O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763)

Casa Leiria O CONTINENTE DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO OS HOMENS, SUAS REDES DE RELAÇÕES E SUAS MERCADORIAS SEMOVENTES (C.1727-C.1763) Martha Daisson Hameister

O texto de Martha Hameister leva o leitor ou leitora a mergulhar no processo de formação do Continente do Rio Grande de São Pedro, entendido como uma construção social realizada a partir da perspectiva lusa. O fio condutor da análise - as relações que permitiram a fundação daquele espaço social - é seguido a partir do colorido das situações e agentes específicos. dando concretude ao contexto. A “abertura dos caminhos” se dá também na mente de quem lê, tendo-se a impressão de retorno ao século XVIII ao se trilhar cada passo, cada tecitura de laços sociais. Uma leitura aprazível, que constrói conhecimento quase naturalmente, como um simples caminhar. Rachel dos Santos Marques http://lattes.cnpq.br/7490284301497013

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2022 MARTHA DAISSON HAMEISTER O CONTINENTE DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO OS HOMENS, SUAS REDES DE RELAÇÕES E SUAS MERCADORIAS SEMOVENTES (C.1727-C.1763)

O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) Martha Daisson Hameister Imagem da capa: O Continente. Aquarela e nanquim sobre papel. O texto é de responsabilidade da autora. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 EDITORA CASA LEIRIA – CONSELHO EDITORIAL Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS) Ana Patrícia Sá Martins (Uema) Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo (UERN) Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco (UFRN) Haide Maria Hupffer (Feevale) Isabel Cristina Arendt (Unisinos) José Ivo Follmann (Unisinos) Luciana Paulo Gomes (Unisinos) Luiz Felipe Barboza Lacerda (Unicap) Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos) Rosangela Fritsch (Unisinos) Tiago Luís Gil (UnB) Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Hameister, Martha Daisson H212c O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, 2022 suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727–c.1763) [recurso eletrônico] / Martha Daisson Hameister. — São Leopoldo: Casa Leiria, 2022. Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/ casaleiria/acervo/historia/ocontinente/index.html > ISBN 978-85-9509-075-0 1. História – Brasil – Rio Grande do Sul. 2. Rio Grande do Sul – Desenvolvimento social e político. 4. Rio Grande do Sul – Formação econômica – Século XVIII. I. Título. CDU 981.65

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7 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) AGRADECIMENTOS Agradeço aos que facilitaramesses dois anos de pesquisa e a minha permanência no Rio de Janeiro, onde acumulei dívidas de gratidão que não há como saldar. Nomino algumas dessas pessoas. Agradeço ao professor João Luís Ribeiro Fragoso e através dele a todos os profissionais, colegas e amigos do grupo de discussão por ele articulado, comquemconvivi e que tanto contribuíram para esse estudo com suas críticas afiadas e atentas. Em especial ao Tiago Luís Gil, pelo “apoio técnico e serviços de rua” quando a tensão dos “finalmentes” se fez sentir. EmPorto Alegre ficaramaminha família, colegas e amigos. Muito devo a eles. À minha mãe, Anita, pelo imenso afeto e pelo “financiamento” nas horas de aperto durante estes dois anos e ao longo de toda a minha vida. Aos meus irmãos, cunhadas e sobrinhos pelo suporte afetivo. Ao professor Fábio Kühn: pelo estímulo e pelos “puxões de orelha”, pelo material disponibilizado, pelas sempre proveitosas discussões: muito obrigada, mesmo! Também aos meus colegas de graduação pela amizade de sempre. À Alzira Salles e à minha cunhada Ceres Salazar por tornaremmeu texto mais legível e semmuitas agressões à língua mãe. Estou em dívida eterna para com elas. À historiógrafa e arquivista do Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Vanessa Gomes de Campos, qualquer agradecimento seria pouco. A ela devo o acesso à distância das fontes paroquiais, à sua base de dados de Autos Matrimoniais.. Por último ao povo brasileiro que, através da CAPES agraciou-me com a bolsa de mestrado, financiando os anos dedicados a essa pesquisa e à Editora Casa Leiria que aceitou o texto original para transformá-lo em e-book.

8 Martha Daisson Hameister SUMÁRIO 11 Prefácio – Um Nada repleto de relações sociais João Fragoso 23 Introdução 32 As Fontes 39 Capítulo I O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens e os animais 40 A vasta paisagem sulina 45 Os homens 80 Os animais 93 Capítulo II Os homens, suas famílias e a conquista do Continente do Rio Grande de São Pedro 100 Antecedentes da ocupação sistemática dos territórios meridionais por populações lusas 102 Da Donataria dos Assecas à Abertura do Caminho das Tropas 117 Cristóvão Pereira de Abreu 141 A fixação das populações dos Campos de Viamão 161 Capítulo III As formas de acumulação, as alianças e as redes de poder no mercado de animais 163 Os Registros das Passagens dos Animais 181 A Passagem dos animais pelo Registro de Curitiba: as diferentes conjunturas, os diferentes mercados para diferentes tipos de animais e a flexibilidade deste comércio

9 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) 191 Capítulo IV A consolidação de uma sociedade emmeio às muitas mudanças 194 A crônica de uma crise anunciada: estratégias para enfrentar as difíceis conjunturas 202 Os diferentes mercados para os animais: a origem da flexibilidade e das possibilidades do mercado de semoventes 221 Montagem e consolidação de uma estrutura: do apresamento à produção de animais 234 As velhas famílias e os novos tipos de fortuna e arranjos matrimoniais, a sociedade sulina consolida-se 245 Considerações Finais 253 Referências 253 Fontes primárias manuscritas 254 Fontes primárias impressas e digitalizadas 259 Livros, teses, dissertações, artigos e publicações digitais 273 Anexo I 274 Pequeno Léxicoais 277 Anexo II 278 Documento 1 - Carta de Bartolomeu Pais de Abreu a El-Rei 280 Documento 2 - Carta Régia sobre a abertura de um caminho de São Paulo ao Rio Grande por Bartolomeu Paes de Abreu 280 Documento 3 - Segunda Carta Régia sobre a abertura de um caminho para o Rio Grande por Bartolomeu Paes de Abreu 281 Documento 4 - Carta de Rodrigo César de Menezes sobre o ajuste com Bartolomeu Pais de Abreu pra a abertura de um caminho. 281 Documento 5 - Registro do Regimento que leva para o Rio Grande o sargento-mor Francisco de Souza Faria para a abertura do caminho que vai fazer.

