Casa Leiria ESCRAVIZAÇÃO ILEGAL NO BRASIL BEATRIZ GALLOTTI MAMIGONIAN ANTONIA MÁRCIA NOGUEIRA PEDROZA (ORGANIZADORAS)
Em meados do século XIX, homens e mulheres, de cinco diferentes províncias brasileiras, ocuparam vilas e enfrentaram autoridades a fim de impedir a execução de dois decretos imperiais. Conforme os sediciosos, tais diplomas visavam a escravizar os povos do Norte (ou Nordeste, como se diria hoje), dado que a Inglaterra não mais permitia o tráfico africano e o Sul (ou Sudeste, em termos atuais) tinha uma imensa fome de braços. Se, para as autoridades coevas, o movimento era fruto da ignorância dos povos, o livro que agora se publica comprova que a (re)escravização era uma realidade a ser temida, há décadas (ou séculos), por todos que fossem ou tivessem como antepassados indígenas e africanos. Beatriz Mamigonian e Antonia Pedroza trazem a público uma obra seminal que, ao iluminar aspectos sombrios do passado brasileiro, permite um melhor entendimento das cicatrizes que marcam o presente do país. O leitor, desde a introdução até o último dos quatorze capítulos da obra, é convidado a conhecer os percalços e ameaças enfrentados, cotidianamente, por homens, mulheres e crianças que, a despeito de tudo e de todos, lutaram, com todas as (poucas) ferramentas disponíveis, para garantir sua condição de liberdade, do lado de cá e de lá do Atlântico. (continua na aba da contracapa)
ESCRAVIZAÇÃO ILEGAL NO BRASIL Beatriz Gallotti Mamigonian Antonia Márcia Nogueira Pedroza (Organizadoras) CASA LEIRIA São Leopoldo-RS 2023
Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 E74 Escravização ilegal no Brasil / organização Beatriz Gallotti Mamigonian, Antonia Márcia Nogueira Pedroza. - São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ acervo/historia/escravizacaoilegalnobrasil/index.html> ISBN 978-85-9509-082-8 1. História – Brasil. 2. Escravidão ilegal – Brasil. 3. Escravidão – Criminalização – Brasil. I. Mamigonian, Beatriz Gallotti (Org.). II Pedroza, Antonia Márcia Nogueira (Org.). CDU 94(81) EDITORA CASA LEIRIA – CONSELHO EDITORIAL Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS) Ana Patrícia Sá Martins (Uema) Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo (UERN) Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco (UFRN) Haide Maria Hupffer (Feevale) Isabel Cristina Arendt (Unisinos) José Ivo Follmann (Unisinos) Luciana Paulo Gomes (Unisinos) Luiz Felipe Barboza Lacerda (Unicap) Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos) Rosangela Fritsch (Unisinos) Tiago Luís Gil (UnB) Editoração: Casa Leiria. Revisão: Luiza de Aguiar Borges. Imagem da capa: FIDANZA, Felipe Augusto. Menina indígena comendo mingau, Pará. 1873. 1 fotografia. 92 mm x 55 mm. Instituto Leibniz de Geografia Regional (Leipzig, Alemanha), Arquivo de Geografia, Coleção Alphons Stübel. Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores. Este livro é resultante do projeto A liberdade precária, as condições degradantes e as fronteiras da escravidão, financiado pelo CNPq por meio da Chamada MCTIC/CNPq n.º 28/2028 – Universal/Faixa C, processo 423736/2018-3. DOI: https://doi.org/10.29327/5398682
ESCRAVIZAÇÃO ILEGAL NO BRASIL
6 Sumário 9 A escravização ilegal no Brasil sob as lentes da história social do trabalho e do direito Beatriz Gallotti Mamigonian Antonia Márcia Nogueira Pedroza 59 Lei e tolerância com a ilegalidade: apontamentos sobre a escravização ilegal de indígenas no período colonial Vânia Maria Losada Moreira 91 O cativeiro injusto e as (re)ações pela liberdade na Amazônia colonial (1700–1757) Marcia Eliane Alves de Souza e Mello 123 Práticas de redução ao cativeiro na infância: a reescravização e a escravização ilegal de crianças de cor (Minas Colonial) Fernanda Domingos Pinheiro 155 O tráfico e a escravização ilegal de africanos no Rio Grande do Sul (c. 1831–1850) Marcelo Santos Matheus Paulo Staudt Moreira 191 Os estadistas do Império e o tráfico ilegal: a escravização de africanos na casa do senador Bernardo Pereira de Vasconcelos Beatriz Gallotti Mamigonian 237 Os agentes do Estado imperial e a escravização ilegal Antonia Márcia Nogueira Pedroza 283 Escravização ilegal, relações internacionais e a Guerra do Paraguai Keila Grinberg 313 Meninos escravizados ilegalmente: infância, violência e comércio interprovincial na década de 1850 Luana Teixeira
7 339 Uma questão de liberdade: as práticas de reescravização e escravidão ilegal de pessoas livres e a resposta das autoridades provinciais no Piauí (1850–1888) Francisca Raquel da Costa 369 A matrícula especial da Lei de 1871 e a escravização ilegal Ariana Moreira Espíndola 401 Os habeas corpus e a rede de escravização ilegal e compulsoriedade na província do Amazonas no século XIX Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira Costa 433 Mulheres negras lutando contra a escravidão ilegal às portas do sertão (Feira de Santana, Bahia, 1871–1888) Karine Teixeira Damasceno 461 Escravização ilegal vista a partir da Comarca de Benguela Mariana Armond Dias Paes 499 Organizadoras e demais autores e autoras
