Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888

Casa Leiria

Lavradores, artesãos e marinheiros podem ser tomados como os principais representantes da camada de trabalhadores livres pobres da comarca de Paranaguá, entre 1850-1888. O estudo empreendido revela alguns significados da pobreza por eles vivida e caracteriza elementos da cultura material da gente simples do litoral do Paraná

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2023 JOSÉ AUGUSTO LEANDRO POBRES DO GRANDE MAR REDONDO LAVRADORES, MARINHEIROS E ARTESÃOS DA COMARCA DE PARANAGUÁ, 1850-1888

Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 José Augusto Leandro Imagem da capa: Detalhe de aquarela Vista do porto de Paranaguá, situada no rio Itiberê, por volta da década de 1870. Acervo do IHGP-Paranaguá. Autor desconhecido. Dimensões 60 cm x 35 cm, 1870. O texto é de responsabilidade do autor. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 EDITORA CASA LEIRIA – CONSELHO EDITORIAL Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS) Ana Patrícia Sá Martins (Uema) Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo (UERN) Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco (UFRN) Haide Maria Hupffer (Feevale) Isabel Cristina Arendt (Unisinos) José Ivo Follmann (Unisinos) Luciana Paulo Gomes (Unisinos) Luiz Felipe Barboza Lacerda (Unicap) Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos) Rosangela Fritsch (Unisinos) Tiago Luís Gil (UnB) Leandro, José Augusto L437p Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 [recurso eletrônico] / José Augusto Leandro. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casa leiria/acervo/historia/pobresdograndemarredondo/index.html> ISBN 978-85-9509-073-6 1. História do Brasil – Paraná. 2. História – Paranaguá, PR – Hierarquia socioeconômica. 3. História – Paranaguá, PR – Práticas econômicas. I. Título. CDU 94(816.2PARANAGUÁ)

5 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 SUMÁRIO 9 INTRODUÇÃO: NEM CAMPEIRA, NEM EUROPEIA 25 NEM INÚTEIS, NEM INADAPTADOS: HISTÓRIAS DE ARTESÃOS E MARINHEIROS 31 Artesãos em autos de arrecadação, em documentos do juizado de órfãos e em documentos criminais 44 Trabalhadores do mar em autos de arrecadação e em documentos criminais 48 Marinheiros: estigmatizados e castigados 63 VIVER E SOBREVIVER DA MANDIOCA, PUXAR MADEIRA E BATER FANDANGO: SER LAVRADOR POBRE NA COMARCA DE PARANAGUÁ 67 Limites de expansão territorial e estratégia de sobrevivência: depositar a semente em terras de outrem 76 Bens que o uso reclama: a roda, a prensa, o forno e o tacho 78 Cultivo da mandioca e produção da farinha 82 Todos Comiam Farinha 84 A Família da Farinha 86 Na Puxada 89 A madeira ajudava a viver 95 A madeira ajudava a morrer 106 No Fandango 109 Da repressão ao fandango 112 Dos preparativos 114 Dos convidados 116 Das tensões e dos conflitos 123 CONSIDERAÇÕES FINAIS 127 REFERÊNCIAS 135 AGRADECIMENTOS

“... o mangue Deus tinha deixado para todos”. Anna Maria do Carmo, 1885.

9 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 INTRODUÇÃO: NEM CAMPEIRA, NEM EUROPEIA1 Os caminhos são as águas... Julius Platzmann, viajante alemão, sobre a comarca de Paranaguá, 1872. O produto do trabalho colonial é nenhum. Rodrigo Otávio, presidente da província, sobre a imigração no litoral do Paraná, 1878. Este estudo debruça-se sobre uma comarca litorânea do Brasil Meridional chamada Paranaguá, no período compreendido entre 1850-1888. Territorialmente vasta, a circunscrição pesquisada possuía domínio jurídico, político e administrativo sobre populações que viviam na cidade de Paranaguá, na vila de Guaratuba (ao sul) e na freguesia de Guaraqueçaba (ao norte). Além disso, dentre as almas da comarca estavam os moradores de algumas dúzias de quarteirões esparramados por ilhas e outros internalizados na parte continental da floresta atlântica, às margens de inúmeros rios.2 Essas almas compuseramparte significativa da população da então nova Província do Paraná a partir de 1853. Vere1 Este livro reproduz parte de minha tese de doutoramento intitulada Gentes do grande mar redondo: riqueza e pobreza na comarca de Paranaguá, 1850-1888, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, em agosto de 2003. Ao mirar somente para as histórias relacionadas à pobreza, foi necessário escrever alguns novos parágrafos. Contudo, se preservou o sentido do que foi defendido em 2003. 2 “Grande mar redondo” é o significado da palavra indígena Pernagoá. A baía de Paranaguá engloba outras baías menores: baía de Guaraqueçaba, baía das Laranjeiras, baía de Pinheiros, baía de Serra Negra. Cerca de 40 km ao sul da cidade de Paranaguá situa-se a baía de Guaratuba, onde a vila de mesmo nome se tornaria município autônomo, em 1947. A freguesia de Guaraqueçaba, cerca de 30 km ao norte da cidade de Paranaguá, tornou-se vila em 1880, e município autônomo em 1947.