10 Martha Daisson Hameister 285 Anexo III 286 Documento 1 - Cópia da Lista dos Devedores que deu o Capitão Francisco de Paula Teixeira 290 Documento 2 – “Sobre a mercê que fez Sua Majestade ao Coronel Cristóvão Pereira por doze anos metade dos direitos das cavalgaduras cobrados, que devem ser, por esta Provedoria.” 291 Documento 3 – Carta Régia de 19 de Junho de 1761 292 Documento 4 - Registo de um decreto de Sua Magestade sobre as mulas. 293 Documento 5 - “Registo de um Decreto de S. Magestade a respeito das mulas” 294 Documento 6 - Anexo ao “Parecer que por ordem do General de São Paulo D. Luís Antônio de Souza escreveu o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria para efeito de se formalizar o Plano que Sua Majestade tem determinado” 298 Documento 7 - “Carta Régia de 3 de Setembro de 1721” que determina a remessa de cavalos do Brasil para a África 299 Documento 8 - Ofício de José Antônio Freire de Andrade, para Diogo de Mendonça sobre o transporte de cavalos para o Reino de Angola. Rio de Janeiro. 20 de abril de 1755 299 Documento 9 - Portaria sobre as Tropas que hão de vir pelo caminho que se fez da Vila da Laguna para Curitiba 300 Documento 10 - Cópia do extrato das tropas que no ano de [1]751 passaram pelo registro de Curitiba 303 Abreviaturas

11 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) PREFÁCIO UM NADA REPLETO DE RELAÇÕES SOCIAIS João Fragoso1 O livro de Martha Hameister, finalmente publicado, é uma dádiva para os historiadores profissionais, pois em sua base encontramos uma delicada e cuidadosa investigação que contribuiu para a construção de uma nova área do conhecimento da historiografia profissional, qual seja: elites rurais na América lusa dos séculos XVII e XVIII. No caso, seu objeto de estudo é a formação da sociedade no continente do Rio Grande de São Pedro e, em especial, de seus mandatários rurais, processo que se desenrolou ao longo do Setecentos. Esse continente, grosso modo, se estendia de Laguna (atual Santa Catarina) a Sacramento (atual Uruguai). Anos depois, Martha e Tiago Gil, em artigo em conjunto, definiam a geografia do dito continente no período considerado como um Nada repleto de relações sociais.2 O Rio Grande dos gaúchos Setecentista do imaginário popular, e não só dele, era entendido como um vastíssimo território despovoado e repleto de gado vacum xucro ou selvagem. Coube a Martha Hameister, na sua dissertação de mestrado, defendida em 2002 e agora publicada, contribuir para desencantamento daqueles vastos campos vazios. Na verda1 Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 HAMEISTER, Martha & GIL, Tiago. “Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. O Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII)”, in: FRAGOSO, J.; SAMPAIO, A. C. J.; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de (Org.). Conquistadores e Negociantes: Histórias de elites no Antigo regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 268.

12 Martha Daisson Hameister de, como a autora demonstra, continham diferentes relações sociais e comerciais. O continente presenciava inúmeras populações indígenas, mestiços, potentados rurais e, claro, também gado, mas que não se reduzia ao gado vacum. Ao lado destes, havia equinos e muares. Na verdade, no Nada existiam várias organizações sociais. Entre elas, uma sociedade rural católica resultado de incursões de paulistas e de projetos da Coroa lusa. Nessa sociedade, o mando social estava nas mãos de potentados, mestiços ou não, sustentados por peões mestiços, indígenas dedicados ao apresamento de gado, à guerra e ao contrabando. Além disso, aquele Nada fazia parte de uma extensa cadeia de áreas produtoras e de mercados regionais ligada ao abastecimento do Centro-Sul da América lusa, em especial, as Minas de Ouro (Minas Gerais), tendo como centro a praça do Rio de Janeiro. Assim o Nada contribuía decisivamente para a manutenção do então Estado do Brasil e, com ele, da própria Monarquia pluricontinetal lusa. Martha Hameister faz parte das primeiras gerações de historiadores profissionais formadas como resultado do alastramento do cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado, a partir da década de 1980. Daí não ser surpresa de sua dissertação estar alicerçada nos princípios básicos do ofício: variado e amplo conjunto de fontes empíricas trabalhadas por métodos de investigação consistentes e o emprego da historiografia internacional disponível para os temas analisados. Nessa época, as pesquisas sobre o chamado período colonial empreendidas nos programas de pós-gradução estavam redescobrindo a América lusa. Com isso, o Brasil deixava de ser compreendido como canavial, povoado principalmente por senhores e escravos, e submetido às impiedosas flutuações de preços do mercado internacional. No lugar desse triste ensaio começava a surgir nesses trópicos uma sociedade, ou sociedades, muito mais complexa, cujas populações, com suas relações sociais e econômicas dificilmente poderiam ser explicadas pela dinâmica imposta pelo capitalismo e o absolutismo, supostamente, em vigor na Europa da época moderna.

