Diálogos sobre economia, ecologia e questão agrária

CAPA PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE ECONOMIA, ECOLOGIA E QUESTÃO AGRÁRIA Edla Lula CASA LEIRIA

O Diálogos em Construção surgiu em 2016, em forma de seminário, a partir das inquietações relacionadas aos acontecimentos políticos que conduziram ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A intenção era buscar compreender os reais fatores que levaram ao seu afastamento e vislumbrar possíveis saídas para o intrincado momento político por que passava o Brasil. Promovido pelo Centro Cultural de Brasília (CCB), a partir de 2017 o evento passou a integrar também as atividades do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Dom Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Inicialmente, as discussões ocorriam na sala Anchieta do CCB, com transmissão pelo YouTube. Em 2020, com a pandemia do coronavírus, os debates passarama se realizar apenas no YouTube. Presencialmente ou no ambiente online, a participação de cidadãos e cidadãs é a marca principal do evento e, neste livro, ela se faz presente a partir dos comentários às colocações dos palestrantes, sempre em dois convidados. Como se trata de “diálogo” e não de “debate”, as visões aqui colocadas quase nunca são antagônicas, mas complementares.

PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE ECONOMIA, ECOLOGIA E QUESTÃO AGRÁRIA

Província dos Jesuítas do Brasil Pe. Provincial Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil Pe. José Ivo Follmann, S. J. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA Diretor: Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo: Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Diretor do Centro Cultural de Brasília – CCB e Coordenador do Núcleo Apostólico de Brasília e Goiânia Pe. Antonio Tabosa Gomes, S. J. Coordenador do Projeto Diálogos em Construção Pe. Thierry Linard, S. J. Equipe Diálogos em Construção Ana Cristina Souza (in memoriam) Guilherme Costa Delgado Luciano Fazio Rui Miranda Edla Lula www.olma.org.br

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2021 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA SOBRE ECONOMIA, ECOLOGIA E QUESTÃO AGRÁRIA Edla Lula VOLUME 3

Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA VOLUME 3: SOBRE ECONOMIA, ECOLOGIA E QUESTÃO AGRÁRIA Edla Lula. Edição: Casa Leiria. Revisão: Eliana Rose Müller. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

À querida Ana Cristina Souza, integrante de primeira hora da equipe Diálogos em Construção. Em agradecimento pela zelosa dedicação na organização de cada evento, até o dia de sua partida à morada Eterna, vitimada pela Covid-19, em 11 de setembro de 2020.

9 Diálogos em Construção – Diálogos sobre economia, ecologia e questão agrária SUMÁRIO 11 Apresentação 13 Prefácio Pe. José Ivo Follmann S. J. 19 Introdução Guilherme Delgado 25 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira: implicações sociais e de soberania nacional 39 Mudanças climáticas e superexploração econômica no centro da crise hídrica 53 A degradação do meio ambiente e dos institutos socioambientais 67 Política externa, mercado global e soberania nacional: o que está em jogo? 79 Finanças públicas brasileiras e a idolatria do dinheiro 93 O apelo do papa Francisco por uma economia humana e ecológica

11 APRESENTAÇÃO Edla Lula Este livro não é propriamente autoral. O que aqui está escrito expressa a síntese de pensamentos e palavras de pessoas que participaram, seja como palestrantes ou como audiência, do programa “Diálogos em Construção”. Ele surgiu da avaliação feita entre os integrantes da equipe que organiza os “Diálogos” de que seria necessário revisitar os quarenta eventos realizados entre os anos de 2016 e 2020. A ideia tinha dois propósitos básicos: o primeiro era o de não deixar dissolver pelas nuvens do ciberespaço os conteúdos apresentados pelos especialistas, criteriosamente convidados a nos ajudar a pensar aquele momento crítico pelo qual passava – e ainda passa – a história do Brasil. O segundo, verificar em que medida o propósito inicial dos seminários foi contemplado, alcançando o seu objetivo de buscar respostas que explicassem os acontecimentos políticos e os meandros do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, comos seus desdobramentos nos anos seguintes. A mera transcrição das palestras não seria opção, pois, embora trouxesse em detalhes a riqueza de tudo o que foi dito, resultaria em um calhamaço de mais de quinhentas páginas, além do fato de que vários assuntos ali tocados teriam perecido. A frieza de um relatório também não comportava, pois, diante de tantas confirmações que evidenciaram o que foi dito, seria necessário atualizá-lo e dinamizá-lo. Tornou-se necessário, então, compilar os assuntos e agrupá-los em volumes temáticos, lançando, assim, o olhar crítico, à luz dos acontecimentos que se sucederam e que, em quase tudo, confirmaram as teses trazidas pelos especialistas. É importante ressaltar que as falas aqui registradas são editadas e retextualizadas para que se cumpra a transposição da oralidade, com as suas peculiaridades e vícios, para a linguagem escrita. Precisaram ser editadas ainda para que pudessem transmitir a informação commenor número de ca-

12 Apresentação racteres, preservando-se, evidentemente, com fidelidade, o conteúdo do que se disse. Para que o leitor possa conhecer a integralidade das falas, o livro dá acesso direto aos eventos, através do QR Code colocado na abertura de cada capítulo, que levará às palestras registradas no canal do OLMA no Youtube. Por fim, resta esclarecer que a jornalista que assina o livro traz o sobrenome Lula desde sua certidão de nascimento, não guardando nenhum parentesco com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Edla Lula