10 José Augusto Leandro mos, ao longo da análise aqui empreendida, alguns aspectos das suas vidas. Mas desde já cremos ser importante destacar a impropriedade de determinadas representações dessas gentes, como a que pode ser captada na seguinte passagem: Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem português, e sem índio, dir-se-ia que sua definição humana não é brasileira.3 Pois nada mais distante da asserção citada do que a história de uma comarca do sul do Brasil chamada Paranaguá. No período que aqui nos interessa, os processos históricos ali verificados constituemprova de umParaná muitomais colorido, diferente do que se depreende do quadro monocromático pintado por Wilson Martins emmeados da década de 1950. Ao contrário do que ele sugeriu, a melhor definição humana para este espaço do Brasil Meridional, para todo o oitocentos, é a sua brasilidade decorrente da convivência, ali, de populações de origem africana, portuguesa e indígena. Os arredores da baía de Paranaguá, da baía de Guaraqueçaba e da baía de Guaratuba – e as ilhas que compõem o ambiente litorâneo paranaense – foram lócus de povos indígenas, principalmente de carijós. Estes migraram da região para outras paragens ou transformaram-se, pela mestiçagem, passando a integrar comunidades caiçaras.4 Vale lembrar que muitos indígenas padeceram nos inúmeros contatos com os colonizadores.5 No litoral paranaense, pelo menos até o final da década de 1870, escravos e escravas (de nação 3 MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: ensaio sobre fenômenos de aculturação no Paraná. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989. p. 446. A citação refere-se ao último parágrafo da obra. A primeira edição é de 1955. Vale lembrar que Martins refere-se ao Paraná a partir da criação da província, em 1853. 4 MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara: terra e população: estudo de demografia histórica e da história social de Ubatuba. São Paulo: Paulinas: CEDHAL, 1986. 5 “Na última década do século XVII, a Câmara de Paranaguá pedia à autoridade real mais índios para a mineração, pois o sarampo e a bexiga [varíola] tinham exterminado os trabalhadores indígenas da vila.” BALHANA, Altiva Pilatti; MACHADO, Brasil Pinheiro; WESTPHALEN, Cecília Maria. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. p. 39.

11 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 ou nascidos no Brasil) foram frequentemente listados em inventários post-mortem; e a comarca foi, também, um importante centro receptor de inúmeros habitantes nascidos em Portugal, muitos deles negociantes ou marinheiros que se radicaram principalmente na cidade de Paranaguá ao longo de todo o século XIX. Assim, este trabalho percorre um território do Brasil Meridional composto de habitantes brancos, muitos deles com forte acento lusitano, e que ali conviviam compopulações de origem africana6. Observando a baía de Paranaguá do alto do vapor Paraense, em setembro de 1858, o viajante alemão Robert Avé-Lallemant nos legou uma sugestiva pintura de gênero na qual mulheres negras se destacavam ao remar pelas águas do grande mar redondo: Na manhã seguinte olhamos para todas as particularidades que a baía oferece. Canoas de pescadores sulcavam a superfície; pequenas embarcações traziam lenha para aquecer as nossas caldeiras, outras traziam carga, especialmente sacos de arroz. O que parecia mais maravilhoso era uma canoa familiar [...]. Na frente da canoa, duas vigorosas negras, que remam virilmente. Uma delas tinha um genuíno rosto da Costa, sem dúvida procedia de Moçambique. Em torno da robusta rapariga tremulava admiravelmente um vestido de chita de cor, cujas dobras supérfluas ela prendia entre joelhos para melhor poder usar o remo.7 Se o espaço aqui analisado possuía suas particularidades locais, não deixou de vivenciar, ao seu modo, determinados processos históricos mais amplos ocorridos em diversas partes do Brasil colonial e imperial. Dentre eles é importante destacar o decorrente das migrações forçadas de populações de diferentes etnias do continente africano. Tal fenômeno produziu contornos que conformam a comarca como assemelhada a outras partes litorâneas do país, como o Recôncavo Baia6 Segundo Romário Martins, no período do início da província do Paraná, a partir de 1853, a população de Paranaguá foi estimada em 6.533 almas, sendo 5.259 livres e 1.274 escravos. MARTINS, Romário. Quantos somos e quem somos. Curitiba: Empreza Grafica Paranaense, 1941. p. 89. 7 AVÉ-LALLEMANT, Robert. 1858, viagem pelo Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. p. 95-96.

12 José Augusto Leandro no, por exemplo. A descrição de Avé-Lallemant sobre os tipos humanos que sulcavam a baía é inequívoca quanto a isso. Tão inequívoca quanto a resposta dada ao juiz de direito de Paranaguá, em 1883, por Delphina, de nação benguela, traficada ilegalmente ao Brasil e que lutava na justiça pela sua liberdade. Ao ser indagada se lembrava a sua idade quando veio da África, respondeu, de pronto, “que era rapariguinha, que não tinha ainda seios”.8 O mundo do trabalho que se constituiu no litoral paranaense tem recebido pouca atenção por parte dos historiadores com a formação acadêmica do ofício. A escrita da história do Paraná é nitidamente marcada por temas com recortes preferenciais sobre variados aspectos dos planaltos e da cidade de Curitiba no século XX, e, para o século XIX, incluíram-se também no repertório temático das pesquisas muitos estudos sobre colônias de imigrantes que se instalaram nas proximidades da capital da Província.9 Segundo Eduardo Spiller Pena, alguns estudos efetuados nas décadas de 1960 e 1970 tentaram dar conta de vários aspectos da formação da sociedade paranaense e inclusive se contrapuseram à visão do Paraná europeizado de Wilson Martins.10 No entanto, poucos foram voltados aos espaços litorâneos. Ademais, ficamos com a impressão – dado o excesso de pesquisas sobre o período republicano em contraposição à exiguidade de investigações sobre a época colonial e imperial – de que as propostas abolicionistas e imigrantistas do final do século XIX ainda constituem uma espécie de marco zero para se pensar uma história do Paraná. 8 1883. Ação de Liberdade. José Cleto da Silva supplicante. Visconde de Nácar supplicado. Museu da Justiça. 9 A partir do final da década de 1990, com a criação de cursos de pós-graduação emHistória em diversas universidades públicas estaduais do Paraná, houve diversificação temática de pesquisas para as regiões Centro-Oeste, Oeste, Sul e Norte. 10 PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. p. 24. Spiller Pena refere-se sobretudo aos estudos do início da década de 1960, de Brasil Pinheiro Machado e de Octavio Ianni. Ver: MACHADO, Brasil Pinheiro. Contribuição ao estudo da história agrária do Paraná. In: Boletim da Universidade Federal do Paraná, Curitiba n.3, p.11-2 e 15-16, junho 1963; IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. Apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional. São Paulo: Hucitec, 1988.