13 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) Aliás, na própria historiografia sobre o velho mundo, em fins da década de 1990, percebia-se que conceitos como o de Estado Absolutista serviam pouco para entender a dinâmica política e social do Antigo Regime.3 Ao invés desse conceito, emergia o de monarquias compósitas, nas quais o rei era a cabeça da sociedade, porém, não se confundia com ela. Descobriu-se que o Estado, capaz de ordenar as relações sociais vividas pelas populações, no seu dia a dia, era um fenômeno do século XIX. Portanto, distante das primeiras décadas do Setecentos. Na época, especialmente na Europa do mediterrâneo, prevalecia uma sociedade organizada em corporações ou, o que é o mesmo, em comunidades políticas como famílias, vilas, senhorios e municípios. Por certo, tais corporações viam na Coroa a sua cabeça política, com a capacidade de dirimir conflitos e garantir o bem comum; porém, tinham a prerrogativa do autogoverno.4 Na historiografia internacional de princípios do século XXI sobre o Antigo Regime, cada vez mais dá-se importância ao sistema de conhecimento a partir do qual os homens aprendiam a lidar e a agir na sociedade, fosse nos campos de arroteamento, nas tavernas ou no trato com os senhores da região.5 Começavam a surgir pesquisas que simultaneamente sublinhavam a inexistência do Estado com suas burocracias 3 HESPANHA, Antônio M., Às vésperas do Leviathan - Instituições e poder político, Portugal – século XVII. Lisboa Almedina, 1994; ELLIOTT, John. “A Europe of Composite Monarchies. Past and Present”, 137, nov. 1992; ASCH, R. G., “Monarchy in Western and Central Europe” SCOTT, Hamish (ed.). The Oxford Handbook of Early Modern European History, 13501750: Volume II, 2015; WIESNER-HANKS Merry E. “Absolutism in theory and practice, in: Early Modern Europe, 1450–1789”. Cambridge History of Europe, 2006; Elliott, J. H. “La crisis general en retrospectiva: un debate interminable”, in: ELLIOT, J. H. España, Europa y el Mundo de Ultramar, 1500-1800. Taurus, 2009. pp. 95-96; FRIEDEBURG, Robert von and MORRIL, John. “Introduction: Monarchy Transformed –Princes and Their Elites in Early ModernWestern Europe”, in: Monarchy transformed. Princes and Their Elites in Early Modern Western Europe, Cambridge University Press 2017. 4 Ver HESPANHA, Antônio M., Às vésperas do Leviathan- Instituições e poder político, Portugal – século XVII. Lisboa Almedina, 1994; ELLIOTT, John. “A Europe of Composite Monarchies. Past and Present”, 137, nov. 1992 5 DURKHEIM, E. As Formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996; MICELI, Sergio, Introdução: A força do sentido, in: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992; BOURDIEU, Pierre. “Modos de Dominação”, in: A Produção da Crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre: Editora Zouk, 2018

14 Martha Daisson Hameister capaz de impor um sentido à sociedade, mas destacavam a existência de um modelo de sociedade devidamente produzido pela Igreja católica e seus tratadistas. Antônio Manuel Hespanha, em um dos seus incontornáveis textos, resume o sistema de representações em vigor na Europa do Antigo Regime: A sociedade do Antigo Regime era uma sociedade essencialmente controlada, ainda que o fosse de maneira muito diversa de como o haveriam de ser as sociedades totalitárias da época contemporânea. Realmente, os mecanismos do controle não eram frequentemente visíveis e explícitos; nem sequer, frequentemente, eram tidos como tais. Tratava-se antes de um controle imaginado, incorporado no controle de si mesmo, sentido, antes de tudo, como um dever, por vezes duro, mas normalmente impiedoso, em relação ao qual só existia a obediência e a resignação.6 A partir dessa assertiva pode-se explicar o Antigo Regime católico como produto, em parte, do sistema de conhecimento criado ao longo de séculos por tratadistas cristãos.7 Os homens e mulheres que viviam na sociedade de então a entendiam, parcialmente, como resultado da graça de Deus. Na base desse modelo temos a família patriarcal. Leia-se, a autoridade do pater exercida sobre a parentela consistia no arquétipo da sociedade hierárquica e desigual da Europa. A partir desse modelo, temos um Deus onipotente, onipresente, para com o qual o homem tinha uma dívida eterna ou impagável. Como um pai gera o filho, em seguida sustentando-o e orientando-o, Deus assim fez com a humanidade. A observação de suas orientações – nesse continente rural, violento e sacudido por doenças – garantia boas colheitas, proteção contra as epidemias e guerras. Assim, a sujeição a Deus era desejada e transformava-se em um sentimento cardinal na ação do homem. Alémdisso, Deus distribui as graças conforme o compor6 HESPANHA, A. “Os Poderes, os modelos e os instrumento de controle - A. Monarquia – legislação e agentes”, in: MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da Vida Privada em Portugal. Lisboa: Circulo de Leitores, 2011. p. 12 7 Obviamente, que tal sistema fora também resultado das práticas costumeiras cotidianas, inclusive pagãs, continha fissuras e estava sujeito a dinâmica vivida pelos homens ao rés do chão da sociedade.

15 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) tamento do homem; com isso, Ele era justo, ou seja, realizava uma justiça distributiva. Os preceitosmencionados funcionavamcomo substrato da hierarquia social e das relações pessoais e de dependência que impregnavam as ações dos homens. A obediência amorosa a Deus servia de protótipo às relações de mando do senhor diante de “suas” aldeias, ao poder do pai sobre a família e da câmara municipal sobre os citadinos. Educado nessa maneira de ver a sociedade, o camponês do século XVI entendia a aristocracia, formada por homens de carne e osso como ele, como senhores. Estes tinham o dom de conferir-lhes o sustento e a proteção militar. Contudo, isso não implicava que o camponês fosse descerebrado, sem neurônios. Da mesma forma que ao rústico foi ensinado comparar o senhor de terras a Deus, ele sabia que essa relação era uma relação e, portanto, uma reciprocidade. Com certeza uma relação desigual, todavia, recíproca. O senhor, como Deus e seus coadjuvantes, deveria ser obedecido, mas a ele cabia garantir a existência da aldeia. Por conseguinte, nesse modelo, era necessário que o homem tivesse fé, que não duvidasse de ser criatura de Deus e, consequentemente, seguisse suas orientações. Essa introspecção de Deus, ou a fé em sua autoridade, criava um sentimento de autocontrole e, com isso, uma disciplina social na época moderna muito mais eficaz do que os aparelhos de repressão das sociedades totalitárias contemporâneas. E a fé era ensinada pelos padres das povoações e esses vigiados desde, ao menos, o Concílio de Trento (1545-1563) por visitas eclesiásticas promovidas por seus Bispados. Entre os conceitos naquele modelo de sociedade temos o de corporação. Na tratadística cristã da época e nas práticas costumeiras, como afirmamos, prevalecia a ideia de sociedade composta por corpos ou corporações dispostos hierarquicamente. Famílias, aldeias, senhorios, burgos eram corporações dotados da capacidade de se autogovernarem, de viverem conforme as normas estabelecidas por suas tradições e leis. Cada um desses corpos seria dotado de uma cabeça política – pais nos domicílios, castelões nos senhorios, autoridades municipais nas vilas e cidades etc. – dirigindo-as e guardando