13 PREFÁCIO Pe. José Ivo Follmann S. J.1 Na história do Brasil talvez não se conheça tempos tão devastadores, de desencontros e de desencantos, como os que estamos vivendo nos últimos anos. São tempos tremendamente carregados por superficialidades e falseamentos e por uma grande ausência de diálogos construtivos. São tempos de truculências verbais, de desconstruções do outro; tempos que chegam a assumir, em alguns aspectos, tonalidades de barbárie obscurantista, por vezes estimulada pelos próprios governantes. Assim, a ideia de “Diálogos em Construção” soa como algo “contracultural” nos tempos atuais. Isto pode parecer um discurso duro para o início de um “prefácio”, e soa um tanto desconcertante, para algumas pessoas. São, no entanto, as melhores palavras que encontrei para desenhar um retrato caricato dos sobressaltos que muitos de nós vivemos, quase como assaltados por um pesadelo, sempre que tentamos entender o que está acontecendo no Brasil de hoje. Se “Diálogos em Construção” soa como “contracultural”, é disso que mais estamos necessitados. O terreno é falso e movediço e a “construção” exige passos de paciência e de reforços consistentes. Não somos, obviamente, um “país maldito” ou uma sociedade isolada sofrendo deste mal. Em muitas outras sociedades o desenho tende a ser parecido. A partir de inícios de 2020 fomos assaltados por uma pandemia assustadora. Mas o que introduz esta nossa reflexão não é a pandemia. Nem é decorrência da pandemia. Não estou falando da pandemia. Sim, é verdade, ela existe, é uma realidade dolorosa, tanto pelo que 1 Jesuíta. Sociólogo. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. Diretor do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.

14 Prefácio é em si, quanto pelo que poderia ter sido evitado ser. Nós fomos surpreendidos por esta pandemia avassaladora que está deixando traços indeléveis em todo mundo. Ela tendeu a agravar extremamente as coisas, entre nós, é verdade, mas o clima de esvaziamento humano e de desconforto geral já estava instaurado, há muito mais tempo. Estamos, há anos, vivendo a triste sensação de nos vermos reduzidos a contemplar um declínio melancólico de nossas esperanças. São muitos os sonhos acalentados com amor, dedicação e carinho, sobretudo, ao longo da primeira década de nosso século. Tudo parece estar ruindo aos poucos, como que sendo solapado diariamente por um turbilhão de perversidades cuja origem nem sempre sabemos identificar. Aqui estamos falando do Brasil, mas temos consciência que em muitas outras sociedades questionamentos semelhantes, com matizes e temporalidades diferentes, são também agitados. Certamente “Diálogos emConstrução” é fruto de reação sadia dentro deste contexto. Ou seja, foi uma resposta ágil e certeira, entre muitas outras. Mas, o que vivemos não é resultado de um movimento inesperado e incontrolável, que teria sido instaurado a partir dos últimos cinco ou seis anos. Muitos sonhos despertados e cultivados ao longo de nossa sofrida reconstrução do ordenamento republicano, pós-ditadura militar, já foram sendo solapados ao longo de todo esse processo. Foram muitas as buscas e ensaios de condições para uma autêntica democracia participativa, que se viram quase sempre frustrados ou morreram melancolicamente “em silêncios ensurdecedores”. Na verdade, também não é o que vivemos nas últimas décadas, anos pós-ditadura militar, que nos poderá fornecer elementos suficientes para um bom entendimento do momento presente. O que nós estamos vivendo hoje no Brasil, mais do que nunca, deve nos fazer voltar, também, para a triste herança que pesa de um passado de uma sociedade elitista e excludente, que ainda não conseguiu fazer as pazes consigo mesma e muito menos conseguiu amadurecer para um verdadeiro espírito republicano e de prática participativa e cidadã na democracia. Vivemos hoje em um regime democrático,

15 Prefácio sim, mas é uma perversão da democracia, expressa em um modo de governar estritamente fechado sobre os interesses de certos grupos em detrimento ostensivo do Bem Comum. Se este modo de exercer (ou perverter) a democracia conseguiu chão fértil para ser cultivado por quem hoje detém o poder, são necessárias, como sinalizei antes, referências mais amplas para um entendimento mais aprofundado. Parafraseando o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, somos uma sociedade sobre cuja história e estrutura pesa terrivelmente a tríplice marca do capitalismo, do colonialismo e do patriarcalismo. Esta tríplice herança continua desenhada vivamente pelos atuais traços de uma economia extrativista e acentuadamente financeira, geradora de desigualdades socioambientais escandalosas, pelo racismo estrutural quemostra de forma renovada as suas evidências emmúltiplos casos e pela consciência sempre viva da morosidade com que avança a conquista da equidade em todos os âmbitos da sociedade. A expressão “Diálogos em Construção”, na contracultura deste cenário, soa como uma brisa reconfortante dentro do clima de claro desconforto que assola todas as pessoas capazes de pensar para além da mordaça conjuntural e estrutural que nos emudece. “Diálogos em Construção” é um projeto poderoso cujas sementes discretas jogadas nas frestas de uma cultura política bitolada movimentam de forma singela e teimosa os sonhos e as esperanças que não morreram. Muitas dessas sementes vêm caindo em solo fértil e as sementeiras se multiplicam. E talvez se possa dizer que, com isso, plantações robustas são realimentadas desafiando a realidade adversa. Fazem amadurecer frutos vigorosos, portadores de processos de conversão, que acalentam os sonhos que jamais morrem, ali onde existem e persistem seres que acreditam em sua vocação humana. Se nos reportarmos para um quadro mais amplo, podemos nos amparar nos muitos avanços que estão sendo demonstrados focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões, em termos de humanidade e de planeta terra. É o que está sublinhado na ideia de que tudo está estreitamente interligado. Uma voz que se ergueu, neste sentido, com lide-