9 A escravização ilegal no Brasil sob as lentes da história social do trabalho e do direito Beatriz Gallotti Mamigonian Antonia Márcia Nogueira Pedroza Uma fotografia que expõe uma escravização ilegal A menina indígena que figura na capa deste livro, cujo nome desconhecemos, foi uma das incontáveis crianças indígenas engajadas no serviço doméstico na Belém oitocentista.1 Tudo indica que ela foi vítima de escravização. Isso porque o geólogo e pesquisador Alphons Stübel, que adquiriu a fotografia, deu-lhe o título “Menina indígena comendo mingau, Pará” e a legenda: “esta criança é comprada e treinada como criada por uma família portuguesa”.2 As autoras agradecem a Aldrin Figueiredo, Ana Carolina Schveitzer, Daniel Barroso e Mariana Muaze pela valiosa interlocução a respeito da fotografia da capa do livro e do seu autor, o fotógrafo Augusto Fidanza. Agradecem também a Keila Grinberg e Mariana Dias Paes, integrantes do projeto “Liberdade precária, condições degradantes e fronteiras da escravidão” (CNPq), a Monica Dantas, Adriana Barreto e Mariana Joffily, pela interlocução, assim como a Diego Schibelinski, Alvaro Huber de Souza, Andressa Pastore, Camila Martins, Caio Henrique Fernandes, José Antonio Alves e Matheus Thibes de Mattos, que foram bolsistas. O projeto também recebeu apoio da American Society for Legal History (2019). Antonia Pedroza trabalhou nesta coletânea na vigência do projeto “As fronteiras entre vidas e liberdades vulneráveis e a escravização ilegal no Ceará”, financiado por meio do Edital 03/2021 PDCTR – FUNCAP/CNPq, (proc. DCT-0182-00057.01.00/21 e 05803691/2022). 1 FIDANZA, Augusto. Menina indígena comendo mingau, Pará. 1873. 1 fotografia. 92 mm x 55 mm. Instituto Leibniz de Geografia Regional (Leipzig, Alemanha), Arquivo de Geografia, Coleção Alphons Stübel. https://ifl.wissensbank.com/ qlinkdb/cat/ID=136887000. Acesso em: 30 jan. 2023. A fotografia foi incorporada ao acervo digital da Brasiliana Fotográfica, mas perdeu detalhes preciosos de sua catalogação original. https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/ 20.500.12156.1/4380. Acesso em: 30 jan. 2023. 2 No original: “Das Kind ist gekauft und wird in einer portugiesischen Familie zur Dienerin erzogen”. DOI: https://doi.org/10.29327/5398682.1-1 In: MAMIGONIAN, Beatriz G.; PEDROZA, Antonia M. N. (org.). Escravização ilegal no Brasil. São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. DOI: https://doi.org/10.29327/5398682
10 O registro fotográfico é de autoria de Augusto Fidanza, um fotógrafo português que se estabeleceu em Belém do Pará no ano de 1867, de quem Stübel adquiriu várias fotografias em sua viagem à América do Sul entre 1868 e 1877. A coleção foi exposta no Museu de Geografia e depois incorporada ao acervo do Museu de Etnologia de Leipzig.3 A fotografia da menina compunha um quadro intitulado “Rio Amazonas, 1875, Brasil”, em que foi exposta com três outras fotografias, também produzidas em estúdio. Duas delas, feitas por Fidanza, são de um homem e uma mulher indígenas do Rio Negro e a outra, uma fotografia colorizada de um homem indígena em vestimenta e adereços de penas, produzida por José Thomaz Sabino.4 A menina é a única que não exibe qualquer adereço remetendo a sua origem. Neste momento pode-se apenas especular, mas acreditamos que a família portuguesa para quem ela trabalhava fosse a do próprio Fidanza. O certo é que Stübel, colecionador meticuloso, registrou a proveniência da menina retratada e fez questão de a revelar ao público do museu. A nota sobre sua aquisição não informa a respeito do modo como ela foi aliciada junto à sua família ou seu grupo. A expressão “ela é comprada” indica que em Belém ela já havia sofrido o processo de escravização e foi tratada como mercadoria. Stübel apresenta a situação com um tom condescendente. Talvez ela fosse entendida, por seus informantes ou por ele mesmo, como um “resgate”, forma de apreensão de pessoas não-cristãs justificada pelo argumento de salvação da vítima, de morte ou escravização. Além disso, o trabalho infantil era disseminado nos espaços coloniais e nas cidades europeias, portanto não desconhecido do público visitante do museu. Estando entre os tipos indígenas adultos associados a marcadores de origem, a menina comendo mingau representava a criança indígena trazida para a “civilização”. 3 KOHL, Frank Stephan. Um “olhar europeu” em 2000 imagens: Alphons Stübel e sua coleção de fotografias da América do Sul. Studium, Campinas, n. 21, 2005, p. 51–74; Disponível em: https://www.studium.iar.unicamp.br/21/04.html. Acesso em: 30 jan. 2023; TEIXEIRA, Amanda Gatinho. No estúdio fotográfico de Fidanza: a construção da imagem das mulheres escravizadas na cidade de Belém (1869–1875). dObra[s], n. 30, 2020, p. 158–180. 4 SABINO, José Thomaz. Indígena, Pará. 1873. 1 fotografia. 91 mm x 56 mm. SAm021-0022; FIDANZA, Augusto. Indígena do Rio Negro. 1873. 1 fotografia. 92 mm x 55 mm. SAm0021-0023; FIDANZA, Augusto. Indígena Arara do Rio Negro. 1873. 1 fotografia. 92 mm x 55 mm. SAm0021-0024. Instituto Leibniz de Geografia Regional (Leipzig, Alemanha), Arquivo de Geografia, Coleção Alphons Stübel.