16 Martha Daisson Hameister suas normas. As famílias camponesas moravam numa aldeia e, para tanto, obedeciam às normas. Por sua vez, as aldeias respondiam à justiça de um castelão. Senhorios rurais e cidades livres compunham um reino, reconhecendo a capacidade da coroa em dirimir conflitos. Assim, um reino reunia várias comunidades políticas com autogoverno e, ao mesmo tempo, dispostas hierarquicamente. Na época que Martha escrevia sua dissertação, a Monarquia portuguesa do Antigo Regime começava a ser entendida como pluricontinental. Isso não só em razão da Monarquia estar nos quatro continentes do planeta, mas também dela se basear municípios, conforme suas ordenações legais do Reino, enquanto repúblicas com a capacidade do autogoverno. Em outras palavras, na Monarquia pluricontinental existia um reino emais conquistas, comas suas repúblicas, situadas em três continentes. Por seu turno, nos municípios, como em outros territórios sob a tutela da Coroa, tínhamos práticas de justiça distributiva de ofícios régios, irmandades católicas, redes paroquiais com seus curas e visitações eclesiásticas etc. Além disso, tínhamos, entre outros fenômenos comuns, de São Luís do Maranhão a Macau, nomar da China, uma hierarquia social centrada na Coroa que, ao conceder a graça e mercês de foros de fidalgo da casa real e hábitos militares, possibilitava a promoção social; assim como a intensa circulação planetária de vassalos que viviam de serviços à Coroa. Os vassalos, dependendo de suas experiências pretéritas, de sua qualidade social e da de seus antepassados, tinham a capitania de uma das fortalezas do Índico e, em seguida, eles, ou seus descendentes, podiam ter a serventia da provedoria da fazenda em Benguela ou de uma das capitanias da América. A capitania de São Paulo e mais ao sul a Vila de Laguna do século XVIII, de onde saíram as incursões para a formação da sociedade gaúcha, não fugiam dos parâmetros acima apresentados para a Monarquia lusa. Porém o continente do Rio Grande de São Pedro ia viver um processo diferente daquele experimentado por São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. As últimas capitanias tinham em comum o papel central exercido pelas câmaras municipais na organização política e

17 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) social de seus territórios. O mesmo não aconteceu no extremo Sul da América lusa. O estudo de Martha Hameister demonstra que o continente do Rio Grande de São Pedro apresenta algumas diferenças. Essa parte da Monarquia não teve no município a cabeça política capaz de organizar a vida das populações daquele vasto território. Aliás, a Vila de Rio Grande, onde estava a câmaramunicipal, caiu nasmãos dos espanhóis vindos do Prata em1763 e somente depois de treze anos de lutas voltou para as mãos dos lusos. Nesse ínterim, a frágil câmara foi deslocada para Viamão, região situada ao norte do continente, e depois para Porto Alegre.8 Antes e depois da queda do povoado de Rio Grande, a organização da vida social e política dos súditos de sua Majestade daquelas paragens era mediada pela autoridade dos potentados rurais. Nesse momento, encontramos um dos pontos magníficos da investigação de Hameister9 pois possibilita acertar as lentes para entender melhor os alicerces da América lusa. Apesar dessa diferença do Rio Grande com as capitanias mencionadas, no dito continente surgiu uma sociedade rural nos moldes do Antigo Regime católico. Provavelmente, os potentados rurais daqueles imensos territórios, como Cristóvão Pereira de Abreu, Francisco e Rafael Pinto Bandeira jamais leram os tratadistas católicos; entretanto, é quase certo que tinham como modelo de organização social ideal à sociedade hierarquizada, temente a Deus e obediente à sua Majestade. Consideravam que um povoado cristão só sobreviveria se tivesse em sua base a escravidão e o controle das terras em poucas mãos, ou melhor, nas mãos dos homens bons da terra. Foi com esses preceitos que a sociedade do Rio Grande de São 8 Sobre o tema ver também KHÜN, Fábio, Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no Sul da América Portuguesa – séc. XVIII. Niterói: Pós- graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2006, p. (tese de doutorado inédita), pp. 275-282; COMISSOLI, Adriano. Os Homens bons e a câmara municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Ed. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. 9 Essa ideia também está presente nos trabalhos, KHÜN, Fábio, Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no Sul da América Portuguesa – séc. XVIII. Niterói: Pós- graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2006, p. (tese de doutorado inédita); GIL, Tiago. Infiéis Transgressores – elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.