13 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 Tal fato, observado, aliás, para a historiografia brasileira como um todo por Sílvia Hunold Lara, teve algumas consequências. Uma delas é de que o escravo como categoria de trabalhador não foi incorporado na construção da história social do trabalho no Brasil, “que passou a ser identificada correntemente com a história do trabalho livre, assalariado (para não dizer operário)”.11 Acompanhando a observação de Lara podemos afirmar que em estudos sobre a Comarca de Paranaguá também foram excluídos os homens e as mulheres livres e pobres, muitos deles não brancos, que se envolveram em diversas atividades do mundo do trabalho no período anterior à República. Peter Einsenberg chegou a denominar o trabalhador nacional livre do século XIX como o “homem esquecido” pela historiografia brasileira, lembrando, em contrapartida, a reiterada utilização dessa mão de obra nas relações de produção no oitocentos.12 Nesse sentido, a sociedade litorânea paranaense, com seus trabalhadores escravos e livres, constitui, emmuitos aspectos, um território com facetas pouco exploradas pelas investigações históricas. Em modelos explicativos considerados clássicos que tentam dar conta da inserção histórica e da articulação econômica da Região Sul ao restante do país, Paranaguá parece não se encaixar plenamente. A historiografia normalmente cristaliza duas imagens até certo ponto reducionistas quando trata do Brasil Meridional: a primeira, de que a região sulina teve sua origem e permaneceu articulada às demais partes da colônia e do império tão-somente como abastecedora de gado, couro, charque e outros produtos agrícolas da sociedade campeira levados aos mercados do sudeste por rotas de tropeiros; a segunda, de que o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a partir da segunda metade do século XIX, enquadram- -se economicamente ao Brasil particularmente pela presença de uma agricultura de subsistência, geradora de excedentes, baseada na mão de obra de imigrantes alemães, italianos, poloneses, etc. 11 LARA, Sílvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, São Paulo, PUC, n. 16, p. 25, fev. 1998. 12 EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séculos XVIII e XIX. Campinas: Unicamp, 1989.

14 José Augusto Leandro Assim, temos em História da Civilização Brasileira a afirmação de Fernando Henrique Cardoso de que “a ocupação aventurosa das terras do Sul, na medida em que foi feita pelos proprietários de ‘currais’ e comerciantes de gado, obedeceu ao padrão conhecido de deslocamento dos empreendedores vicentinos...”.13 Caio Prado Júnior afirma que a base econômica da colonização do Sul será a pecuária. Para ele, “a agricultura somente se estabelecerá nalguns setores próximos do litoral: cerca do local onde hoje está situada a capital do Rio Grande, a cidade de Porto Alegre; e em Santa Catarina, na ilha deste nome e na terra firme que lhe fica de fronteira”.14 Para Simonsen, a formação pastoril do sul permitiu, no século XVIII, o socorro alimentar à então indústria da mineração que se formava no sudeste. Segundo o autor, em função das reservas do gado no norte e nordeste serem insuficientes, estarem em posição geográfica inadequada e não cumprirem de forma plena o atendimento da indústria açucareira e mineradora, ...socorreram-se os paulistas do gado do sul, criando ali a grande procura, que ia justificar, economicamente, a ocupação definitiva das regiões de Vacaria, Mato Grosso, Campos Gerais de Curitiba, Guarapuava, Vacaria do Rio Grande, Viamão, Tapes e das Missões. Foi, portanto, o ciclo do gado o fator econômico gerador da expansão sulina e da formação de nossas lindes meridionais.15 Tal articulação da economia campeira sulista com as necessidades de abastecimento das regiões mineiras do sudeste é fenômeno destacado por diversos autores. Entre eles, Celso Furtado é taxativo ao afirmar que as partes do sul do Brasil viviam independentemente e tenderiam provavelmente a se desenvolver apenas num regime de subsistência, sem vínculos de solidariedade econômica que as articulassem. Em seu raciocínio de economista acredita ser um equívoco supor 13 CARDOSO, Fernando Henrique. Rio Grande do Sul e Santa Catarina. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História da civilização brasileira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. t. 2, v. 2, p. 475. 14 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976. p. 95. 15 SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500/1820). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 186.

15 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 que foi a criação que uniu essas regiões. “Quem as uniu foi a procura de gado que se irradiava do centro dinâmico constituído pela economia mineira.”16 A outra apresentação histórica do sul, datada para a segunda metade do século XIX e que o enquadra e articula economicamente ao restante do país, se dá pela via da imigração. Entre os vários exemplos, fiquemos apenas com Caio Prado Júnior, historiador que influenciou e norteou o rumo de pesquisas de inúmeras gerações de historiadores. Ele afirma que no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul ...onde não existe a grande lavoura tropical, o imigrante não se fixa como assalariado, mas encontra facilidades para aquisição de pequenas propriedades, e é nestas condições que se estabelece. [...] Constitui-se assim, nesta parte do Brasil, um setor cuja organização econômica e social é bem distinta da do resto do país: grande parcelamento da propriedade fundiária, ausência de latifúndio; em vez de grandes lavouras do tipo do café, do açúcar ou do algodão, que produzem sobretudo para o comércio exterior, pequenas culturas e outras atividades de caráter local e destinadas ao abastecimento interno do país: cereais, vinhos, produtos de granja, etc.17 Há, ainda, historiadores como Stuart Schwartz, que para o período colonial aponta a possibilidade da divisão do Brasil em dois (com base na sua produção alimentar), o Brasil da zona rural da mandioca e o da zona rural do milho. Ao norte e nordeste corresponderia a mandioca e a farinha dela extraída, e para “as regiões agrícolas mistas de São Paulo para o sul” o milho e o trigo seriam as culturas favoritas.18 Por um lado, estas imagens de inserção e articulação econômica do sul ao restante do país são verdadeiras: a importância da pecuária em muitas localidades do Rio Grande do Sul é fato indiscutível, e perpassou também regiões catarinenses; os Campos Gerais do Paraná no quadro histórico-econômico “estâncias de gado-peonagem” podem ser encaixados 16 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. p. 77. 17 PRADO JÚNIOR. História..., op. cit., p. 204. 18 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001. p. 127.