11 Em estúdio, Fidanza tinha o controle da iluminação, produzia arranjos no ambiente, escolhia a vestimenta e os objetos, e dirigia os gestos da pessoa fotografada para compor o quadro desejado. A menina capturada pela sua lente veste um longo surrão de algodão, com a manga direita caindo displicentemente e a perna direita saindo do interior da vestimenta. Descalça, destituída de qualquer adereço, sentada sobre um banco tosco, a criança apoia entre os joelhos a tigela segurando-a pela mão direita e com a mão esquerda leva a colher à boca. O ambiente sugerido é realmente o doméstico: o mingau, a tigela, a alimentação. Contra um fundo neutro, vazio, a menina não tem nome, ela estava ali para compor um tipo. Nas outras cartes de visite que Fidanza e outros profissionais produziam para abastecer o crescente mercado de fotografias, os tipos indígenas eram associados de forma estilizada à natureza exuberante e às suas culturas, com marcadores como cocares e lanças, e os homens e mulheres de origem africana associados às suas atividades laborais e às suas origens étnicas. A menina indígena representa a pessoa despida das suas marcas de origem, incorporada à sociedade luso-brasileira por meio da domesticidade.5 Esse tipo representava as mulheres e meninas dedicadas ao serviço doméstico das famílias senhoriais. Na vida real, eram pessoas recrutadas para trabalhar na cidade, afastadas de suas famílias desde muito novas, e cuja vida seria daí em diante dedicada aos cuidados, costumeiramente sem remuneração. Essa criança da fotografia, tornada objeto de transação comercial e empregada no serviço doméstico de uma família em Belém, se manifesta em numerosas passagens deste livro. Em vários capítulos acompanhamos trajetórias pessoais e a resistência de tantas delas, fossem indígenas, africanas ou mestiças. Suas histórias foram reveladas em processos judiciais muitas vezes instaurados décadas depois do recrutamento e da escravização. Para as consciências do século XXI, toda escravidão é inaceitável e nenhum princípio pode explicar ou justificar a vida de um ser humano em cativeiro. Além de ser moralmente recriminada, a escravidão também é ilegal na maior parte do mundo contemporâneo.6 Mas não 5 Buscar por “Fidanza” na coleção do Instituto Leibniz de Geografia Regional: https:// ifl.wissensbank.com/esearcha/browse.tt.html. Acesso em: 30 jan. 2023. 6 No Brasil, de acordo com o Código Penal de 1940 atualizado em 2003, as práticas de exploração do trabalho que violam a dignidade humana são consideradas análogas à escravidão. Sobre a adoção da terminologia de trabalho análogo ao de escravo no contexto contemporâneo dos direitos de cidadania, ver GOMES, Ângela M. Castro. Repressão e mudanças no trabalho análogo a de escravo no Brasil: tempo
12 foi sempre assim. Durante séculos, a escravidão foi praticada com apoio nos mais diversos ordenamentos jurídicos, europeus e não europeus, e num conjunto dinâmico de regras escritas e implícitas que estabeleciam distinção entre os sujeitos dignos de proteção e aqueles passíveis de escravização. É importante destacar, no entanto, que na longa duração em que a escravidão vigorou como sistema de exploração do trabalho, houve normas que proibiam expressamente a escravização de pessoas em certas circunstâncias, ou de determinados grupos. Esta coletânea se volta para investigar a escravização – pensada como o processo pelo qual as pessoas livres eram submetidas à escravidão – que se fazia ao arrepio das normas, tanto no período colonial quanto no imperial. No Antigo Regime, a diversidade de fontes do direito e a falta de centralização do poder não permitem caracterizar propriamente ilegalidade, mas importa debater o que era entendido como justo/injusto na lógica do direito vigente e pelas vítimas e outros grupos envolvidos. A partir da independência, sob os marcos do sistema constitucional representativo, o processo de positivação do direito fez do Estado a fonte do direito, criando hierarquia entre as normas e as instâncias responsáveis pela criação e aplicação da legislação. Legal e ilegal ganharam contornos definidos. A partir de então, os sujeitos eram submetidos à lei e respondiam pela sua violação como cidadãos iguais, ao menos em princípio. Como veremos adiante, o processo de construção do Estado imperial brasileiro envolveu intensas disputas acerca dos direitos dos cidadãos e uma centralização que favoreceu os senhores de terras e pessoas escravizadas, mesmo que violassem a legislação. Nos territórios de ocupação ibérica, a legalidade da escravização de indígenas e africanos foi debatida extensamente durante todo o período da colonização, tanto no âmbito da Igreja católica e das ordens religiosas quanto no âmbito das administrações monárquicas, e o debate continuou vivo depois das independências. A linha demarcatória entre a escravização aceita e aquela intolerada sofreu variações com o tempo. Do ponto de vista dos direitos ibéricos e canônico, a escravização de indígenas e de africanos – apesar da resistência e das vozes dissonantes – era legitimada quando decorrente de guerras justas ou resgates. Porém, conforme a época e o lugar, como na Amazônia setecentista ou na África centro-ocidental no século XIX, a distinção entre a escravização legal e a ilegal dependeu de um jogo de forças envolvendo atores nas presente e usos do passado. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 32, n. 64, p. 167–184, 2012.