18 Martha Daisson Hameister Pedro foi montada e funcionava, ou seja, conforme os princípios do Antigo Regime católico. Aqueles e outros mandatários rurais tiveram sua autoridade sobre as gentes e terras confirmada pela Coroa como dádivas na forma, respectivamente, de cartas patentes (militares e civis) e sesmarias. Por seu turno, os Pinto Bandeira mantiveramde pé a hierarquia social através, entre outros mecanismos, de relações clientelares com peões, lavradores, escravos etc. Por certo, tais relações eram desiguais, mas, como dito, alicerçadas em obrigações e direitos recíprocos. Da mesma forma, tal sociedade foi possível mediante contínuas e renovadas negociações entre tais famílias de potentados, e delas com a Coroa e oficiais (governadores, ouvidores etc) na América. O texto de Martha Hameister, produzido em uma época de alastramento do ofício de historiador, permite comparar os seus resultados com os de pesquisas para outras regiões da América lusa do século XVIII. Assim, além de ajudar no entendimento do Rio Grande da época, ele contribui também para apreender os fenômenos reiterativos na formação da sociedade de Antigo Regime nesses trópicos. E, com isso, podemos começar a identificar os fenômenos estruturantes da sociedade brasileira da época, ou seja, ousar formular teorias (modelos explicativos) para a dita sociedade. Entre tais fenômenos reiterativos, salvo engano, a constituição dos povoados de sua majestade ocorreu em meio à dinâmica das sociedades indígenas pré-existentes. A criação da Vila de Laguna e depois dos povoados em Rio Grande de São Pedro foram possíveis graças às negociações com as populações indígenas. Um dos fundadores de Laguna, o capitão-mor Francisco BritoPeixoto eraneto ebisnetode índia carijó. Elenunca se casou nosmoldes católicos; porém, teve diversos filhosmestiços resultados de pactos com lideranças indígenas. Com essas alianças, Brito Peixoto participou de guerras com outros segmentos indígenas, adquiriu o mando sobre flecheiros, participou do apresamento e comércio de negros da terra. Já na Vila do Rio Grande, às margens da lagoa dos Patos, Rafael Pinto Bandeira, neto de Brito Peixoto, viveu três uniões maritais: as duas primeiras com filhas

19 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) de lideranças minuanas e guaranis; a terceira esposa procedia de uma família de mandatários da Colônia de Sacramento. Esses fenômenos são semelhantes aos vividos na montagem da vila de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Olinda.10 Qual seja, a formação da sociedade de Antigo Regime e escravista na América lusa, teve por base a lógica e tensões vividas pelas diferentes populações indígenas. Sendo algumas das primeiras famílias de potentados rurais mestiças. Outro conjunto de relações sociais que se repetem em diferentes partes da América lusa na formação de povoados nas áreas de fronteira, refere-se a negociações entre mandatários rurais e a Coroa lusa. Tais negociações resultaram na constituição da sociedade de São Pedro, como o das Minas Gerais e da ocupação da região de Jacobina no sertão baiano. O primeiro caso será devidamente estudado por Martha Hameister. Por sua vez, o achamento das minas de ouro foi produto da tensão entre os potentados paulistas, entre eles os Rodrigues Paes, e a Coroa; e no sertão de Jacobina nos deparamos com a parentela de Pedro Barbosa Leal como protagonista11. *** Permitam-me, nesse instante, apresentar sugestões de estudos para as próximas gerações de historiadores da América lusa. Em outras palavras, passados mais de cerca de qua10 Ver entre outros os textos de MELLO, Evaldo Cabral. Olinda restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo: Editora 34, 2007; MONTEIRO, John. Negros da terra- índios bandeirantes na origem de São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1994; GODOY, Silvana. Mestiçagem, guerras de conquista e Governo dos Índios na construção da América Portuguesa na América (séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: PPGHIS – UFRJ (tese de doutorado inédita), 2017.MORAIS, Ana L. Em Busca da perpetuação. Reprodução social e poder económico da nobreza da terra nas Capitanias do Norte, séculos XVI-XVIII. Évora: Universidade de Évora (tese de doutorado inédita), 2021 11 ALMEIDA, Carla & OLIVEIRA, Mônica, “Conquista do centro-sul: fundação da Colônia de Sacramento e o “achamamento “ das Minas “ , in: FRAGOSO, João & GOUVEA, Maria de Fátima (org. ) O Brasil Colonial , vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020, pp. 267- 334; CAMPOS, Maria V. Governo de Mineiros: de como meter as minas numa moenda e beber-se o caldo dourado, 1693 a 1737. São Paulo: USP (tese inédita) 2002; CONCEIÇÃO, Helida, O sertão e o império: as vilas do ouro na capiatania da Bahia – século XVIII. Rio de Janeiro: PPGHIS – UFRJ (tese de doutorado inédita), 2018

20 Martha Daisson Hameister renta anos do início do alastramento da malha de cursos de pós-graduação de História no país, hoje já podemos pensar em uma pauta de estudos necessários para a consolidação do conhecimento da sociedade brasileira no chamado, por atavismo e preguiça historiográfica, “período colonial”. O primeiro deles ainda é sobre o surgimento do Antigo Regime nesses trópicos em meio à dinâmica das sociedades indígenas12. Devemos multiplicar os estudos, por exemplo, das parentelas mestiças daí surgidas. Assim como da cultura política vivida naqueles povoados, entendido como imbricamento entre o sistema de conhecimento católico e o produzido pelas populações indígenas. O segundo tema refere-se ao melhor conhecimento sobre os potentados rurais e suas parentelas. O estudo do município, como comunidade política com a prerrogativa do autogoverno, já adquiriu um espaço em nossa historiografia. Porém, como bem Hameister demonstrou há vinte anos, além das câmaras é necessário estudar os potentados rurais. Ainda em 2023, infelizmente, pouco se sabe das famílias mandatárias que tinham assento naquelas câmaras municipais. Via de regra, salvo engano, tais famílias eram de mandatários rurais e precisamos entender melhor como funcionavam tais parentelas como sistema social. Quase nada sabemos sobre o seu sistema de transmissão de patrimônio material e imaterial de geração para geração. Por exemplo, quais os elementos que definiam a escolha de uma liderança numa parentela composta por diversos filhos e cunhados? Quais as regras que presidiam os casamentos em meio à passagem do tempo? Ou ainda, como uma parentela permanecia como tal no tempo e, portanto, conservava a sua identidade? Qual a mecânica que permitia o funcionamento das relações entre potentados e 12 O campo dos estudos sobre as populacões indígenas cada vez ganha mais fôlego entre outros ver os textos de MONTEIRO, John. Negros da terra- índios bandeirantes na origem de São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1994; ALMEIDA, Maria R. Celestino. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013 (2o. ed); GARCIA, E. F. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