16 José Augusto Leandro plenamente; e já na segunda metade do século XIX se havia instalado grande número de núcleos coloniais de imigrantes no sul do Brasil. Por outro lado, há que se pensar que algumas áreas sulinas brasileiras de antiga ocupação, muitas delas litorâneas, ficam à mercê de explicações mais consistentes de seus enquadramentos econômicos, na medida em que não se encaixam no modelo “estâncias de gado-peonagem” ou no modelo da pequena propriedade imigrante geradora de excedentes de produtos alimentares comercializáveis. Muitas áreas litorâneas sulinas nem mesmo tinham no milho a sua base alimentar principal, sendo mesmo a mandioca a cultura agrícola por excelência dos roceiros ali instalados. A formação da comarca de Paranaguá foi, nesse sentido, diferente do que costumeiramente a historiografia registra para o sul. Ela não teve a pecuária como carro-chefe de sua formação histórico-econômica, nem tampouco se desenvolveu, como muitas lindes do Brasil Meridional, a partir de núcleos coloniais de imigrantes instalados na segunda metade do século XIX. Se já havia se iniciado uma política imigrantista no Paraná na segunda metade do século XIX, o fato é que neste período as colônias de europeus no litoral da província foram poucas e malsucedidas. Isso tudo que vimos falando, entretanto, não nos permite, à primeira vista, seguir os passos de Celso Furtado e, dessa feita, supor (erroneamente) que não existissem vínculos de solidariedade econômica que articulassem a comarca de Paranaguá às demais partes do Brasil. Eles sempre existiram, os seus graus de intensidade e os seus mecanismos de funcionamento é que ainda estão por serem melhor problematizados pelos pesquisadores. Existiram até mesmo nos casos em que a articulação econômica pressupunha uma estruturada capacidade de transgressão à lei, como no período do comércio efetuado a partir do tráfico ilegal de africanos, que também atingiu as turvas águas da baía de Paranaguá.19 19 CALÓGERAS, J. P. A política exterior do Império. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1933. 3 v.; MARTINS, Romário. Combate do Cormorant: da história do Paraná. Coritiba: Liv. Economica, 1898; CARNEIRO, David. A história do incidente Cormorant. Curitiba: Edição da Municipalidade de Paranaguá, 1950; KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Cia. Editora Nacional,

17 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 A maneira como foi ocupado o território da comarca de Paranaguá, com pequenos bolsões de populações vivendo esparramados em pequenas comunidades, é aparentemente caótica. No entanto, uma lógica que remonta principalmente à segunda metade do século XVII deve ser lembrada. A partir desse período, e prosseguindo até as três décadas iniciais do século XVIII, aventureiros de diversas partes do país, com predominância de vicentinos, faiscaram em busca de ouro nos diversos rios da região. Foi através dessa atividade, que pressupunha uma contínua mobilidade de homens e mulheres pelo espaço, que a ocupação da maior parte do território litorâneo paranaense adquiriu sua configuração. Segundo nos informa um dos primeiros historiadores paranaenses, Romário Martins, muitos dos primeiros povoadores do litoral vieram atraídos pelas notícias de ouro. Inicialmente com receio dos indígenas da região, estabeleceram-se na Ilha da Cotinga. Aos poucos, porém, foram tateando o território. ...procuravam as glebas que lhes facilitassem a vida e aí habitavam com suas famílias e escravos índios, fazendo roças e pequenas criações, fundamentos indispensáveis à permanência na terra conquistada. Esses sítios, uns a outros se ligavam pela relativa proximidade possibilitadora de mútuos auxílios, nas contingências e insídias da vida sertaneja em terra mal domada ainda pela ordem e em desproporção imensurável com a exigüidade dos grupos recém-vindos. Primeiramente, esses sítios ponteavam zonas não distantes da costa, onde se ia erigindo a povoação central, onde morava o capitão povoador, onde logo depois se construiu e se levantou o pelourinho (1648), símbolo da autoridade. A seguir se animaram a subir os rios que descem a serra: o Guaraguaçu, o Almeidas, o Correias, 1941; WESTPHALEN, Cecília Maria. Porto de Paranaguá, um sedutor. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 1998; FERRARINI, Sebastião. A escravidão negra na província do Paraná. Curitiba: Lítero-Técnica, 1971; BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; Ed. da Universidade de São Paulo, 1976; ELTIS, David et al. The trans-atlantic slave trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. CD-ROM; RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp/Cecult, 2000; LEANDRO, José Augusto. Em águas turvas: navios negreiros na baía de Paranaguá. Esboços (UFSC), Chapecó, v. 10, p. 99-117, 2002.