16 Prefácio rança destacada nos últimos anos é a voz do papa Francisco. Esta voz está mais sistematicamente sintetizada em suas duas cartas encíclicas sociais, a Laudato Si’ (LS, 2015) e a Fratelli Tutti (FT, 2020). Nas expressões do papa Francisco subjaz um apelo evidente para pensarmos o todo em sua complexa interligação como um novo paradigma. É um convite que sinaliza para a condução do cuidado da humanidade e do planeta Terra, que é a nossa Casa Comum. Trata-se de um apelo a toda a humanidade, dirigida particularmente a todos/as aqueles/as que estão na frente da produção do conhecimento e das tomadas de decisão, na busca de respostas frente aos desafios manifestos, de forma dolorosa, na situação da humanidade, da vida e do planeta Terra nos tempos atuais. Está dirigida, também, ao modo de proceder dos seres humanos em seu dia a dia. Ao apresentar a Carta Encíclica FT, na Praça São Pedro, em 8 de outubro de 2020, o papa Francisco assim se expressou: “A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz”. É importante anotar que papa Francisco não fala “duas vias”, mas fala “uma única via”. Por trás desse cuidado com a linguagem reside, sem dúvida, um forte recado. O convite do papa interconecta, de forma orgânica, a produção do conhecimento, a tomada de decisões e o modo de vida do dia a dia, ao orientar a humanidade na grande tarefa que é o Cuidado da Casa Comum. Trata-se de uma Casa Comum que está caindo aos pedaços, ferida por um câncer mortífero: as tremendas desigualdades, expressões vivas da injustiça. “Vivemos em um mundo estragado”, dizia um documento da Companhia de Jesus, em 1999, fazendo eco a muitos gritos, escritos e declarações, gerados em circunstâncias de diferentes origens e por organizações e movimentos diversos. Um mundo estragado em todos os aspectos, desde as relações entre as pessoas, as relações de organização da ordem pública, as relações políticas, econômicas e culturais, até as relações ambientais no descuido clamoroso para com os dons da criação. Trata-se de um mundo sobre o qual se debruçam diferentes ecologias (humana, da vida cotidiana, econômica, am-

17 Prefácio biental, cultural, política, social etc.), todas elas representando importantes acúmulos de conhecimento e contendo ricas formulações, podendo-se vislumbrar, nelas, caminhos ou dimensões daquilo que é conhecido, mais radicalmente, como ecologia profunda, ou, através de novas composições, como vem sendo intuído na construção da proposta de uma ecologia integral (LS, 137-162). Os estragos quase indescritíveis em relação à harmonia da natureza, manifestos em paisagens horrendas de destruição da vida, sobretudo, nas periferias pobres das grandes cidades, não são mais do que manifestações dos estragos milenares que vêm marcando, de forma crescente, a autodestruição da própria humanidade, sua capacidade de se organizar e viver em seu habitat. Nessa realidade de autodestruição e degradação alguns tentam refugiar-se em seus mundos de refúgio silencioso e privado, enquanto outros engrossam a violência barulhenta. Mas há mais “uma opção sempre possível: o diálogo” (FT, 199). “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isso se resume no verbo ‘dialogar’” (FT, 198). Na Carta Encíclica FT (198-224) somos presenteados por uma rica reflexão sobre o “Diálogo e a Amizade Social”. É um convite para nos posicionarmos contra a cultura dos monólogos autodestrutivos e destrutivos dos outros, buscando construir juntos, de forma consensual os caminhos da verdade. Trata-se de toda uma nova cultura que deve ser construída, iluminada pela promoção do encontro e do prazer de reconhecer o outro. Em suma, um convite para trilharmos caminhos de reencontro com a nossa própria humanidade. Talvez, infelizmente, seja um convite para estarmos na contramão daquilo que hoje é mais ostentado e visível. “Diálogos em Construção” veio ocupando, desde 2016, determinados tempos e espaços de um valente grupo de pessoas, que se debruçou, mensalmente, sobre temas identificados como mais preocupantes de dentro dos múltiplos processos de degradação que estamos vivendo. Foram pautas envolvendo múltiplas problemáticas econômicas, políticas,

18 Prefácio sociais, éticas, culturais e ambientais. A publicação sistematizada dos “Diálogos em Construção” visa a ampliação dos diálogos e da sua construção para outras instâncias e grupos, para além dos públicos que estiveram diretamente envolvidos emmomentos dados em um espaço e tempo bem delimitados, em cada mês. A publicação talvez faça parte do processo de paciência e dos reforços consistentes na “construção”. “Diálogos em Construção” pulsa com vigor renovado, vendo, assim, o seu esforço reverberado e multiplicado com a possibilidade de novas qualificações das mesmas vozes, em círculos mais amplos. Com uma coletânea dividida em cinco grandes agrupamentos temáticos – “o momento da política”, “repercussões da pandemia”, “economia, ecologia e a questão agrária”, “fé e ensino social da Igreja” e “o momento da sociedade” – o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) propõe que os diálogos continuem em construção, repercutindo, despertando novas construções e novos diálogos. Com a reverberação esperada, os diálogos, com certeza, poderão reacender as chamas de nossas e novas esperanças. “Diálogos emConstrução” quer ser agente de multiplicação de esperanças e de cultivo do grande sonho sempre renovado de um “novo mundo possível”. Quando o termo “diálogos” como algo “contracultural”, é salutar que seja apresentado como “em construção”. Boa leitura e boas construções dialogantes!