21 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) aqueles que lhes davam legitimidade social: escravos, lavradores sem terras etc? Quais eram as fissuras em tal mecânica? Mais ainda, pouca ou nenhuma atenção foi dada aos acordos entre potentados cujas terras faziam fronteiras. Como a paz era mantida entre mandatários territorialmente vizinhos? Tais acordos eram fundamentais num ambiente político cuja autoridade do Estado era ainda precária sobre as localidades, pois a construção dessa paz era vital para o funcionamento da república. Eu poderia listar mais outros pontos incontornáveis e ainda merecem maior atenção da nossa jovem historiografia. Basta lembrar, por exemplo, as relações de sociabilidade dos escravos no seu dia a dia e, para começar, maior e mais aprofundados estudos sobre as famílias escravas, para além da simples constatação de sua existência. Fico apenas nos dois temas por serem mencionados por Hameister em seu estudo pioneiro. Reparem que, propositadamente, apresentei objetos cujo maior entendimento pressupõe o recurso da antropologia, na sua tradição etnográfica, e em especial a micro-história italiana. Parece-me que sem isso, as diferentes sociedades indígenas continuarão a ser chamadas genericamente indígenas e os potentados rurais como uma expressão mágica auto definidora, portanto sem maior rigor. Sem resolver tais problemas, sem ultrapassar a superfície dos fenômenos dificilmente será possível ir alémde ensaios medíocres. Felizmente, o livro de Hameister mostra o vigor e a beleza da historiografia profissional.

23 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) INTRODUÇÃO1 Este estudo visa abordar aspectos da formação da sociedade do Continente do Rio Grande de São Pedro, território sulino de dimensões indefinidas durante todo o século XVIII. Para este trabalho, não serão considerados limites, mas sim zonas de fronteira deste território com áreas circunvizinhas. Ficará claro, ao longo da leitura dos capítulos que estas fronteiras serão transpostas, avançando para o sul e para o norte na busca das respostas às questões que serão lançadas. Ao Norte, fica estabelecido o Rio Mampituba como fronteira, cuja foz no Oceano Atlântico se dá a aproximadamente 29o 30’ de latitude Sul e 49o 30’ de longitude Oeste. Ao sul, a barra do Chuí, a aproximadamente 34o de latitude Sul e 53o 30’ de longitude Oeste. Extrapolar-se-ão estas em direção ao Rio da Prata e à Vila da Laguna, hoje situada emno estado de Santa Catarina. Como marco cronológico inicial, optou-se por estabelecer os anos que cercam 1727, quando se deu início às empreitadas de abertura do Caminho das Tropas, a rota terrestre que ligaria estes territórios a São Paulo, e aqueles que cercam 1763, ano em que a capital do Continente do Rio Grande de São Pedro, a Vila do Rio Grande, se viu perdida para as forças espanholas. Também esses marcos cronológicos serão extrapolados quando as explicações ou continuidade dos processos contidos nesse lapso mereçam atenção. 1 Livro baseado na dissertação O continente do rio grande de são pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) submetida à examinação por banca de mestrado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História Social – UFRJ em 2002. Optou-se por não atualizar o conteúdo, mantendo os erros e acertos da versão original.

24 Martha Daisson Hameister Tem-se por objeto específico as relações que se fundaram nesta sociedade a partir da exploração dos gados existentes em suas pastagens, principal riqueza comercial desta região. Antes de mais nada, há que se frisar que o povoamento oficial do Continente do Rio Grande de São Pedro só passou a existir no ano de 1737, quando José da Silva Pais executou a incumbência que recebera: fundar uma fortificação militar na barra da Lagoa dos Patos. Este é o marco cronológico inicial usualmente estabelecido por historiadores ao estudar a formação da sociedade sulina (p. ex.: Queiroz, 1987; Osório, 1999). Este era tambémomarco cronológico que havia se estabelecido quando esta pesquisa iniciou. Entretanto, foi ficando claro que, para estudar os homens e os tratos com os gados, deveria retroceder-se, no mínimo, uma década para tentar entendê-lo desde a abertura do caminho que uniu os gados do sul aos mercados das regiões centrais. Ainda assim foi pouco. Emváriosmomentos foi necessário retroceder aos primórdios da ocupação nos territórios meridionais, assinalados com os anos que cercaram a fundação da Colônia do Sacramento em 1680. A exploração dos animais e seus produtos nessa massa de terras indivisas que viriam a formar o Continente do Rio Grande de São Pedro antecedeu o início de sua povoação. Por ter sido o comércio das tropas de animais um dos que mais longevidade teve, destaca-se aqui que também o marco cronológico final, 1763, foi transposto várias vezes. Na busca das permanências e descontinuidades nas práticas sociais, econômicas e políticas da sociedade que se formou no Continente, percebe-se que estas ultrapassam a arbitrariedade com que são estabelecidos tais marcos. No entanto, em algum momento da história desta região - e entenda-se aqui região como uma vasta extensão de terras, sem nenhuma outra significação - o presente estudo tinha que pôr o seu ponto final. Assume-se, portanto, a arbitrariedade dessas definições tanto territoriais quanto cronológicas necessárias, entretanto, para poder se proceder a investigação. Assume-se também as várias transgressões desses limites.