18 José Augusto Leandro onde descobriramouro, até que bons êxitos e a crescente ambição os levou à Serra Negra, Tagaçaba, Faisqueira... [Guaraqueçaba], etc.20 Em meados do século XVIII, muitos descendentes dos faiscadores do ouro de aluvião já estavam assentados em pequenas comunidades. Ometal mostrara-se escasso e a casa de fundição que funcionou a partir de 1697 foi inclusive fechada definitivamente em 1734.21 Assim, por um período de pouco mais ou pouco menos de cem anos, a mineração foi responsável pela articulação econômica da região ao restante do país, estando esta atividade praticamente desativada já emmeados do século XVIII. Agora, muitos aventureiros tornados sedentários eram pobres pescadores e principalmente atuavam na pequena produção de uma lavoura de subsistência. Quanto ao núcleo urbano de Paranaguá, uma pequena classe de negociantes e de artesãos ali foi se estabelecendo ao longo do tempo, dado que a Ilha da Cotinga possuía um bom atracadouro para embarcações que se dirigiam ou retornavam das outras províncias do sul do país e até mesmo da Bacia do Prata. É sobre estes espaços que nos aventuramos com a pesquisa empírica, na segunda metade do século XIX. A incursão específica pelo universo dos trabalhadores que viveram ao redor do grande mar redondo e em suas ilhas, trouxe à tona ofícios e atividades diversas de trabalho da gente simples espraiada pelas regiões continental e insular de partes significativas do litoral do Paraná. As relações dos trabalhadores entre si, com os hierarquicamente superiores (em algumas situações ) – e a caracterização de alguns elementos da cultura material dos pobres – foram, à medida que a pesquisa avançava, tornando-se focos importantes de nossa discussão.22 20 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. p. 248-249. 21 WESTPHALEN, Cecília Maria. Comércio exterior do Brasil meridional. Curitiba: CD, 1999. p. 28. 22 Segundo Jean-Marie Pesez, apesar de a história da cultura material correr o risco de ser apenas uma “retórica da curiosidade”, ela possuiu importância fundamental e sempre se mostrará necessária, “porque apresenta o interesse de reintroduzir o homem na história, por intermédio da vivência material”. [...] É o que a história da cultura material proporciona: as condições de trabalho, as condições de vida ou a margem entre as necessidades e sua satisfação. E já

19 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 O estudo que segue objetiva iluminar aspectos do modo de vida e as estratégias de sobrevivência desenvolvidas pelos livres pobres. Demonstra que os lavradores, os artesãos e os trabalhadores do mar podem ser tomados como os principais representantes da camada de trabalhadores livres pobres da comarca. Na medida das possibilidades das fontes, revelamos alguns significados da pobreza por eles vivida na região. Assim, tomando-se como ponto de partida para análise os mecanismos criados e acionados por homens e mulheres para garantir sua continuidade no tempo e no espaço, nos dedicamos a entender os lugares ocupados por uma determinada camada social que ainda segue pouco estudada para o sul do Brasil no século XIX, a despeito de numericamente expressiva. Se a pobreza pode, a princípio, ser captada e alocada dentro de uma unidade (da qual também de alguma forma partimos) – a de que a categoria social dos livres pobres espelha ummodo de vida de populações tradicionais que viviam a experiência de mínimos vitais e sociais no seu cotidiano23 –, este estudo procurou avançar no sentido de verificar não apenas determinados traços e costumes em comum àqueles que viviam a experiência da pobreza, mas também identificar os seus traços distintivos. Nessa distinção, as clivagens ocupacionais ganham importância na análise da sociedade litorânea. Os documentos investigados, sobretudo os criminais, desvelaram enredos comoventes. Sobre eles, uma lupa mais potente foi deitada e captou variadas estratégias de sobrevivência dos pobres. Uma leitura oblíqua dos manuscritos, portanto, deixou entrever que os indivíduos viviame sobreviviamnaquele espaço litorâneo pelo exercício de variadas camaradagens, uma vez que seus vínculos eram costurados pela criatividade que ela é a história dos grandes números e da maioria dos homens, é em primeiro lugar o explorado que ela coloca em primeiro plano”. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 23 A noção de mínimos vitais e sociais para a análise de comunidades interioranas brasileiras vem de Antonio Cândido e Maria Sylvia de Carvalho Franco. CÂNDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 27; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordemescravocrata. São Paulo: Unesp, 1997. p. 17.

20 José Augusto Leandro e pela franqueza que o imediatismo das situações adversas lhes impunha.24 Três categorias ocupacionais ganharam densidade napesquisa: os trabalhadores domar, os artesãos e os lavradores. Pela expressão “trabalhadores domar”, uma ampla gama de personagens pode ser agrupada. Se a documentação da comarca, no período, registrou variados termos a eles referentes, dois se destacaram: marítimos e marinheiros. Quanto aos primeiros, podem ser entendidos, tomando-se como um possível parâmetro interpretativo o Dicionário Moraes Silva, como trabalhadores que atuavam manejando pequenas embarcações num espaço físico não muito amplo: uma baía, um pequeno trecho de região costeira ou de uma praia.25 Muitos deles faziam pequenos trabalhos quando solicitados por alguém, como transportes de alimentos, lenhas, pedras, etc. e, não raras vezes, também eram pescadores e lavradores. Os marinheiros, por sua vez, também eram marítimos. Porém, “de profissão”. Para Jaime Rodrigues, “o único fator de unidade cultural” entre eles dizia respeito ao “gênero”, pois “as profissões do mar eram uma parte exclusivamente masculina do mundo do trabalho ocidental, e principalmente homens pobres se empregavam nelas”.26 Na comarca estudada, a maioria dosmarinheiros se aventurava como trabalhadores comsoldada combinada em barcas, bergantins, brigues, escunas e fragatas que navegavam por extensos espaços, costeiros ou além-costa; esses trabalhadores do mar estavam sobretudo engajados com a marinha mercante como moços, grumetes, mestres, contramestres etc. Alguns deles ligavam-se à estrutura burocrática da capitania do porto de Paranaguá e atuavam como remeiros, patrões, práticos, ou mesmo como aprendizes das fainas marítimas. Outros podiamatémesmo ficar boa parte do tempo em terra atuando como calafates, tanoeiros ou carpinteiros de embarcação. Na pesquisa empreendida, se os marítimos são mencionados repe24 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 25 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da língua portugueza. Lisboa: Typographia de Antonio José da Rocha, 1858. 26 RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 38, 1999.