13 Américas, na África e na Europa. Indígenas, africanos, missionários, colonos, autoridades eclesiásticas e monárquicas disputaram intensamente as regras desse processo que foi ganhando escala à medida que a colonização europeia nas Américas e o tráfico de africanos escravizados foram avançando, do século XVI em diante. No Brasil, as sucessivas proibições da escravização de indígenas pelos alvarás de 1609, 1680 e 1755 demarcaram, naqueles contextos específicos, o que seria considerado inaceitável pela Coroa portuguesa, mesmo que esta não tivesse, de início, poder para impor o respeito às normas. As proibições do tráfico atlântico em Portugal, em 1761, e no Brasil a partir de 1815 (para o comércio com o norte do equador) e 1830–31 (todo o tráfico) também estabeleceram limites para a escravização de pessoas. Outras normas jurídicas, como as leis de emancipação gradual, sem contestarem a instituição da escravidão, também restringiram a escravização: a Lei de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, proibiu a reprodução do princípio partus sequitur ventrem, pelo qual aqueles nascidos de mulheres escravizadas seriam escravos desde o nascimento. Nesta coletânea, o conjunto dos textos aborda o que era considerado escravização ilegal em cada contexto tratado, explorando as divergências no entendimento do direito e dos direitos dos sujeitos envolvidos. Combinando as discussões sobre escravização de indígenas e de africanos e seus descendentes, o livro reúne contribuições sobre vários aspectos do fenômeno, de norte a sul da América portuguesa e do Brasil independente, com um capítulo tratando de Benguela, na África. A escravização ilegal na historiografia A investigação a respeito da escravização ilegal é um desdobramento das pesquisas sobre a escravidão e a liberdade, no campo da história social, em uma frente que se aproximou, nos últimos anos, da história do direito. Rejeitando a abstração e a generalização em que operavam as pesquisas das décadas de 1970 e 1980, inspiradas na história econômica e demográfica, e apoiados em extenso material empírico qualitativo, historiadores sociais passaram a buscar as experiências e expectativas dos sujeitos, apurando o sentido que eles e elas davam àquelas condições e seu papel nas transformações que viviam. O recurso a fontes judiciais e a redução da escala de análise permitiu uma
14 aproximação até então inédita na direção das práticas cotidianas e uma atenção às camadas subalternizadas, com uma abordagem que ressalta a ação dos indivíduos.7 O tema da escravidão estava entre as preocupações dos pesquisadores da expansão colonial europeia na era moderna, pela perspectiva marxista, mas também daqueles que refletiam sobre as relações raciais sem esconder o saudosismo em relação ao passado, na primeira metade do século XX.8 Nos anos 1970 e 1980, no âmbito da pesquisa sobre os modos de produção, os sistemas de trabalho da era moderna foram objeto de intenso escrutínio, em virtude do interesse na formação do capitalismo no centro e nas periferias do sistema. Os estudiosos das Américas se debruçaram sobre o processo de “transição da escravidão para o trabalho livre” entendendo que os processos abolicionistas foram movidos por forças econômicas e que representaram rupturas nas relações de trabalho, associando o capitalismo ao trabalho assalariado. Escravidão e liberdade seriam regimes sucessivos, quando não excludentes.9 Desde os anos 1980, porém, o olhar para dentro das sociedades coloniais, para seus mecanismos de funcionamento e reprodução – os “segredos internos” – revelou a complexidade das relações entre proprietários de terra e trabalhadores e a variedade de arranjos de trabalho que permitiam a exploração da mão de obra de pessoas de diferentes estatutos: livres, libertos, escravos e outros. Hoje, é consenso entre historiadores tratar do sistema colonial implantado nas Américas na era moderna como uma combinação de diferentes regimes de organização do trabalho de indígenas e africanos, entre os quais a escravidão tinha peso maior ou menor, conforme o contexto e as condições locais. Mes7 Para esta virada historiográfica, ver HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade. In: Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 106–135; CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, n. 26, p. 13–47, 2009. 8 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1942; WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1944]; para os saudosistas, PHILLIPS, Ulrich B. American Negro Slavery: A Survey of the Supply, Employment, and Control of Negro Labor, as Determined by the Plantation Regime. New York: Appleton, 1918; FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Maia e Schmidt, 1933. 9 Ver, entre outros, LAPA, José Roberto de A. (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980 e PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.). Trabalho escravo, economia e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
15 mo onde predominava o trabalho de pessoas escravizadas, como nas regiões de plantation açucareira, havia uma certa proporção de pessoas livres, submetidas a diversos arranjos, compulsórios ou não.10 As pesquisas sobre o mundo agrário apontaram para a emergência de um campesinato negro bem antes da abolição e para a continuidade de formas não-assalariadas de trabalho, depois dela.11 Discutir escravidão e liberdade como duas condições opostas, simétricas e estanques, revelou-se insuficiente, ao mesmo tempo em que a abolição da escravidão deixou de ser entendida como uma ruptura tão radical. A história social promoveu uma releitura dos processos de abolição da escravidão nas Américas, dos anos 1980 em diante, combinando uma visão renovada do direito, agora visto como um campo de disputas entre forças sociais, com a atenção voltada para as visões de mundo e formas de atuação dos grupos subalternizados, até então silenciadas. Desses estudos, emergiram histórias de resistência e visões de liberdade associadas à autonomia que iam na contramão das expectativas da classe senhorial, de liberdade apenas formal e dependente.12 10 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550–1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988; MONTEIRO, John Manuel. Labor Systems. In: BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John H.; CORTÉS CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America. v. 1 – The Colonial Era and the Short Nineteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 185–233. 11 CARDOSO, Ciro Flammarion. Escravo ou camponês? Protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987; CRATON, Michael. Reshuffling the pack: the transition from slavery to other forms of labor in the British Caribbean, ca. 1790–1890. New West Indian Guide/Niewe West-Indische Gids, Leiden, v. 68, n. 1–2, p. 23–75, 1994; MATTOS, Hebe. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2009; FRAGOSO, João Luís. Economia brasileira no século XIX: mais do que uma ‘plantation’ escravista-exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História geral do Brasil. 2a. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1996. p. 145–196; MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997. 12 FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. São Paulo: Paz e Terra, 1988; SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre. Campinas: Editora da Unicamp, 1991; HOLT, Thomas. The Problem of Freedom: Race, Labor, and Politics in Jamaica and Britain, 1831– 1938. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/EDUSP, 1994.