25 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) Ao longo dos dois anos em que se executou esta pesquisa, o objeto de estudo foi definindo-se melhor e refinou-se. Pensava-se em trabalhar exclusivamente com a produção e o comércio de muares, tão necessários ao transporte de produtos coloniais, gêneros de primeira necessidade, artigos importados e produtos de exportação desde o interior até os centros urbanos ou portos na costa. O extremo sul da Colônia, deteve por mais de um século a quase exclusividade de produção desses híbridos e parecia o indicado para se desenvolver a pesquisa e a posterior redação da dissertação. Seria, não fossem as novas perspectivas que surgem quando se mergulha mais fundo na documentação. Detectou-se então, que, a produção e comercialização dos muares como uma das fases pelas quais passou a exploração dos gados diversos que existiram ao sul. Constatou-se, ao longo do trabalho, que não foram os muares a primeira fase, e nem sequer a que financiou consolidação da sociedade sulina. Assim espera-se demonstrar ao longo dos capítulos que compõem este estudo. Pareceu impossível estudar a produção dosmuares sem ver as empreitadas de “caçadas de gados” como escreve Aurélio Porto (1943, p. 354) para dizer da captura e morte dos bovinos que viviam nos campos sulinos para a extração de couros e sebos. Impossível, sem pensar a existência dessa produção prévia, sem conhecer um pouco do comércio e dos couros entender os momentos subsequentes da sociedade sulina, quando forammontadas verdadeiras “fábricas” de muares. Eis, então, uma das constatações levantadas aqui: a história da exploração econômica do território sob estudo iniciou-se antes do estabelecimento de núcleos populacionais e seu povoamento sistemático. Dava-se através de investidas para captura de gados para montagem de fazendas a partir da Vila da Laguna, situada ao norte do território do Continente. Também das caçadas em busca dos tão valiosos couros a partir do sul, da Colônia do Sacramento. Espera-se, ao longo dos quatro capítulos, que se possa levar o leitor a concordar com isso.

26 Martha Daisson Hameister Da inexistência desses núcleos populacionais decorre a alegação de inexistência de fontes documentais relativas à região para os primeiros tempos. Isso é parcialmente verdadeiro, se for feita a busca pelas desinências “Rio Grande do Sul”, “Rio Grande de São Pedro” entre outras que também lhe serviram de topônimo. Estes são praticamente ineficazes para o caso de um local de dimensões e limites indefinidos e relativamente inabitado. As fontes, para o período que antecede o povoamento e mesmo alguns para anos além desse início, foram achadas, principalmente, em meio aos documentos relativos ao Rio de Janeiro, Colônia do Sacramento e São Paulo. A extrapolação dos marcos geográficos estabelecidos ficará evidente ao longo da leitura do texto. Dos núcleos populacionais que mais serão citados ao longo deste escrito, apenas Rio Grande, Viamão, Triunfo e Rio Pardo se situam dentro dos marcos assinalados. De resto, serão referências a Santos, Sorocaba, Curitiba, Laguna, Sacramento, Montevidéu, Buenos Aires, e Lisboa. A origem disso está justamente nessas teias de relações que os habitantes e exploradores do sul teceram. Elas ultrapassavam o Continente do Rio Grande de São Pedro, atravessavam o Rio da Prata, chegavam às terras espanholas. Cruzavam o oceano e tinham suas ramificações na capital do Reino, nos mais altos escalões de poder do Império Português. Para ser um comerciante de animais bem-sucedido no Extremo Sul, um homem e seus negócios necessitavam de ligações fortes em diversos pontos nodais da Colônia e da metrópole. Uma outra causa é o fato desse comércio, terrestre e de longa distância em sua essência, ter trilhado rotas que por vezes possuíam mais de dois mil quilômetros, em viagens que podiam durar um ano ou mais. Ao longo dos trajetos cumpridos para abastecer as regiões que demandavampelos animais, foram se estabelecendo núcleos populacionais. Os caminhos trilhados pelos gados, usando a feliz expressão cunhada por André Jacobus, eram “vetores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial” (Jacobus, 2000). Acrescentar-se-ia, apenas a palavra “políticas” a ela, já que os poderes locais e suas relações com os governos da Colônia e do Império Por-

27 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) tuguês construíram-se e possuíram nexo com o fluxo dos animais aos seus mercados. Uma caixa de Pandora foi aberta, principalmente ao tomar-se conhecimento do conteúdo da documentação eclesiástica do Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. O seu conteúdo subverteu a ideia - agora assumidamente errônea - que se tinha dessa sociedade: simples e sem muitas opções. O foi o “mal” contido na caixa que fez desviar o foco de interesse do mero comércio de animais para a detecção das relações sociais que se estabeleceram a partir de sua prática. Os alegados “grandes vazios” existentes entre um núcleo e outro eram preenchidos pelas relações das famílias e comerciantes, muito mais integradas, cientes dos quotidianos, umas das outras. Eram permeadas por redes de parentescos, alianças, negócios e rivalidades, mais do que poderia pressupor a vã filosofia. Para poder retroceder no tempo sem perder de vista os agentes sociais envolvidos nos tratos dos animais e na formação da sociedade sulina e suas práticas, teve-se de buscar uma metodologia a aplicada. De inestimável valor foi o auxílio encontrado em O Nome e o Como, de Carlo Ginzburg (1989) para arquitetar formas de extrair das fontes aquilo que se necessitava. Apesar de todos os problemas com homônimos dentro e fora de uma mesma família, imprecisões na grafia e a prática, se não comum, ao menos recorrente no Continente do Rio Grande de São Pedro, de alterar o nome de um vivente ao longo de sua existência - por equívoco no ato dos registros documentais ou intencionalmente, ao assumir uma nova vida em um território novo - foi, de fato, o nome, o fio condutor para vencer os labirintos da sociedade sulina. Para poder aglutinar as informações que se acumulavam sob os nomes dos agentes sociais dessa história, construiu-se uma base de dados na qual a característica de cada pessoa, que não admite duplicação, era o seu nome. A ficha “individual” montada inclui campos para dados sobre local e data de nascimento, filiação, óbito, inventário e testamento, cônjuge, sogros, posse de terras, posse de escravos, mercês

