas alternativas ao fascismo, à extrema direita, a uma nova direita extremada, a uma necropolítica cada vez mais radical. Não se luta pela expansão dos direitos sociais, retrocede-se à luta pelo reco-

32 O desmonte dos conselhos: estratégia para a extinção das políticas sociais nhecimento da humanidade das pessoas, pelo direito à vida”, comenta, citando ainda o desrespeito ao Meio Ambiente e à ciência, característico do governo Bolsonaro. “O desmonte dos conselhos pode sim levar à extinção das políticas sociais e extinção das políticas sociais pode levar ao genocídio mediado pelo Estado. É urgente que se reconheça isso, que conheça o tamanho desse monstro”, conclui.

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34 Para acessar o debate utilize o aplicativo leitor de QR-Code disponível no seu celular apontando-o para a imagem abaixo ou acesse https://www.youtube.com/watch?v=p2UxJ_LGDu0&t=477s https://www.youtube.com/watch?v=aSbzrhCIIlc&t=5136s https://www.youtube.com/watch?v=EM9w5sWYlB0

35 A MÍDIA BRASILEIRA, A LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO DO DEBATE PÚBLICO Convidados Tereza Cruvinel1 Venício Artur de Lima2 Helena Chagas3 Laurindo Lalo Leal4 Luis Nassif5 Cid Benjamim6 Amídia corporativa também chamada “grande imprensa” tem sido frequentemente colocada como parte do tripé que desencadeou a crise política iniciada ainda na primeira década dos anos 2000, favorecendo a derrubada da presidenta Dilma Rousseff, com ascensão ao poder de seu vice, Michel Temer e a eleição do presidente Jair Bolsonaro, na sequência. Os outros dois pilares seriam parte do Judiciário/Ministério Público e partidos políticos ligados ao pensamento de direita, incluindo oMDB, que compunha a chapa governista e o PSDB, insatisfeito com sucessivas derrotas nas eleições presidenciais. Atuando de maneira oculta estaria também o chamado “mercado”, a defender os interesses do capital. Estreitamente ligada a estes mesmos interesses políticos e econômicos, a grande mídia brasileira – jocosamente chamada de “o quarto poder” – atuou livremente, sem que a sociedade brasileira pu1 Jornalista, ex-presidenta da Empresa Brasil de Comunicação. 2 Sociólogo e jornalista, professor emérito da UnB, tendo lecionado nas faculdades de Ciências Políticas e Comunicação. Possui vários livros sobre comunicação e poder. 3 Jornalista, ex-ministra da Secretaria Geral de Comunicação Social. 4 Jornalista e sociólogo, professor aposentado da Escola de Comunicação e Artes da USP. 5 Jornalista, especialista em jornalismo econômico, criador do site GGN. 6 Jornalista, vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa.

36 A mídia brasileira, a liberdade de imprensa e a interdição do debate público desse lançar mão de instrumentos para frear os seus abusos ou reivindicar o direito à informação na sua integralidade. Por essa tese, informações veiculadas em TVs e jornais relacionadas a operações como “mensalão”, “petrolão” e “lava-jato” faziam, no imaginário coletivo, conexão entre corrupção e a atuação do governante – primeiro o presidente Lula e, depois, a presidenta Dilma. Criou-se, assim, o ambiente favorável ao impeachment, que se deu sob outra justificação: a chamada “pedalada fiscal”. Atônita, a sociedade brasileira acompanhava as narrativas uníssonas dos telejornais, jornais impressos e rádios, sem opções de peças para encaixar o quebra-cabeças e formar, por conta própria, a sua opinião acerca dos acontecimentos, como se pressupõe em uma comunicação democrática. Na tentativa de compreender esse emaranhado em que se tornou a vida política nacional, o tema do monopólio da mídia, sob diferentes enfoques, ilustrou quatro Diálogos em Construção, praticamente um em cada ano, desde que os seminários tiveram início. Vocacionada a fazer a mediação do debate no espaço público, a mídia brasileira abdicou desse papel, limitando-se a reverberar o pensamento único. Em trinta anos de promulgação da Constituição, nunca houve a regulação do seu capítulo 5, que trata da Comunicação Social. Esta lacuna favoreceu a duas práticas comuns que constituem uma afronta à própria Carta Magna: a concentração da mídia nas mãos de oligopólios e a sua apropriação por políticos profissionais. Os especialistas concordam que a falta de regulamentação e o comprometimento das empresas de comunicação com o capitalismo e com as classes hegemônicas impedem, no Brasil, que a imprensa exerça satisfatoriamente o seu papel fundamental, erigido a partir dos princípios da Revolução Francesa, de fazer a mediação do debate no espaço público. O professor Venício Artur de Lima, umdosmaiores especialistas na pesquisa sobre o assunto, comvários livros publicados nas áreas de comunicação e poder, liberdade de expressão e propriedade da radiodifusão no Brasil, vai à origem da radiodifusão brasileira para explicar o comportamento da mídia.