16 As pesquisas sobre o fenômeno da alforria e a categoria dos libertos permitiram observar de perto a passagem da escravidão à liberdade. A extensão e os limites do poder senhorial e as chances de mobilidade social dos libertos serviram de indicador comparativo entre as sociedades escravistas em diferentes lugares das Américas.13 Reconhecendo que no Brasil eram altas as taxas de alforria e entendendo que uma porcentagem considerável da população, pelo menos a partir do século XVIII, era constituída por gente liberta ou livre “de cor”, tornou-se incontornável a questão, formulada por Silvia Lara, de “como a liberdade pôde ser pensada e, sobretudo, experimentada no interior de sociedades fortemente regidas por princípios escravistas”.14 A mediação estatal nas relações escravistas também emergiu como um eixo das pesquisas desde os anos 1980. O recurso às fontes cartoriais e judiciais permitiu aos historiadores a aproximação com o cotidiano e os anseios dos sujeitos que não deixaram seus próprios registros, bem como a observação, na escala “microscópica”, dos grandes processos em curso. As análises das alforrias, ações de liberdade, processos-crime e outros tipos de ações judiciais permitiram observar as “visões da liberdade”, o impacto da mobilização dos sujeitos escravizados sobre a legitimidade do sistema e também o silenciamento da cor entre libertos. Racializar a análise da constituição da cidadania e do direito desde a Independência resultou na exposição de divergências entre vertentes do liberalismo emergente.15 13 BERLIN, Ira. Slaves Without Masters: The Free Negro in the Antebellum South. New York: Pantheon Books, 1974; COHEN, David; GREENE, Jack (org.). Neither Slave nor Free: The Freedmen of African Descent in the Slave Societies of the New World. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972; MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil, séculos XVI a XIX. São Paulo: Brasiliense, 1982; KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808–1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000 [1987]; LARA, Silvia H. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750– 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; OLIVEIRA, Maria Inês C. O liberto: o seu mundo e os outros, 1790–1890. Salvador: Corrupio, 1988; EISENBERG, P. Ficando Livre: as alforrias em Campinas no século XIX. In: Homens Esquecidos, escravos e trabalhadores livres no Brasil – Séculos XVIII e XIX. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1989, p. 255–309; SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684–1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001, p. 165–212; MONTEIRO, John M. Alforrias, litígios e a desagregação da escravidão indígena em São Paulo. Revista de História, São Paulo, n. 120, p. 45–57, 1989. 14 LARA, Silvia H. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade no Brasil escravista. Africana Studia, Porto, n. 14, p. 73–92, 2010, cit. p. 77. 15 CHALHOUB, Sidney, op. cit, 1990; GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; CASTRO, Hebe M. Mattos. Das
17 A historiografia da “transição para o trabalho livre”, que relegava os negros ao período da escravidão e os omitia do pós-abolição, ignorando as experiências de liberdade antes da abolição, foi superada pelas pesquisas que passaram a identificar mais complexidade na distinção entre escravidão e liberdade.16 Do ponto de vista dos arranjos de trabalho, as pesquisas apontaram que a exploração da mão de obra de pessoas escravizadas coexistiu com outras formas de coerção e com o trabalho autônomo ou assalariado de pessoas livres. Frequentemente, as condições de vida dos trabalhadores livres e escravizados eram semelhantes e não era incomum que desempenhassem as mesmas funções ou trabalhassem lado a lado. A liberdade, em si, tinha sentidos palpáveis, como autonomia, mobilidade espacial e convívio familiar ou comunitário e podia ser experimentada por pessoas escravizadas.17 A separação, para efeitos analíticos, entre estatuto jurídico e condições de vida e trabalho permitiu a observação da complexidade do mundo do trabalho sob a escravidão: por um lado, havia pessoas escravizadas com autonomia para negociar as condições de trabalho e acumular pecúlio, e por outro, também havia sujeitos livres, submetidos a trabalho compulsório para particulares, instituições religiosas ou o Estado, em condições semelhantes às dos trabalhadores escravizados. cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista: Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; REIS, João J. Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX. In: CUNHA, Maria Clementina (org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura. Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2002, p. 71– 100; GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; DANTAS, Monica D.; SABA, Roberto. Contestations and Exclusions. In: DUVE, Thomas; HERZOG, Tamar (org.) The Cambridge History of Latin American Law in Global Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2023. p. 345–388. 16 LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, São Paulo, n. 16, p. 25–38, 1998. 17 REIS, João J.; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CHALHOUB, op. cit, 1990; XAVIER, Regina C. L. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1996; DIAS, Camila Loureiro. Os índios, a Amazônia e os conceitos de escravidão e liberdade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 33, n. 97, 2019; MOREIRA, Vânia M. Losada. Reinventando a autonomia. Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades indígenas na capitania do Espírito Santo, 1535–1822. São Paulo: FFLCH/Humanitas, 2019.
18 O que parecia contraditório quando se concebia escravidão e liberdade como opostas, abriu uma nova fase nas pesquisas sobre a liberdade. A partir dos anos 2000, os historiadores passaram a tomar como pressuposto que a experiência de vida em liberdade foi materialmente precária e que a coerção ao trabalho e as ameaças de (re)escravização foram recorrentes para os sujeitos racializados.18 Agora, na terceira década do século XXI, as pesquisas têm feito distinção entre os conflitos decorrentes do processo de imposição do cativeiro daqueles envolvendo a vida sob a escravidão em si, entendendo que a escravização comportava questões de direito diferentes daquelas das relações escravistas posteriores e mais correntes. O novo enfoque na escravização (a entrada no cativeiro) repete a atenção que a alforria (a saída) teve nas últimas décadas. As pesquisas atuais que buscam aferir as fronteiras entre os estatutos têm apontado para o caráter processual da escravização e também da conquista da liberdade. Tanto a escravização quanto a alforria são, agora, melhor entendidas não como eventos pontuais mas como processos, relações que se desenvolveram ao longo do tempo. Esta perspectiva tem revelado condições intermediárias e apontado para uma grande fluidez na combinação entre estatutos e condições. A história social da escravidão e do trabalho já observava, desde os anos 1980, os conflitos em torno dos estatutos das pessoas e a questão das fronteiras entre a escravização legal e ilegal. Mas foi o ramo da história social do direito da escravidão que elegeu esses temas como foco das pesquisas. Esse movimento historiográfico que estamos descrevendo foi viabilizado por um grande investimento de pesquisa voltado às normas que regeram as relações escravistas. A compilação da legislação indigenista e da escravidão africana sedimentou a aproximação em relação 18 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Revisitando a “transição para o trabalho livre”: a experiência dos africanos livres. In: FLORENTINO, Manolo G. (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII–XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 388–417; LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 289–326, 2005; FULLER, Claudia M. Os Corpos de Trabalhadores e a organização do trabalho livre na província do Pará (1838–1859). Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 3, n. 6, p. 52–66, 2011; SAMPAIO, Patricia M. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, vol. I: 1808–1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 175–206, CHALHOUB, Sidney. The Precariousness of Freedom in a Slave Society (Brazil in the Nineteenth Century). International Review of Social History, v. 56, n. 3, p. 405–439, 2011.