28 Martha Daisson Hameister recebidas, progressões na carreira militar, ocupações, entre outras. O nome é o identificador maior destes homens. Para vencer, ou ao menos driblar, as armadilhas dos homônimos usaram-se alguns critérios. Se pais e filhos fossem, acrescentou-se o “o velho” e “o moço”, coisa que seus coevos já faziam, com o intuito de diferenciá-los nos registros documentais. Mas isso não resolvia o problema dos vários “Franciscos Pereiras”. Optou-se por acrescentar caracteres numéricos, iniciando em 1 e indo até quantos fossem os “Franciscos Pereiras”. O mesmo critério foi usado para aqueles que aparecem sem sobrenome - o que, em geral, acontecia com mulheres como “Maria de Jesus” ou com estratos subalternos dessa sociedade: os muitos “Inácios” que eram escravos, pardos, índios ou forros. Esta solução gerou novo problema: por vezes produziu- -se duas fichas de ummesmo sujeito por não se ter certeza de sua identidade. Alguns casos permanecerão insolúveis, mas outros, quando utilizada mais uma das técnicas micro-históricas acabaram por solucionar-se. A referência aqui é à utilização de fontes documentais de diversas origens. Utilizou-se tudo o que os dois anos de pesquisa e os mais de mil quilômetros de distância dos arquivos sulinos permitiram. Ao obter-se informações colhidas nos distintos corpus documentais, o cruzamento dos dados dois sujeitos de mesmo nome, depurou e eliminou muitas dúvidas. Num exemplo hipotético: tem-se dois “Antônios Rodrigues” - o nome mais popular no Continente do Rio Grande de São Pedro - arrolados emuma listagemde propriedades e proprietários e outro num registro de matrimônio. A informação que se obteve da listagem de proprietário é que “Antônio Rodrigues” recebeu as terras em dote do seu sogro, Alexandre de Mendonça Pereira - o único. Se o nome do sogro coincide no registro matrimonial, a identificação positiva é óbvia. Aglutinam-se informações em uma única ficha, acrescenta-se o nome da esposa, origem do casal, data do casamento e outras tantas. Caso isto não ocorra, mantém-se as fichas em separado. Ainda assim, não há garantias de se tratar de pessoas dife-

29 O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763) rentes. Sheila de Castro Faria (1998) demonstrou que não era raro na Colônia o viúvo que contraia um segundo matrimônio. Assim, continuarão a existir Antônio Rodrigues 1 e 2 até que a situação se defina. O critério utilizado para gerar uma ficha foi o titular dela ter dado origem a um documento ou a um registro específico seu em um documento. Optou-se por listar escravos como “Joaquim mina” ou “Manuel crioulo” no campo de observações de seu senhor. A menos que, caso hipotético, “Joaquim mina” seja chefe de fogo, ou tenha casado com “Maria de Jesus”, ou batize uma criança ou mesmo cometa um delito. Nesse caso, Joaquim encabeça uma ficha, constará haver batizado o menino Fulano, matado o sargento Beltrano. Maria de Jesus figurará no campo reservado aos cônjuges. Aliás, esta é a situação da imensa maioria das mulheres do Continente, que como a hipotética Maria de Jesus, não possuem sobrenome nem trazem junto do nome sinais de bens ou posses. A grande exceção são as viúvas. A imensa maioria das mulheres que deram origem a fichas eram viúvas. Estas, muitas vezes encabeçavam fogos ou possuíam terras ou escravos em seu nome. Compravam, vendiam, suplicavam aos agentes da Coroa uma ração de carne ou pediam em pensão o soldo de seu marido falecido. Melhor ainda quando citadas como “viúva do capitão de dragões José de Tal”. Nesse caso, não só será aberta a ficha para a viúva como completar-se-ão os campos “casado - simou não”, “cônjuge” e “patentemilitar” na ficha de José de Tal, caso este já tenha ficha. Transpondo as informações para os formulários dos personagens da história do Continente - trabalho que requereu paciência, cuidado e disciplina - obteve-se até o encerramento da escrita deste - 2.383 fichas nominais com informações variadas de gente que esteve ligada ao Continente entre 1680 e 1794. E segue aumentando este número. Esta base de dados, ao mesmo tempo em que auxiliou em muito na pesquisa, com frequência mostrou certas deficiências, emboamedida corrigidas no evoluir da investigação. Uma diferença entre o que aqui se apresenta e o projeto inicial da pesquisa é a sua maior abrangência. No princípio

30 Martha Daisson Hameister pensava-se trabalhar somente com o grupo que atuou na condução de tropas e no seu comércio. Tendia a uma perspectiva prosopográfica, centrada nesse grupo. Todavia, à medida que a investigação se desenvolvia ficava clara e evidente a sobreposição de atividades e ocupações. Na Colônia do Sacramento e no Continente do Rio Grande de São Pedro, licenciados para a prática da medicina produziam couros, padres praticavam contrabandos, professores conduziam boiadas, sapateiros andavam embarcados e um ourives tornou-se ferreiro (AHCMPA - Autos Matrimoniais; AHU-NCS- doc. 195, Carta de Antônio Pedro de Vasconcelos, ao rei, sobre a devassa que fez e enviou ao Conselho Ultramarino, acerca das atividades ilegais do religioso carmelita frei Sebastião Álvares, e do homem de negócios Cristóvão Pereira de Abreu). Antes que o leitor indague se esta sociedade vivia somente da exploração animal, se responde antecipadamente: não. Apenas os agricultores não serão tratados aqui. Para que esta sociedade pudesse crescer e alimentar-se, muitos foram os lavradores que plantaram e colheram o milho, o trigo, a mandioca. Construíram tafonas e moendas. Tentaram o cânhamo e o algodão. Só que não se tratará aqui deste ramo da produção. Para isso há a tese de doutoramento de Helen Osório (1999), que trouxe à luz a existência dos lavradores e fazendeiros do Rio Grande, suas produções e seus bens, além dos comerciantes de gêneros diversos que atuaram na região. Todavia, o que se percebeu ao longo da pesquisa, é que os produtos de origem animal eram fabricados com o objetivo primeiro de lançá-los ao mercado. Uma ideia que se defende aqui é que foi do setor fortemente mercantilizado da economia dos primórdios da sociedade sulina, os couros, os sebos e os cavalos, que vieram os recursos para subsidiar a montagem mais dispendiosa das complexas produções demuares e charques. Essa acumulação, não contrariando a regra, se deu no setor mercantil e não no produtivo (Braudel, 1996, p. 329-405). Foi o comércio o único capaz de transformar o entesouramento de uma sociedade, seja ele terras e seus grãos, ou animais que pastavam ao campo. Um boi é apenas um boi e um cavalo é apenas um cavalo. Só serão riqueza se puderem ser

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