21 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 tidas vezes emdocumentos, os marinheiros, por seu turno, deixarammais rastros qualitativos de suas vidas entre 1850-1888: isso, cremos, se deve ao fato de que sobre eles os olhos da justiça sempre forammais vigilantes. Quanto aos artesãos – artistas ou artífices que utilizavam suas diversas habilidades mecânicas para obtenção de pecúlio – vale destacar a problematização de Carlos Lima para a categoria. Segundo ele, esta ocupação podia ir além das definições de época, como a do dicionarista Moraes Silva. Incluía não só os “que possuíssem seu próprio negócio, como nos autoriza também a designar como artífices os indivíduos que vendessem seus trabalhos especializados a terceiros”. Afirma Lima que o historiador “não pode se limitar às definições e delimitações dada pela época estudada (ainda que não possa deixar de levá- -las em conta), sob pena de deixar escapar articulações importantes.” Sua problematização do termo artífice foi norteadora do estudo aqui empreendido, pois inclui indivíduos que exerciam atividades “um tanto discrepantes em relação à definição de Silva”, como ocupaçõesmenos regulamentadas emais próximas do que se chamaria comércio, mas que supunhamumgrau razoável de transformação do produto, a partir de uma habilidade específica.27 Para a comarca de Paranaguá não pudemos distinguir claramente, pela documentação, entre aqueles que possuíam ou não estabelecimento comercial onde exerciam seus ofícios especializados, podendo eles seremexecutados em suas casas, próprias ou alugadas; quanto à questão da regulamentação específica do ofício para a inclusão ou exclusão do artesão dentro da categoria, não foram localizados documentos sobre isso, apesar de acreditarmos que eles existissem. Histórias de lavradores foram as que mais emergiram a partir dos documentos manuseados. Os trabalhos com as culturas agriculturáveis litorâneas na comarca de Paranaguá, em seus variados ambientes rurais, demonstraram, na sua maioria, homens e mulheres atados a um modo de vida antigo, no qual os rudimentares utensílios necessários ao cultivo 27 Ver: LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Trabalho, negócios e escravidão: artífices na cidade do Rio de Janeiro (c.1790-c.1808). 1993, 309 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993. p. 2-3.

22 José Augusto Leandro da mandioca e da produção da farinha de mandioca eram os principais objetos que garantiam a sobrevivência alimentar dos grupos familiares; ainda, as histórias do mundo rural revelaram, emdeterminados casos, subordinação dos posseiros, sitiantes e dos pequenos proprietários para com alguns grandes proprietários de terras, muitos deles investidos em cargos de representação jurídica, administrativa e política na comarca. As atividades ilegais extrativas das madeiras de lei, com vistas ao contrabando, explicitaram sobremaneira as relações assimétricas daquela sociedade; mas as histórias dos lavradores também evidenciaram que elementos da cultura popular, a despeito de malvistos e até mesmo perseguidos pela elite, resistiam, como no caso do fandango, por exemplo, uma prática comum entre as gentes pobres litorâneas do período. A partir de variados enredos, muitos deles extraídos de inúmeros autos criminais e de documentos da área cível, o estudo aponta as dificuldades desses trabalhadores livres pobres em se movimentar ao redor de um cenário que apresentava poucas oportunidades demobilidade social nomundo rural. Se ao longo do oitocentos o Paraná viveu um período de modernização capitalista – a historiografia já demonstrou tal processo e apontou a indústria ervateira como a principal responsável por tal panorama28 –, os limites dessamodernização ficambastante explícitos ao dedicarmos especial atenção aos lavradores. Como um estudo de trabalhadores, este também se situa no debate daquilo que desde 1966 passou a ser rotulado history frombelow, eque teve obritânicoE. P. Thompsoncomo seumaior expoente. Entretanto, na senda aberta por Thompson, a maioria dos historiadores acabou por privilegiar e ressaltar as atitudes coletivas, deixando de lado as estratégias individuais dos humildes nesse resgate from below. Também foi trazida à tona mais propriamente a visão dos dominantes sobre os pobres do que destes sobre os primeiros ou entre si. Aqui, procuramos atentar à observação que sugere a necessidade de se perceber as solidariedades cotidianas costuradas entre os pobres: 28 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense (1829-1889). Curitiba: Editora da UFPR, 1996.

23 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 A despeito dos grandes esforços daqueles que expressaram a necessidade de se escrever a história vista de baixo, não se desenvolveu uma análise que possa contrabalançar as estratégias individuais e conhecimento social dos pobres. Edward Thompson e muitos outros que ele inspirou a escrever a respeito da cultura plebeia do século XVIII revelou uma rica ação coletiva, uma cultura popular vibrante que encorajou o povo a atuar de forma conjunta no caso de se determinar o preço do pão, de defender direitos costumeiros tradicionais e de garantir uma variedade de outros objetivos comuns, [...]. No entanto, muitos desses trabalhos priorizaram a consciência coletiva, e quando se analisaram as interações cotidianas entre ricos e pobres em um nível individual, demonstraram uma tendência de retratar os pobres sobretudo como sujeitos passivos, vítimas de ações dos ricos.29 O principal universo empírico da pesquisa foi composto por documentos jurídicos, cíveis e criminais.30 Entre a docu29 HITCHCOCK, Tim; KING, Peter; SHARPE, Pamela (Eds.). Chronicling Poverty: the voices and strategies of the English Poor, 1640-1840. Londres: Macmillan Press Ltd., 1997. p.2. No original: And despite the best efforts of those who have stressed the need to write the history from below, there has not developed a counterbalancing analysis of the individual strategies and social knowledge of the poor. Edward Thompson and many of those he inspired to write about plebeian culture in the eighteenth century uncovered a rich tradition of collective action, a vibrant popular culture which encouraged people to act together to fix the price of bread, to defend customary rights and to achieve a variety of other joint goals. [...] However, most of this work has focused on collective consciousness, and when it has analysed the everyday interactions of rich and poor on an individual level, it has tended to portray the poor mainly as passive objects, victims of the actions of the rich. 30 A pesquisa de doutorado lançou mão da análise de 196 inventários post-mortem (um deles do ano de 1849). Deste total, 59 não fizeram menção a escravos/ escravas. Estes documentos propiciaram uma maior aproximação a aspectos da vivência na pobreza ou dela próxima. A pesquisa também implicou no manuseio de 260 documentos criminais de tipos variados, muitos deles em estado de conservação bastante precário. Utilizamos este conjunto de fontes da alçada criminal para extrair informações que auxiliassem na captura de um retrato do universo ocupacional da comarca pelas anotações referentes aos acusados/réus de algum possível crime ou delito, anotações referentes às vítimas mencionadas e, sobretudo, a partir dos dados referentes às testemunhas arroladas. Deste total de documentos criminais, cerca de 20 % foram discutidos com mais profundidade na tese. Sobre a utilização de autos criminais para o resgate de vários aspectos do passado da sociedade brasileira ver: LARA, Silvia Hunold. Processos-crime: o universo das relações pessoais. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 33, 1984; Um bom resumo sobre o papel das autoridades na prática da Justiça, no período do século XIX, encontra-se emZENHA, Celeste. As práticas da Justiça no cotidiano da pobreza. Revista brasileira de história, São Paulo, v. 5, n. 10, mar./ago. 1985; ver também: BAJER, Paula. Processo penal e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 23-28. Ainda, sobre a relação pobreza e justiça ver: SOTO, Maria Cristina Martinez. Pobreza e conflito: Taubaté: 1860-1935. São Paulo: Annablume, 2001. Sobre utilização de documentações