19 aos temas do direito que viria em seguida.19 De lá para cá, estudos minuciosos sobre vários dos marcos legais associados à escravização e à emancipação de indígenas e africanos vêm revertendo a narrativa corrente, de um consenso abolicionista. Além dos textos dos alvarás e leis, a correspondência trocada por autoridades, as consultas a órgãos consultivos como o Conselho Ultramarino ou o Conselho de Estado, os projetos preliminares, os debates parlamentares, as campanhas de petição, os conflitos envolvendo a implementação das decisões e os processos judiciais em si permitem analisar cada norma por vários ângulos e considerar, entre outros temas, a participação dos sujeitos de fora dos círculos da administração na constituição do direito. Se, por um lado, ficou exposta a resistência dos sujeitos vítimas da escravização – indígenas, africanos e descendentes – por outro lado, ganhou contorno mais nítido a articulação em defesa da continuação da escravidão, e não uma tendência à abolição. As pesquisas mais recentes passaram a considerar as histórias das instituições, dos conceitos e correntes de pensamento jurídico, dos movimentos constitucionais e mesmo da formação dos operadores do direito. Resultado de um estreito diálogo com historiadores do direito, uma história social do direito da escravidão incorpora sujeitos marginalizados, argumentos proferidos por não-especialistas ou figuras desconhecidas, e propõe que a construção do direito não estava restrita aos gabinetes dos letrados, mas também vinha de baixo, dos conflitos vividos no cotidiano. Além disso, também diferencia os papéis e a atuação dos atores institucionais, sem apresentar o “Estado” como um bloco ou um sujeito autônomo sem face.20 19 FENELON, Dea Ribeiro Fenelon, Levantamento e sistematização da legislação relativa aos escravos no Brasil, Anais do IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História – Trabalho Livre e Trabalho Escravo, São Paulo, 1973, volume II, p. 199–307; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.). Legislação indigenista no século XIX: uma compilação (1808–1889). São Paulo: Comissão Pró-Índio/Edusp, 1992; LARA, Silvia H. (org.), Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (org.), Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica, Colección Proyectos Históricos Tavera, Madrid, 2000; LARA, Silvia H.; SILVA, Cristina Nogueira (org.). Legislação: Trabalhadores e trabalho em Portugal, Brasil e África Colonial Portuguesa. Base de dados. Disponível em: https://www2.ifch.unicamp.br/cecult/lex/ web/ajuda/apresentacao.html. Acesso em: 28 fev. 2023. 20 SCOTT, Rebecca. Paper Thin: Freedom and Re-enslavement in the Diaspora of the Haitian Revolution. Law and History Review, v. 29, n. 4, p. 1061–87, 2011; SCOTT, Rebecca. Social Facts, Legal Fictions, and the Attribution of Slave Status:
20 Nas pesquisas sobre o processo de escravização indígena e africana, é evidente este encontro entre as perspectivas do trabalho e do direito. Desde o período colonial, tanto a escravização indígena quanto a de africanos foi submetida a limites e regulamentações cuja aplicação, embora variável, dava margem a questionamento sobre a legalidade de determinadas práticas. Os estudos sobre a política indigenista elaborada pelas ações da Coroa portuguesa, das missões religiosas, dos moradores e dos grupos indígenas têm escrutinado os conflitos em torno das normas e práticas que visavam garantir o fluxo de recrutamento, por meio de descimentos e resgates, de indígenas trabalhadores para os espaços coloniais. Para os portugueses, por princípio, somente era legítimo escravizar indivíduos capturados em guerra justa ou frutos de “resgate”. Entretanto, as conjunturas da colonização tanto na Amazônia quanto no “Brasil”21 de fato implicaram em proibições e reversões destas restrições, e a criação de justificativas e formulações adaptadas para atender às necessidades dos colonos.22 As pesquisas destacam a preocupação das autoridades com o estabelecimento de regras – mesmo que cambiantes – para dar legalidade The Puzzle of Prescription. Law and History Review, v. 35, n. 1, 9–30, 2017; DIAS PAES, Mariana. Escravidão e direito: o estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860–1888). São Paulo: Alameda, 2019; CANTISANO, Pedro J.; DIAS PAES, Mariana A. Legal Reasoning in a Slave Society (Brazil, 1860–88). Law and History Review, v. 36, n. 3, p. 471–510, 2018; DANTAS, Monica D.; BARBOSA, Samuel (org.). Constituição de poderes, constituição de sujeitos: caminhos da História do Direito no Brasil (1750–1930). Coleção Cadernos do IEB. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 2021. 21 Em 1621, a administração da América portuguesa foi separada entre o Estado do Brasil (com capital passando de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763) e o do Maranhão e Grão-Pará (com capital em São Luís, depois Belém a partir de 1751), desdobrado em dois por volta de 1772: Estado do Maranhão (São Luís) e do Grão Pará (Belém). MORETTI, Luiza. Grão-Pará e Maranhão. In: BiblioAtlas – Biblioteca de Referências do Atlas Digital da América Lusa. Disponível em: http://lhs. unb.br/atlas/Gr%C3%A3o-Par%C3%A1_e_Maranh%C3%A3o. Acesso em: 28 jan. 2023. 22 Foi o caso da “administração particular” identificada por John M. Monteiro em São Paulo entre os séculos XVI e XVII, mas também a formulação do Padre Antonio Vieira de considerar “escravos de condição” os indígenas aprisionados por tropas de resgate supervisionadas por jesuítas, depois da proibição da escravização lançada pela Coroa em 1652; MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; ZERON, Carlos Alberto M. R. Antônio Vieira e os ‘escravos de condição’: os aldeamentos jesuíticos no contexto das sociedades coloniais. In: FERNANDES, Eunícia Barros Barcelos (org.). A Companhia de Jesus e os índios. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 235–262.