19 INTRODUÇÃO Guilherme Delgado1 Seis eventos temáticos entre meados de 2016 e final de outubro de 2021 enfocam as questões título deste volume da coleção sobre os “Diálogos em Construção”. Dois recortes podem ser antecipados ao leitor, semprejuízo da intercomunicabilidade entre ambos. Em uma primeira parte, quatro abordagens sobre uma questão agrária e ambiental típica do século XXI, seguida ao final por enfoques do movimento do capital na órbita financeira e no espaço global, com claros desafios à soberania nacional. As várias abordagens da questão agrária e ambiental, de forma não exclusiva, mas destacada, focalizam as mudanças climáticas e os problemas relacionados à grilagem de terra pública, que se interpenetram. Essa característica imprime certa convergência à questão ambiental, inseparável da abordagem da estrutura agrária do país que, de certa forma, se misturam nosquatroprimeiros eventos temáticos, tendopor fecho “Oapelo do papa Francisco por uma economia humana e ecológica”. Por sua vez, nos dois eventos finais emergem problemas tipicamente financeiros na economia brasileira, que, numa perspectiva teológica analisada pelo papa Francisco (“A Alegria do Evangelho”), encarnariam de forma muito explícita certa idolatria do dinheiro. Esses problemas, que não são exclusivos do Brasil, se repõem à escala global pelo movimento do capital, mediante duas anomalias analisadas nos dois eventos: a presença significativa dos “paraísos fiscais” como espaço clandestino dessa mencionada idolatria; e por outro lado, a internacionalização dos mercados de bens da natureza – terra, água, minas e campos petroleiros, impondo graves desafios às soberanias territoriais, como também à própria questão agrária e ambiental. 1 Economista, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

20 Introdução O primeiro evento temático, com o título “Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira: implicações sociais e de soberania nacional”, objeto de dois eventos analíticos entre 2016 e 2019, destaca a pretensão de “regularização fundiária” da terra pública de fronteira à margem dos critérios constitucionais. Essa análise relativa a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de n. 5.623/2016, apresentada pela CONTAG, contestando a Lei n. 13.178/2015, mereceu votação no STF, quatro anos depois; e, em junho de 2020, cinco ministros votaram favoravelmente a ADI, ao mesmo tempo criando jurisprudência sobre alienação de terra pública. Mas um sexto Ministro – Gilmar Mendes – retirou a matéria de votação com pedido de vistas e não a devolveu desde junho de 2020. Isto significa paralisar o processo enquanto durar o pedido de vista que, na prática, não tem limite de tempo. Outras abordagens sobre grilagem de terra pública em conexão com a internacionalização do mercado de terras sequenciam o texto, apresentando muitas evidências das anomalias desse espaço, ora sob recorrentes e cada vez mais ousadas operações de apropriação irregular de terra pública, com subterfúgio da “regularização fundiária”. Cinco pesquisadores da área temática participaramdos eventos, conforme análises que são reproduzidas no texto – Jacques Alfonsin e Ivaneck Perez Alves (CONTAG) da área jurídica; Sérgio Sauer (UNB), Guilherme Delgado (ABRA) e Cleber Cesar Buzatto (CIMI) – das áreas de Ciências Humanas e militância social. O segundo evento é intitulado de “Mudanças climáticas e superexploração econômica no centro da crise hídrica”, ocorrido em 2018, tendo por protagonistas o agrônomo Osvaldo Aly, pós-graduado em Águas Subterrâneas, e Moema Miranda, antropóloga. Analisam-se questões recorrentes da crise hídrica, que se repõem com toda evidência em 2021. São destacadas nessas análises as iniciativas de privatização de águas pelas vias dos sistemas de saneamento público e sistema hidroelétrico, acrescidas da superexploração de commodities agrícolas em várias bacias hidrográficas já afetadas pelasmudanças climáticas. Emtais condições há sensíveis

21 Introdução tensões ambientais, expressas por sucessivas crises hídricas de repercussão geral, apresentadas ao senso comum como se fossem “problemas de responsabilidade de São Pedro”. O terceiro evento, com o título de “A degradação do meio ambiente e dos institutos socioambientais”, já em 2019, protagonizado por dois especialistas da área estatal – Alexandre Bahia Gontijo (Presidente da Associação dos Servidores do Ibama) e Joaquim Maia Neto (consultor legislativo do Senado Federal da área de meio ambiente), irá testemunhar com eloquência um autodiagnóstico do governo Bolsonaro, proferido pelo próprio presidente em 2021, referindo-se à situação dos combustíveis – “nada pode estar tão ruim que não possa piorar”. A sentença, aplicada à política ambiental, é lapidar. Passa-se literalmente a “boiada da desregulação ambiental” e da desmontagem dos órgãos da administração do governo federal, mais uma vez recorrendo às palavras literais de membros do governo (ex-ministro Salles, do Meio Ambiente); e abrem-se explicitamente as portas à criminalidade da devastação pelo comércio ilegal de madeira, a ponto de provocar reação policial externa, de origem norte-americana, que culminará com a saída do então ministro Salles. Tudo isso é sucedido por operações conexas de grilagem de terra pública, com tentativas explícitas de legalização pela via das “regularizações fundiárias” cegas à criminalidade e também à inconstitucionalidade das mesmas. Oquarto evento trata de “Política externa, mercado global e soberania nacional: o que está em jogo?”, protagonizado em duas ocasiões, respectivamente, pelo ex-secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores em vários governos do PT, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e pelo embaixador Paulo Roberto de Almeida, com presença mediadora do economista da equipe de “Diálogos em Construção”, Guilherme Delgado. Nos dois eventos, com distintas interpretações doutrinárias, são enfocadas as estratégias globais do grande capital, com ou sem interveniências dos Estados nacionais respectivos, no sentido da crescente diluição das soberanias nacionais