24 José Augusto Leandro mentação cível, localizada no Museu da Justiça, em Curitiba, foram utilizados especialmente inventários post-mortem e papeis variados do juizado de órfãos. Em alguns momentos, autos de ratificação e protesto marítimo, vinculados ao juizado comercial, foram utilizados. Entre a papelada criminal, quase todos os tipos demanuscritos foram incluídos no estudo – tanto os que ficaram apenas na fase do inquérito policial quanto aqueles que geraram processos “completos”, de natureza variada, levados ou não a júri. Tal documentação foi levantada na cidade de Paranaguá, no Arquivo da Primeira Vara Criminal, e também no Museu da Justiça de Curitiba, que possui alguns exemplares desse tipo. Aos documentos jurídicos manuseados somaram-se outras fontes como “correspondências (gerais) de governo” e relatórios de capitães do porto de Paranaguá pesquisados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e no Arquivo Público do Paraná. Todos esses manuscritos revelaram uma fatia significativa do conjunto dos livres pobres que viveram no período, no amplo espaço litorâneo do Brasil Meridional abrangido pela comarca de Paranaguá. O trabalho realizado permitiu entrever o universo social e culturalmente compartilhado entre os pobres da região. Mas, também, propiciou verificar as diferenças entre as gentes simples e os limites e as fronteiras do compartilhar as relações sociais.31 da área cível ver: CALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; ver também: MATTOSO, Kátia. Bahia, século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 31 Apesar deste estudo poder ser caracterizado mais como um estudo de história regional, ele também flerta com questões de operação histórica como as realizadas pela micro-história. Neste caso, a seguinte passagem de Giovani Levi é a que mais se aproxima de nossos propósitos. Diz ele que no trabalho damicro-história “...toda ação social é vista como resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferecemuitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais. A questão é, portanto, como definir as margens – por mais estreitas que possamser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas dos sistemas normativos que o governam”. Para o autor, a análise da luta em torno dos recursos materiais deve levar em consideração esse aspecto. LEVI, Giovani. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 35-136.

25 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 NEM INÚTEIS, NEM INADAPTADOS: HISTÓRIAS DE ARTESÃOS E MARINHEIROS Formação do Brasil Contemporâneo foi obra de impacto na historiografia brasileira do início da década de 1940. Com ela, valendo-se de um determinado método histórico-dialético, Caio Prado Júnior buscou entender o desenvolvimento da nossa sociedade em uma análise processual que se afastava dos paradigmas anteriores, tãomarcados por discursos fundantes e homogeneizadores do estado nação. Carlos Guilherme Mota chega a classificar tal obra como “possivelmente a melhor de quantas elaborou”.32 Aqui cabe destacar que em Formação do Brasil Contemporâneo Caio Prado Júnior apontou a existência de uma camada de homens livres pobres na sociedade brasileira, aquilo que definiu como a categoria ...dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação nenhuma. [...] Compõe-se sobretudo de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidão; índios destacados do seu habitat nativo, mas ainda mal ajustados na nova sociedade em que os englobaram; mestiços de todos os matizes e categoria, que não sendo escravos e não podendo ser senhores, se vêem repelidos de qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de posições disponíveis.33 Assim, o eixo definidor dessa camada social se configurava pela exclusão dos livres pobres no sistema produtivo dominante. Como no entendimento do autor a economia brasileira era calcada essencialmente no trabalho escravo e dedicava-se apenas ao comércio externo (o sentido da colonização), os livres pobres surgem na sua produção acadêmi32 MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira:1933-1974. São Paulo: Ática, 1980. p. 32. 33 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1953. p. 280.