21 ao estatuto dos indígenas incorporados ao cenário colonial, fossem livres ou escravos, e a exigência de obediência – essa menos intensa – a essas fronteiras de estatuto. Entre o século XVII e o começo do XVIII, a pressão dos colonos por mão de obra derrubou todas as tentativas da Coroa portuguesa de proibir a escravização de indígenas. Rafael Chambouleyron, Vanice Melo e Fernanda Bombardi detalham o processo na Amazônia. As justificativas para o uso da força contra grupos aliados ou inimigos eram as mesmas que sustentavam a escravização por guerra justa ou resgate: os modos de vida considerados incompatíveis com o catolicismo, a resistência ao trabalho colonial e as violências cometidas por indígenas contra os colonos.23 Os conflitos em torno dos estatutos acabavam chegando às autoridades por diversos meios; no século XVIII, por exemplo, temos notícia deles pela atuação das Juntas das Missões no arbitramento de casos de cativeiro injusto.24 A escravização praticada no continente africano também não passou sem questionamento. As formas de captura, imposição de sujeição e transferência dos africanos pela travessia transatlântica suscitaram debates na era moderna, bem antes do abolicionismo do final do século XVIII. O processo autuado perante o sistema judicial do Vaticano, na década de 1680, pelo centro-africano Lourenço da Silva Mendonça indica a existência de uma articulação entre grupos sujeitos à exploração colonial na África e na América em torno do argumento da ilegalidade da escravização de africanos e da escravidão atlântica.25 Décadas depois, o português Manuel Ribeiro Rocha defendeu que a escravização dos africanos pelos comerciantes e moradores do Brasil não seguia os 23 CHAMBOULEYRON, Rafael; MELO, Vanice Siqueira; BOMBARDI, Fernanda A. O ‘estrondo das armas’: violência, guerra e trabalho indígena na Amazônia (séculos XVIII e XVIII). Projeto História, São Paulo, n. 39, p. 115–137, 2009. Os autores estabelecem diálogo e contraponto ao texto clássico de Beatriz Perrone-Moisés sobre a política indigenista, PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos. Os princípios da legislação indigenista colonial (séculos XVI a XVIII). In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 115–132. 24 MELLO, Márcia Eliane de S. e. Fé e império: as Juntas das Missões nas conquistas portuguesas. Manaus: EDUA, 2007; PRADO, Luma Ribeiro. Cativos litigantes: demandas indígenas por liberdade na Amazônia portuguesa, 1706–1759. 2019. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. Sobre o tratamento dos casos de escravização pelas Juntas, ver o capítulo de Márcia Mello nesta coletânea. 25 NAFAFÉ, José Lingna. Lourenço da Silva Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the Seventeenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 2022.
22 preceitos que permitiriam que fosse legalizada e que, por isso, os africanos teriam direito à restauração de seu estado de liberdade original. Rocha propunha, como solução, que a escravidão dos africanos fosse temporária e fosse um período de educação e instrução na fé católica. Para Silvia Lara, era uma proposta que buscava atender aos direitos canônico e “das gentes”, e tentava conciliar os interesses escravistas com a legalidade, em um momento de intenso debate sobre os limites das prerrogativas senhoriais de alforria, punição e outras.26 Outros estudos recentes apontam para questionamentos da escravização ocorrida ainda nos territórios africanos e provocam a pensar que a legalidade da escravidão dos africanos desembarcados no Brasil poderia ter sido questionada muito antes da proibição do tráfico, mas raramente foi.27 A fluidez das fronteiras da escravidão é evidente nas discussões sobre a legalidade da escravização de grupos inteiros, mas também nos processos em que são discutidos os estatutos de sujeitos específicos. A distinção dos processos judiciais de definição de estatuto – para adotar uma expressão ampla usada por Rebecca Scott – entre ações de liberdade (movidas por pessoas escravizadas visando alcançar a liberdade), ações de manutenção de liberdade (movidas por pessoas livres ou libertas ameaçadas de (re)escravização) e ações de escravização (movidas por supostos senhores visando trazer de volta ao cativeiro pessoas que estavam fora do seu domínio) trouxe um melhor foco para a análise da reescravização e da escravização ilegal, quando tratadas no âmbito cível do judiciário.28 A existência de ações de manutenção de liberdade ou 26 ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. 1758. (Apresentação e transcrição do texto original por Silvia Hunold Lara). Cadernos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, n. 21, 1991. 27 CURTO, José C. The story of Nbena, 1817–20: Unlawful Enslavement and the Concept of ‘Original Freedom’ in Angola. In: LOVEJOY, Paul; TROTMAN, David (org.). Trans-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspora. London: Continuum, 2003. p. 43–64; CANDIDO, Mariana P. African Freedom Suits and Portuguese Vassal Status: Legal Mechanisms for Fighting Enslavement in Benguela, Angola, 1800–1830. Slavery & Abolition, v. 32, n. 3, p. 447–459, 2011; MARQUEZ, John C. Witnesses to Freedom: Paula’s Enslavement, Her Family’s Freedom Suit, and the Making of a Counterarchive in the South Atlantic World. Hispanic American Historical Review, v. 101, n. 2, p. 231–263, 2021; GRINBERG, Keila. The Two Enslavements of Rufina: Slavery, International Relations and Human Trafficking on the Southern Border of Brazil in the 19th Century. Hispanic American Historical Review, v. 96, n. 2, p. 259–290, 2016. 28 GRINBERG, Keila. Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil Imperial. Almanack braziliense, São Paulo, n. 6, p. 4–13, 2007; PINHEI-