22 Introdução dos territórios onde operam, reproduzindo processos neocoloniais sub-reptícios. Em especial, a internacionalização de quatro mercados especiais – terras, águas, minas e campos petroleiros, afeta diretamente as soberanias nacionais, naquilo que é essencial à sua concepção jurídica e política – o próprio controle do território. O quinto evento, sobre “Finanças públicas brasileiras e idolatria do dinheiro”, no segundo semestre de 2018, está mudando o enfoque agrário e ambiental das quatro primeiras falas, recorrendo às análises dos economistas José Celso Cardoso do Ipea e Guilherme Delgado, pesquisador aposentado também do Ipea. Como se verá na análise textual, faz-se uma leitura das finanças públicas brasileiras à luz da interpretação teológica sobre a idolatria do dinheiro, de alguma maneira recuperando inspirações muito oportunas da “Economia de Francisco”. Algumas características do sistema financeiro brasileiro de quatro “i” – de ilimitada despesa financeira, inimputabilidade criminal, irresponsabilidade fiscal tolerada aos paraísos fiscais, independência do Banco Central e virtual exclusão das finanças sociais erigidas pela Constituição de 1988, acrescidas ainda da forte desigualdade na tributação de ricos e pobres; convertem este sistema em objeto pouco comum às ciências sociais. É nesse contexto que se recorre à abordagem da idolatria do dinheiro, claramente de denúncia aos novos ídolos do tempo presente. Tal denúncia é proferida pelo papa Francisco em vários documentos do seu pontificado. Nesse sentido, as finanças públicas brasileiras, que operam com categorias interconexas – moeda, tributação, orçamentos públicos, dívidas e haveres públicos em suas relações com o setor privado, todas subordinadas às características supramencionadas, são uma espécie de experimento radical de uma “economia que mata”, para usar a feliz expressão da mensagem de Assis. O sexto e último evento, “O apelo do papa Francisco por uma economia humana e ecológica”, de janeiro de 2020, apresentado pelo sociólogo Eduardo Brasileiro (Associação

23 Introdução Brasileira da Economia de Francisco e Clara) e pelo economista Guilherme Delgado, da própria equipe dos “Diálogos em Construção”, realiza uma interpretação contextualizada do Manifesto de Assis, do papa Francisco (1º de maio de 2019), de lançamento da “Economia de Francisco”. Em particular, ilumina-se, com o enfoque teológico do papa Francisco, a discussão sobre diferentes economias alternativas, na linha do atendimento de necessidades humanas básicas e de resgate da ecologia, em contraposição à verdadeira idolatria econômica dos mercados autorregulados e do seu potencial destrutivo visceral.

Para acessar o debate utilize o aplicativo leitor de QR-Code disponível no seu celular apontando-o para a imagem abaixo ou acesse https://www.youtube.com/watch?v=YGe4Ennra4U&t=608s

25 MUDANÇAS DAS REGRAS INTERNACIONAIS SOBRE TERRA DE FRONTEIRA: IMPLICAÇÕES SOCIAIS E DE SOBERANIA NACIONAL Convidados: Jacques Alfonsin1 Sérgio Sauer2 Ivaneck Perez Alves3 Cleber Cesar Buzatto4 Guilherme Delgado5 A grilagem de terras, que no Brasil se intensificou ao longo do governo Bolsonaro, claramente apoiado pelo ruralismo, ameaça seriamente a soberania nacional. Mas foi ainda no governo de Michel Temer que se iniciaram as investidas contra os dispositivos constitucionais que garantem ao povo brasileiro o seu direito ao solo em que pisa ou eliminam a função social da propriedade da terra e sua proteção ambiental. É verdade que as propostas recentes são bastante ousadas, como a Medida Provisória 910/2019 que, caducando, voltou ao Congresso Nacional na forma do Projeto de Lei 2.633/2020. A matéria regulariza as ocupações em terras da União, legalizando, na prática, a grilagem de terras na Amazônia. Por outro lado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80/2019, de autoria do senador Flávio Bolsonaro, altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal, mudando por completo o conceito de função social da propriedade urbana e rural estabelecido pelos constituintes. Matérias anteriores, no entanto, já rondavam as esferas de poder com propostas de alteração no regramento atual sobre propriedade de terras no país, como a lei que flexibiliza as 1 Procurador aposentado, integrante do Conselho Consultivo da Acesso Cidadania e coautor da ADI n. 5.623 2 Sociólogo, professor na UNB. 3 Advogado da CONTAG. 4 Secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – CIMI. 5 Pesquisador do Ipea - Liberty elementor.

26 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira normas nas terras de fronteiras (Lei 13.178/2015), ou o Projeto de Lei 2.963/2019, que põe fim às restrições à compra de imóveis rurais por pessoas ou companhias estrangeiras. Apenas pela expectativa de aprovação dessas medidas houve uma verdadeira explosão de invasões de terras públicas na Amazônia e o consequente aumento do desmatamento nessas áreas entre 2018 e 2020, segundo estudo divulgado emmaio de 2021 pelo Instituto Socioambiental (ISA).6 O estudo teve como base a análise dos registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Segundo o levantamento, o desmatamento nas florestas públicas não destinadas na Amazônia quase dobrou no período, passando de 185 mil hectares para 367 mil hectares, um aumento de 98 %. “Esses assuntos implicam na desnacionalização do solo brasileiro, com graves consequências ambientais e ameaça à segurança nacional. Não se trata de um risco teórico, é real e pode ser verificado quando os tribunais internacionais arrolam para si a jurisdição em demandas que envolvam empresas de capital estrangeiro”, alerta o economista Guilherme Delgado, especialista em políticas públicas e questões agrárias, ex- -pesquisador do Ipea. Segundo Delgado, as estimativas apontam que, atualmente, entre 4,5 milhões e 5 milhões de hectares de imóveis rurais pertencem a empresas estrangeiras. “Mas o número pode ser muito maior, pois há muitas imprecisões no cadastro do Incra, que é autodeclaratório”, completa Delgado. Autor do livro “Terra, Trabalho e Dinheiro – Regulação e desregulação em três décadas da Constituição Federal de 1988”, o pesquisador denuncia que todas essas alterações na legislação acobertam uma “gigantesca grilagem” que há anos se consolida no Brasil, ao arrepio da Constituição. Em um dos seus capítulos, o livro traz levantamento feito por Delgado, entre os anos de 2003 e 2014, tendo como base o Cadastro de Imóveis Rurais, que demonstra o quanto cresceu o mercado de terras no Brasil, comprometendo a soberania nacional, além dos direitos garantidos pela Constituição. 6 https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/mesmo-antes -de-aprovado-pl-da-grilagem-esta-destruindo-a-amazonia