37 A mídia brasileira, a liberdade de imprensa e a interdição do debate público Na década de 30 do século passado, ainda no primeiro governo Vargas, o Brasil optou por adotar para a radiodifusão o mesmo modelo americano, o de curadoria, em que o Estado abre mão da exploração direta do serviço público de radiodifusão e através de concessões públicas que, com prazos determinados e condições para execução, delega a exploração desse serviço para a iniciativa privada. Um aspecto interessante e pouco estudado aqui no Brasil é que a escolha desse modelo fez parte de uma estratégia de política externa americana para pressionar os governos latino-americanos a adotarem este modelo. Tanto isso é verdade, que neste mesmo período a Inglaterra por exemplo na década de 30 estava adotando o modelo inverso, a Inglaterra adotou o modelo de que o próprio Estado exploraria o serviço de radiodifusão, foi daí que nasceu a BBC. Foi assim que a radiodifusão começou em vários países europeus, como na França e na Itália que criaramuma tradição de radiodifusão pública, coisa que no Brasil até hoje não existe. Foi o período de surgimento não só das grandes empresas que anunciavam produtos na América Latina, mas a própria comercialização dos aparelhos de rádio, das grandes empresas fabricantes. A televisão ainda não existia. Desde o princípio a radiodifusão segue um modelo comercial. As empresas são comerciais, com objetivo de lucro como qualquer outra empresa e, no caso da radiodifusão, essas empresas são financiadas pela publicidade, ou seja, são financiadas pelos seus anunciantes. O principal produto do rádio e da televisão são as suas audiências, que são vendidas aos anunciantes. Vinculada ao fato de as empresas de comunicação terem sua origem em um modelo comercial, de negócio, está a forma como foi elaborada a legislação que rege a atuação da mídia. Venício descreve quatro características na legislação construída para radiodifusão ao longo do tempo que favorecem a criação de oligarquias: a assimetria em relação aos concessionários de outros serviços públicos; a desatualização das leis; a omissão e a falta de regulação dos princípios e normas constitucionais que regem a comunicação. Para explicar a assimetria em relação a outros serviços concessionários, Lima cita o prazo das concessões, que no caso do rádio é de dez anos e da televisão, quinze anos. “Que eu saiba é o maior período de concessão do planeta, não existe

38 A mídia brasileira, a liberdade de imprensa e a interdição do debate público em nenhum lugar períodos tão longos, eles são tão longos que as concessões acabam se transformando em propriedades, porque é praticamente impossível não as renovar”, observa o pesquisador, acrescentando que daí decorre outra assimetria, que são as dificuldades legais para a não renovação ou para o cancelamento das concessões. Para que seja indeferida a renovação de uma concessão de radiodifusão é preciso a aprovação por 2/5 dos membros do Congresso Nacional em votação nominal aberta, o que é impossível. “São regras totalmente diferentes do que se exige de um outro concessionário de serviço público, por exemplo um concessionário do serviço de transporte urbano, em que se não está dando certo, o estado intervém. No caso da radiodifusão isso não existe”, pontua. Sobre a desatualização, o pesquisador menciona o lobby das grandes empresas, que impede alterações na legislação. “A legislação básica para a televisão brasileira ainda é o Código Brasileiro de Telecomunicações, que é de 1962. De lá para cá a tecnologia da radiodifusão se transformou. Então, ela é totalmente desatualizada e mantém privilégios dos radiodifusores. Outro ponto crítico, no entender de Lima, é a omissão em relação à chamada “propriedade cruzada”, em que a mesma empresa possui diversos veículos de diferentes segmentos da comunicação. “Eu não tenho notícia de nenhum outro país do mundo que não tenha disciplinado, na área de radiodifusão, a propriedade cruzada. Que significa na verdade o seguinte: no mesmo mercado ummesmo grupo empresarial ser proprietário de um jornal, às vezes até de dois jornais e ser concessionário de emissora de rádio AM, emissora de rádio FM, às vezes mais de uma, ser concessionário de TV aberta, ter um canal de TV paga e, nos dias de hoje, ser provedor de internet, quer dizer, exercer um verdadeiro monopólio sobre a comunicação. Isso acontece no Brasil em várias cidades importantes e estados importantes”. A legislação, diz, é omissa em relação à propriedade cruzada, assim como se omite em relação à constituição de redes de rádio ou de televisão. “Existe uma provisão no decreto de 1967, mas nunca o Estado brasileiro e no caso o Ministério

39 A mídia brasileira, a liberdade de imprensa e a interdição do debate público das Comunicações, que seria o setor responsável para fazer esse acompanhamento, interferiu”. Por último, ele aponta alguns dispositivos que os constituintes introduziram na Carta de 1988, mas que não foram regulamentados, passados trinta anos da sua promulgação. O artigo 54, por exemplo, diz claramente que deputados e senadores não podem, no exercício do mandato “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público”. No entanto, são muitos os parlamentares que são dirigentes ou proprietários de empresas de radiodifusão. Os dados não são precisos, porque o acesso às informações sobre outorgas é limitado, alémdemuitos políticos usaremartifícios como registrarem a empresa em nome de parentes. Mas as estimativas são de que mais de 250 políticos sejam proprietários de emissoras. Venício conta que ele mesmo testemunhou, em pesquisa realizada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, entre 2004 e 2007 a votação para renovação de diversas emissoras pertencentes a parlamentares. “Políticos no exercício do mandato que eram concessionários faziam parte da comissão e votavam eles próprios na renovação das suas próprias concessões. Trata-se de uma situação absolutamente absurda que prevalece até hoje”, comenta. O pesquisador também cita a falta de regulamentação do artigo 220 da Constituição que, em seu parágrafo 5, determina que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Como não foi regulamentado, não se cumpre o que determina a lei, o que está demonstrado com a propriedade cruzada no Brasil. O princípio da complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal é outro exemplo da não regulamentação da comunicação no país, aponta Lima. Segundo o caput do artigo 223 “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da

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