23 correlatas desde o final do século XVIII é um indício importante da extensão das tentativas de reescravização de libertos e escravização de pessoas livres. Apesar de não termos ainda levantamento sistemático que possibilite quantificar as ações ajuizadas, as pesquisas têm explorado diversos aspectos revelados por elas. A vulnerabilidade dos libertos à reescravização é o aspecto mais destacado e mais bem documentado nas pesquisas atuais. A reescravização estava prevista nas Ordenações Filipinas (livro IV, t. 63) no caso de ingratidão dos libertos para com os senhores, tendo vigorado no Brasil até 1871, quando a Lei 2.040 (do Ventre Livre), no seu artigo 4º, § 9, anulou essa possibilidade, restringindo, assim, os caminhos legais para a prática da reescravização. Silvia Lara interpretou dois desses casos, originados em Campos de Goitacazes, na segunda metade do século XVIII, como sinal do poder que os senhores mantinham sobre os libertos e a estreita margem de autonomia destes após a alforria.29 Expandindo a pesquisa sobre cativeiros ilegítimos, Fernanda Pinheiro observou que a alforria também era revogada nos casos em que o acordo de coartação não era cumprido e em que os supostos senhores buscavam restaurar o domínio sobre as pessoas que detinham como escravas, mas que por diferentes razões não se encontravam com eles. Segundo a autora, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça da década de 1840 buscaram estabelecer a exigência da abertura de uma ação judicial para a revogação de alforria. Os casos levantados por ela em Mariana, Minas Gerais, apontam para a ampla mediação do judiciário já no início do século XVIII.30 Mary Karasch e Manolo Florentino identificaram revogações de alforria em livros de notas do Rio de Janeiro no século XIX, mas sem indicar se estavam relacionadas a processos judiciais.31 Como RO, Fernanda D. O perigo da reescravização: disputas judiciais de manutenção da liberdade na Mariana setecentista. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 38, n. 79, p. 65–85, 2018a. Mariana Dias Paes apontou que o tipo processual “ação de manutenção de liberdade” só se consolidou na década de 1840, apesar das ações com este objetivo já existirem antes. Ver: DIAS PAES, Mariana. O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil oitocentista. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 58, p. 339–360, 2016. 29 LARA, op. cit, 1988, p. 264–268. 30 PINHEIRO, Fernanda D. Em defesa da liberdade: Libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720–1819). Belo Horizonte: Fino Traço, 2018b, p. 111–173. Para a mudança da década de 1840, ver p. 112, nota 3. 31 KARASCH, op. cit., p. 468–469, FLORENTINO, Manolo. De escravos, forros e fujões no Rio de Janeiro imperial. Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 104–115, 2003.
24 demonstrou Keila Grinberg, as ações visando revogação de alforria por ingratidão tornaram-se menos comuns (e menos socialmente aceitas) ao longo das décadas, até a sua proibição em 1871.32 A maior parte dos casos de reescravização, entretanto, não foi regularizada por vias judiciais e não estava lastreada em ingratidão ou rompimento de acordo. Eles aparecem em ações autuadas muitos anos – por vezes décadas – depois do fato, quando a vítima e seus familiares tiveram a oportunidade de questionar o estatuto nos tribunais. Os argumentos utilizados apontam para desentendimento acerca do cumprimento das condições estipuladas nas alforrias e divergências de interpretações do direito. As alforrias – sobretudo as condicionais – colocavam as pessoas libertas, mesmo que elas fossem adultas, em situação de vulnerabilidade, pois não garantiam o exercício de autonomia e as condições para a posse da liberdade. Continuar trabalhando em arranjos semelhantes ao da escravidão até cumprir as obrigações para a obtenção da plena liberdade implicava permanecer muitos anos numa condição intermediária muito propícia à reescravização. Como a escravização dos filhos nascidos de mulheres libertas durante o cumprimento das condições da alforria era fonte para numerosos processos judiciais, o tema foi debatido no Instituto dos Advogados Brasileiros, na década de 1860, porém sem ganhar uma solução definitiva.33 Os casos de reescravização de libertos foram muito frequentes e sugerem uma incidência diferenciada da escravização ilegal sobre meninas e mulheres.34 Casos de escravidão em condomínio ou de alforria pela metade 32 GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silvia H.; MENDONÇA, Joseli M. N. (org.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios de história social. Campinas, Editora da UNICAMP. 2006, p. 101–128. 33 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas: Ed. UNICAMP/CECULT, 2001. p. 71–144; ESPÍNDOLA, Ariana Moreira. Papéis da escravidão: a matrícula especial de escravos (1871). 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2016, p. 161–191. 34 Ver, entre outros, ESPÍNDOLA, op. cit., p. 23–26, 40–43; PINHEIRO, op. cit, 2008b, p. 175–192; DAMASCENO, Karine T. Uma fugitiva em família em busca de liberdade na “cidade da feira”. Afro-Ásia, Salvador, v. 64, p. 183–219, 2021; para a África oriental, ver MCMAHON, Elisabeth. Trafficking and Reenslavement: The Social Vulnerability of Women and Children in Nineteenth-Century East Africa. In: LAWRANCE, Benjamin; ROBERTS, Richard (org.). Trafficking in Slavery’s Wake: Law and the Experience of Women and Children in Africa. Athens: Ohio University Press, 2012. p. 29–44.
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