27 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira Os dados mostram “um movimento inusitado de autoinscrições de novos potenciais detentores de propriedades privadas sobre o território nacional”, que salta de 418,48 milhões de hectares em 2003 para 740,40 milhões em 2014. Como terra não é mercadoria produzida e reproduzida à semelhança dos produtos que dela se geram, esse avassalador movimento de ampliação do tamanho do mercado somente pode ocorrer pelo remarcar tácito ou explícito do território nacional com direitos de propriedade legítimos. E aqui começa a estória real, nada dignificante, da pretensa ampliação do mercado de terras. Observe o leitor – 740 milhões de hectares de imóveis rurais corresponde a 87 % do território nacional total (851,4) milhões de hectares. Mas o IBGE define no seu Censo Agropecuário de 2006 uma marcação territorial que absolutamente não se compraz com esse dado autodeclaratório. As Reservas Indígenas demarcadas e amparadas pelo art. 231 da Constituição Federal são de 14,74 % (125,54 milhões de hectares); os Parques e Reservas Naturais, amparados pelo art. 226 da Constituição Federal, são de 8,47 % (72,1 milhões de hectares) e as terras públicas com “Outras Titularidades”, ”Zonas de fronteira”, “Terrenos de marinha”, “Terra Devoluta” etc. (art. 20 da Constituição Federal) correspondem, segundo o levantamento do IBGE, a 36,2 % do território. Somando a terra pública amparada pelos regimes fundiários constitucionais citados, temos 59,45 % do território nacional, que, portanto, está fora do mercado de terras, segundo o conceito constitucional de domínio público. Mas se somarmos as terras públicas, medidas pelo IBGE com as terras autodeclaradas ao Incra como ‘imóveis rurais’, teríamos o absurdo de um território 46 % maior que o território nacional. A explicação para esse absurdo lógico formal – o leitor já pode suspeitar – gigantesca grilagem, seguida de sucessivas operações de ‘legalização’.7 Várias matérias legislativas vêm sendo apresentadas para permitir que estrangeiros tomem posse de propriedades nacionais. 7 DELGADO, Guilherme. Mercado de Terras Brasileiro: “Sem Fronteiras” e com Muita Grilagem é oferecido ao Capital Estrangeiro pelos Ruralistas. In: DELGADO, Guilherme. Terra, trabalho e dinheiro: regulação e desregulação em três décadas da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Loyola, 2019. p. 286.

28 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira A mais recente é o Projeto de Lei 2.963/2019, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), aprovado em 2020 no Senado e que, até a edição desse livro, permanecia sem votação na Câmara dos Deputados. O texto regulamenta o art. 190 da Constituição Federal para dispor sobre a aquisição e o exercício de qualquer modalidade de posse, inclusive o arrendamento, de propriedades rurais por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. À proposta foi apensado o Projeto de Lei 4.059/2012, que trata do mesmo assunto, e foi objeto de discussão no “Diálogos em Construção”. O evento discutiu também a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.623, que questiona a Lei 13.178/2015, sobre a privatização das terras de fronteira. Por trás de toda essa movimentação para modificar a legislação, está o interesse econômico de grandes corporações na aquisição de terras brasileiras. Os objetivos muitas vezes vão além do agronegócio, conforme especialistas. Sérgio Sauer, professor da UnB, alerta que o tema da internacionalização e grilagem de terras não é de agora e não se restringe ao Brasil. A partir do conceito neoliberal da globalização e o fim das fronteiras, emmeados dos anos 1990, abriu- -se o caminho para, na virada do milênio, colocar em prática o fenômeno que se convencionou chamar “global land grabbing”, que traça uma nova geopolítica mundial, a partir, especialmente, do agronegócio. A expressão, diz Sauer, não encontra tradução perfeita no Brasil, mas tem sido associada a “estrangeirização de terras” emambientes acadêmicos ou oficiais. “O termo estrangeirização não é exatamente nem do ponto de vista jurídico legal, nem do ponto de vista do que está acontecendo, um termo que traduza com relativa precisão a land grabbing”, diz o professor. No espanhol, por exemplo, o termo foi traduzido para “acaparamiento de tierras”. Por uma interpretação livre, a expressão significaria aquilo que no Brasil ficou conhecido como “grilagem de terras”.8 8 Os fenômenos da “grilagem” de terras públicas brasileiras ou acaparação de terras ou “acaparamiento de tierras” na versão em espanhol são bastante antigos. Em geral essas ações tinham o caráter privado de burla ao título de propriedade mediante falsificação documental. Mas sua associação ao chamado “land