26 José Augusto Leandro ca identificados como “populações marginais”, constituíam “elemento humano residual, sobretudo mestiços do índio, que conservavam dele a indolência e qualidades negativas para um teor de vida material e moral mais elevados, ou então por brancos degenerados ou decadentes”.34 Essas afirmações do intelectual paulista, nas quais raça e pobreza se conjugam intimamente, contribuíram para uma visão estigmatizadora dos livres pobres. Contudo, os registros de Caio Prado Júnior sobre esta camada social, tanto em Formação do Brasil Contemporâneo como em obra posterior, História Econômica do Brasil, despertaram interesse de historiadores que se debruçaram mais especificamente (e revisaram) sobre o papel daqueles que não eram nem senhores nem escravos ao longo dos períodos colonial e imperial. No final da década de 1970, Ciro Flamarion Cardoso questionou as teorias que vinculavam fortemente a dependência do Brasil à Metrópole, presentes tanto nas obras de Caio Prado Júnior como em Fernando Novais e Celso Furtado. Como base de sua análise, colocou em destaque não apenas o processo de circulação de mercadorias, mas principalmente o processo de sua produção. Com isso, verificou determinadas facetas da economia até então menosprezadas pelos autores. Ciro Flamarion Cardoso destacou, por exemplo, que ao lado do setor escravista, produtor para exportação, havia um setor camponês produtor de alimentos para subsistência que, inclusive, poderia ser exercido pelos próprios escravos.35 Sugestivamente, Valter Martins intitulou “nem senhores, nem escravos” seu estudo sobre os pequenos agricultores em Campinas na primeira metade do século XIX, no qual concluiu, entre outros aspectos, que Mesmo inserida em uma realidade econômica empenhada na exportação, a agricultura de alimentos, que precedeu e depois conviveu com a chamada grande lavoura, continuou ocupando importante espaço social e econômico. E mais que isso, ficou evidente que os pequenos agricultores, ou pelo menos parte deles, não ficaram 34 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação..., op. cit., p. 155. 35 CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.

27 Pobres do Grande Mar Redondo: lavradores, marinheiros e artesãos da comarca de Paranaguá, 1850-1888 isolados ou indiferentes em seus sítios, enquanto o açúcar fazia novos ricos e a vila se transformava em cidade. Estimulados pelas façanhas do açúcar ou não, parte dos agricultores que produziam alimentos acumulou capital, partindo de sua própria atividade agrícola.36 Denise Moura estudou os homens e mulheres livres e pobres na província de São Paulo, também debruçando-se especificamente sobre o espaço de Campinas, porém entre 1850-1888. Diferentemente de Valter Martins, que ali se preocupou em verificar as alterações materiais dessa camada ao longo da primeirametade do oitocentos, a autora buscou, mais do que verificar o possível aproveitamento da mão de obra livre, “pontuar possíveis condutas ou maneiras de vivenciar o período”, tendo como pano de fundo a questão do declínio do escravismo. Apesar de não definir uma camada livre pobre no período, a autora problematiza sua amplitude: Brancos, negros e mestiços pobres e livres. Libertos. Imigrantes europeus, pequenos proprietários de roças e que viviam de seus próprios mantimentos. Trabalhadores livres e sazonais das grandes propriedades de café que as procuravam nos períodos de colheita. Trabalhadores livres detentores de ofícios e ferramentas como os carapinas, sapateiros, pequenos empreiteiros, ourives e outros ofícios artesanais. Homens livres que possuíam um número reduzido de mulas, mas que as empregavam nos pequenos transportes. [...]. Todos compuseram fragmentos de um universo social mais amplo, em crescimento e de difícil definição.37 Tal amplitude das camadas pobres dos oitocentos já havia sido problematizada por Maria Odila Leite da Silva Dias no início da década de 1980 especificamente para a população feminina da cidade de São Paulo no oitocentos. Seu estudo sobre as mulheres livres, escravas e forras de São Paulo no século XIX passou ao largo de um possível encontro com uma realidade que as identificasse como inúteis ou inadaptadas. 36 MARTINS, Valter. Nem senhores, nem escravos: os pequenos agricultores em Campinas (1800-1850). Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1996. p. 166. 37 MOURA, Denise. Saindo das sombras: homens livres no declínio do escravismo. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1998. p. 25.

28 José Augusto Leandro Muitos domicílios eram por elas chefiados e a historiadora trouxe à baila uma multiplicidade surpreendente de trabalhos femininos executados a partir de um pequeno comércio ambulante, nos lavadouros públicos e no artesanato caseiro. O universo das mulheres pobres indicou que a “organização do seu ganha-pão dependia de laços muito fortes de solidariedade e vizinhança, que se improvisavam e modificavam continuamente”.38 Seja em um espaço rural ou urbano, litorâneo ou não; seja no período colonial, imperial ou republicano, determinar com exatidão quem eram os pobres e o significado da pobreza vivida no Brasil não é tarefa simples. Bronislaw Geremek levanta as clássicas questões que permeiamo trabalho dos cientistas sociais que se envolvem com esta temática. Enquanto o significado de pobreza como um problema sério e generalizado sempre foi inquestionável, a questão de onde se delimitar a “linha de pobreza” e os dados estatísticos para estabelecê-la geraram uma grande controvérsia [...]. A pobreza tendia a ser medida segundo determinados objetivos e assertivas. O limite técnico da pobreza era óbvio: era o ponto no qual a sobrevivência do indivíduo e de sua família estava ameaçada. Menos óbvia era a definição da pobreza “relativa”, determinada por convenções sociais que variam no tempo.39 De fato. No caso brasileiro, Antonio Cândido e Maria Sylvia de Carvalho Franco são dois exemplos de estudos clássicos que partiram da ideia daquele “limite técnico da pobreza” a que se refere Geremek. A noção de mínimos vitais e sociais para a análise de comunidades interioranas brasileiras surgiu primeiramente com Antonio Cândido em seu estudo sobre o modo de vida dos caipiras do interior de São Paulo. Maria Syl38 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 9. 39 GEREMEK, Bronislaw. Poverty: a history. Oxford, Reino Unido; Cambridge, EUA: Blackwell, 1994. p. 2-3. No original: While the significance of poverty as a serious and widespread problem was unquestionable, the question of where to draw the “poverty line”, and what statistical data to use in establishing it, caused a great deal of controversy […] How poverty was to be measured depended on accepted assumptions and aims. The technical limit of poverty was obvious: it was the point at which the survival of the individual and of the family became threatened. Less obvious was the definition of “relative” poverty, determined by particular social conventions which evolved with time.

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