29 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira Ao reforçar que a prática não é recente no Brasil, especialistas como o jurista Manoel Castilho remontam às capitanias hereditárias do período colonial ao descrevê-la. O pesquisador acrescenta que, no entanto, traz novidades no modo como se dá a apropriação de terras por estrangeiros, especialmente a partir da crise econômica de 2008. Sauer cita estudo do Banco Mundial, publicado em 2010, apontando para “uma corrida mundial por terras”. No documento, o Bird mostra como componente central dessa corrida a crise alimentar de 2008, com o aumento da demanda, causado principalmente pela elevação do poder aquisitivo dos chineses. Segundo o pesquisador, a explicação do documento para a corrida mundial por terra incluía, além da demanda por alimento, a busca, especialmente por parte da Europa, por fontes de energia limpa. E, por último, a necessidade do próprio setor agroindustrial de expandir os seus investimentos em regiões que dispunham de maior oferta de terras para aumentar a sua produtividade. Sauer acrescenta um quarto item, a crise climática, não listada pelo Banco Mundial, mas amplamente discutida emdiversos fóruns. Esse tema também suscitou a busca por terras não por produção, mas para a preservação ambiental. Ao reforçar que o modus operandi é a novidade na prática da land grabbing atualmente, ele mostra como a americana Shell conseguiu driblar a lei que proíbe empresas estrangeiras de terem propriedades rurais no Brasil. A Radar é uma imobiliária criada por outra empresa chamada Cosan, que historicamente era uma empresa pertencente a famílias tradicionais de São Paulo, de usinas de cana. Só que a Cosan foi comprada pela Shell, gigante do petróleo, e vende suas ações no mercado de ações. Assim, a Radar é de propriedade da Cosan, que é de propriedade da Shell e investidores da bolsa a nível internacional. A Radar compra fazendas, de preferência fazendas quebradas, vende ou as torna produtivas, só que grabbing” ou às tentativas de internacionalização do mercado de terras são mais recentes, com agravante que se realizam precedidos por ações de pretensa “regularização fundiária”, formalmente legal. E, nesse contexto, a grilagem de terras públicas na zona de fronteira do Brasil adquire peculiar gravidade, pelo fato de ferir simultaneamente vários princípios constitucionais – “função social e ambiental da propriedade”, destinação prioritária das terras pública e soberania nacional, dentre outros.

30 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira ela não compra nem com o dinheiro da Cosan nem com o dinheiro da Shell. Ela compra com recursos que capta no mercado internacional, como por exemplo os fundos de pensão. Só que essas propriedades estão no nome da Radar. Isso é estrangeirização ou não? Isso é um fenômeno novo ou não? Há problemas para soberania nacional ou não? Esse é o fenômeno que se debate atualmente. Uma parte significativa desse negócio se enquadra no que eu chamo de ruídos ou, no sentidomais econômico, é a produção de notícias para especulação, não só no sentido genérico da especulação, mas especulação no sentido econômico, porque se divulga que há interesses, significa divulgação da demanda, se há demanda sobe os preços ou se valoriza o produto. Então essa é uma dinâmica importante no processo de estrangeirização. Ainda com o exemplo das operações da imobiliária Radar, Sauer segue para outro aspecto que marca como novidade a “land grabbing”, o processo de “financeirização”, em que investir em terras não mais significa imobilizar capital, porque a terra vem se transformando de imóvel em ativo financeiro. “Uma das novidades desse fenômeno é a dimensão da financeirização, que é mais recente, uma combinação muito difícil de separar entre investimento de capital produtivo com capital especulativo. Essas duas coisas se borram cada vez mais”, explica o pesquisador. Por causa da financeirização, diz Sauer, surgem novos atores, diferentes dos fazendeiros a que estamos habituados. São grandes corporações, como bancos, seguradoras e outras empresas. Há também os fundos de investimento, como os de pensão, os private equity, os soberanos, os dehedge, por exemplo. Ele lembra que o exemplo da Radar é bastante ilustrativo, pois se trata de uma imobiliária que capta recursos para investir em terras e negociar. A Shell, dona da Radar, compra terras para investir nas usinas da cana-de-açúcar. Cita ainda a British Petroleum (BP), que vem investindo pesado em Goiás. Outro novo ator, personagem dos tempos atuais, são os fundos de pensão. “Os professores da universidade de Harvard, meus colegas, compraram terras no Matopiba,9 obviamente que não 9 Acrônimo que faz referência a uma região do cerrado que engloba os estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, marcada pela forte expansão agrícola.

31 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira aparece a associação, não aparece a universidade, mas tem um fundo de pensão no qual eles investem que tem recursos da Radar, que compra as terras”, exemplifica. Ao explicar o fenômeno, o professor fala da dificuldade em se encontrar quem são os verdadeiros donos das terras. “Se alguém vai ao cartório, não encontra o nome do estrangeiro que tem a terra, nem nos dados do Incra nacional, ou mesmo no censo agropecuário. São raros os casos em que há uma relação entre o sujeito estrangeiro e a propriedade, ou arrendamento ou apropriação. Além dos sujeitos serem diferentes, há uma dificuldade com a governança da terra, porque os processos de quem realmente controla são diluídos, particularmente em países como o Brasil”. Essa situação, recorda o pesquisador, provoca incertezas e uma total insegurança jurídica, já que o solo brasileiro está sendo ocupado ilegalmente por estrangeiros. As diversas propostas de alterações nos normativos surgem para resolver esse problema e abrir as porteiras brasileiras para o investidor estrangeiro. Essa nova safra de capitalistas na agricultura, segundo Cleber Cesar Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), está por trás das propostas de alteração da legislação sobre a terra. O agronegócio mostra-se cada dia mais entreguista e vendilhão, há muitas diferentes organizações que representam o setor, estão envolvidas em negociações que visam a produção e exportação das commodities agrícolas. Para tanto, importam e fazem do Brasil o maior consumidor de agrotóxico do planeta. Ao mesmo tempo, exportam embutidos nessas commodities, trilhões de litros da chamada água virtual, desmatamento sem limite e o sofrimento de milhões de cidadãos, ou milhares de cidadãos brasileiros expropriados de suas terras e muitos inclusive de suas vidas. O modelo agroexportador é amplamente benéfico aos interesses econômicos das grandes corporações multinacionais que dominam o setor e revertem bilhões de reais anualmente à suas matrizes na forma de lucros e dividendos advindos de suas atividades no Brasil. Assimo fazem recorrentemente a Monsanto, a Cargill, a John Deere, a Cosan Shell, entre outras, para os EUA; a Syngenta para a Suíça, a Bunge para a Holanda, a New Holand para a Itália, a Bayer/Basf para a Alemanha, a LDC para a França, entre outras.

32 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira Buzatto e outros especialistas no setor, como o jurista Jacques Alfonsin, apontam os interesses econômicos e agrícolas como uma das motivações para o processo que tirou a presidente Dilma Rousseff do poder, colocando em seu lugar Michel Temer. Já era forte, no Congresso Nacional, a chamada bancada ruralista, que encontrava, no governo de então, resistência aos seus projetos, conforme Buzatto. “Representantes do agronegócio no Congresso Nacional, a bancada ruralista em conluio com o governo ilegítimo de Michel Temer, não satisfeita com este nível de submissão aos interesses externos, defende inclusive a entrega do próprio território brasileiro ao capital internacional”, afirma o ativista, ao enumerar diversos instrumentos utilizados pelos ruralistas para o alcance do intento. Entre as propostas citadas por Buzatto, está o PL 4.059 de 2012, apensado mais tarde ao PL 2.963/2019, que autoriza a aquisição de áreas rurais e suas utilizações por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras; a implantação da Lei 13.178 de 2015 que legaliza a titulação privada de terras públicas em regiões de fronteira; e a MP 759 de 2016, convertida na Lei 13.465/2017, que prioriza a titulação privada de terras desapropriadas para fins de reforma agrária, permitindo a reconcentração de terras inclusive por estrangeiros, em sacrifício da reforma agrária e demarcação das terras indígenas. É forçoso reconhecer que a inviabilização das demarcações das terras indígenas é almejada pelos ruralistas tambémpara potencializar o alcance da desnacionalização do território brasileiro. Não custa reiterar que quando demarcadas, as terras indígenas são registradas em nome da União, portanto como propriedade da União pela secretaria de patrimônio da União. A Constituição brasileira também veda a alienação dessas terras, isso por evidente constitui num poderoso elemento jurídico que estabelece limites aos interesses de apossamento e apropriação privada do território brasileiro pelo capital internacional inclusive. Nesse sentido, as proposições legislativas e iniciativas administrativas manejadas para inviabilizar as demarcações de terras indígenas se somam fortemente à estratégia entreguista do agro. O medo de serem desmascarados perante a sociedade brasileira, e principalmente perante seus eleitores, faz

33 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira com que os ruralistas se empenhem fortemente na tentativa de construir uma nuvem de fumaça que encubra suas verdadeiras intenções e iniciativas entreguistas. Equivocadamente imaginam que formaram tal nuvem de fumaça com a quebra de sigilos fiscal, bancário de organizações da sociedade civil que apoiam a luta dos povos originários em defesa de seus direitos, entre os quais o próprio CIMI. A insistência doentia em protelar a vigência da CPI da Funai em funcionamento desde outubro de 2015 é parte desta tentativa ruralista de formar essa nuvemque eles almejam. No entanto, na nossa avaliação, não há fumaça que esconda o fato de que o agro quer estrangeirizar o Brasil. Nós temos vivido, nesses últimos anos, especialmente a partir de 2011, um processo intenso de ataque por parte do agronegócio aos direitos constitucionais consagrados especialmente no artigo 231 aos povos indígenas. Tal artigo reza que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, determinando, assim, a demarcação dos territórios indígenas no país. “A ação de ataque que está em curso visa exatamente desconstruir por completo esse princípio constitucional conquistado na luta pelos povos indígenas naquele período de 1987 e 1988 (Assembleia Nacional Constituinte). Essa desconstrução visa especialmente, no que tange a questão fundiária, por um lado inviabilizar por completo e em definitivo todo e qualquer procedimento de reconhecimento e demarcação de terras indígenas, terras essas que os povos reivindicam e até o momento não conseguiram que o Estado brasileiro reconheça e proceda a devida demarcação como previsto na norma constitucional”, salienta o secretário do CIMI. Segundo Buzzato, não seria apenas esse o objetivo, mas também o de “legalizar a invasão e a exploração e, portanto, a mercantilização das terras indígenas que já foram demarcadas e cuja posse está, ou deveria estar, no controle dos povos indígenas”. Um dos normativos que claramente ameaçam as culturas indígenas, mas não apenas a elas, é Lei 13.178 de 2015,

34 Mudanças das regras internacionais sobre terra de fronteira que legalizou a titulação privada de terras públicas em regiões de fronteira. Assinada pela presidente Dilma Rousseff, a Lei gerou reações até mesmo por parte do seu ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA) Patrus Ananias, que preferiu não assinar o documento. “Eu não concordei com a Lei. A presidente Dilma foi, inclusive, muito elegante ao concordar que ela não contasse com a minha assinatura. Mas conversando com os movimentos sociais à época, todos concordamos que não era o caso de me afastar do governo por conta desse episódio”, comentou Patrus no “Diálogos em Construção” realizado em maio de 2021. A Lei é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5.623, ajuizada pela CONTAG e tendo várias organizações de Direitos Humanos como amicus curiae. O jurista Jacques Alfonsin, procurador aposentado e assessor jurídico de movimentos populares como o MST e ONGs ligadas aos direitos humanos, é autor da ADI, juntamente comManoel Castilho, juiz de direito aposentado e Ivaneck Perez Alves, advogado da CONTAG. A ADI reivindica que “a ratificação dos imóveis ou títulos respectivos fiquem sempre sujeitos ao regime próprio da titulação de terras rurais originárias de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, bem assim ao regime de legitimação ou reconhecimento de ocupação de terras públicas rurais de domínio da União, especialmente na faixa de fronteira”. Alfonsin argumenta que, ao dispor sobre a ratificação de registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira, a Lei afronta os dispositivos constitucionais que tratam da reforma agrária e da função social da propriedade da terra. Sem contemplar as exigências constitucionais relacionadas ao assunto, a lei simplifica a validação de registro e título de imóveis das terras públicas em faixa de fronteira, determinando que imóveis de até quinze módulos fiscais tenham certificação automática. Acima disso, é necessário apenas apresentar a certidão de georreferenciamento do imóvel e da atualização de inscrição no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR),

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