Coronelismo e milícias no sul do Brasil

CORONELISMO E MILÍCIAS NO SUL DO BRASIL Casa Leiria Cristina Dallanora

Este livro de Cristina consegue fazer importantes conexões entre conflitos locais, regionais e nacionais, estabelecendo um verdadeiro jogo de escalas que possibilita a inteligibilidade dos conflitos que se processaram neste território. O trabalho tem inúmeras contribuições inéditas, baseadas em pesquisa em vários acervos documentais. Com esta obra temos condições de avaliar os problemas e perigos da fronteira, a circulação de indivíduos, ideias e mercadorias pelos diferentes estados do sul, o protagonismo de pequenos posseiros, ervateiros e colonos. A influência platina e a cultura política do planalto. Embora seja originalmente uma tese de doutorado, sua leitura é acessível ao público não acadêmico pelo fato de possuir uma redação de leitura direta, acompanhando a trajetória de alguns indivíduos que são fundamentais para o conhecimento do território, personagens que atuaram antes, durante e depois da Guerra do Contestado.

CRISTINA DALLANORA Casa Leiria São Leopoldo/RS 2023 CORONELISMO E MILÍCIAS NO SUL DO BRASIL

CORONELISMO E MILÍCIAS NO SUL DO BRASIL Cristina Dallanora DOI: https://doi.org/10.29327/5385295 Fotos da capa: Claro Jansson. Para citar esta obra (ABNT): DALLANORA, Cristina. Coronelismo e milícias no sul do Brasil. São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Dallanora, Cristina D145c Coronelismo e milícias no sul do Brasil [recurso eletrônico]. / por Cristina Dallanora. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/acervo/ historia/coronelismo/index.html> ISBN 978-85-9509-9509-106-1 1. História – Brasil. 2. História – Brasil – Guerra do Contestado. 3. Coronelismo – História – Brasil. 4. Milícias – História – Brasil. I. Título. CDU 981 981: 321.1

Para Paulo e Viviani

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 7 AGRADECIMENTOS Aos queridos professores Paulo Pinheiro Machado e Viviani Poyer, respectivamente pela orientação e pela contribuição ao desenvolvimento da tese defendida em 2019, na Universidade Federal de Santa Catarina, que originou este livro. Durante os anos de pesquisa, contei com o diálogo de colegas e professores que se tornaram amigos. Agradeço as contribuições de Patrícia Geremias, Clemente Penna, Flávia Paula Darossi, Janaína Neves Maciel, Maria Aparecida Anacleto, Beatriz Gallotti Mamigonian, Giovanni Levi, Henrique Espada Lima, Yohana Junker, Mariana Armond Dias Paes, Débora Torres, José Carlos Radin, Rogério Rosa Rodrigues, Gabriel Barboza e João Felipe Morais. Ao Marcos Martins e à Cristiane Pscheidt, agradeço a edição do mapa das rotas das forças armadas em conflito. Ao Rodrigo Dal Forno, o diálogo sobre as fontes acerca do bandoleirismo nos anos 1920. Ao professor Rogério, pelas reflexões que me fizeram entender os rumos que minha pesquisa seguiu em torno da formação das milícias no Sul do Brasil. Aos grupos de pesquisa que integro – Grupo de investigação sobre o movimento do Contestado e INCT Proprietas: História Social das Propriedades e Direitos de Acesso –, agradeço o imenso aprendizado possibilitado pelos encontros e pelas discussões. Agradeço às professoras Márcia Maria Menendes Motta e Marina Monteiro Machado, pelo incentivo e atenção dedicados ao longo dos Simpósios de História Rural da ANPUH. Agradeço aos funcionários do Museu do Judiciário Catarinense, Orivalda Lima Silva, Cristina Cintra, Jaqueline Amaral e Sandro Makowiecki; a Niri, do Arquivo Público de Campos Novos, ao Alvarito Baratieri da Biblioteca da UNOESC, e a Marilú Edi Mattos, do Cartório de Joaçaba, ao Nailor Novaes Boianovsky e Daiane Antonini Bortoluzzi, do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, à Tamara Nolasco, da Biblioteca Central.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 8 De forma muito especial, agradeço ao Celso Martins (in memoriam) e à Margaret Grando por me receberem no início desta pesquisa e conversarem sobre a trajetória de Fabrício das Neves, chefe rebelde que se debruçaram a estudar e que também é analisado nessa tese. Pela colaboração através de entrevistas, agradeço ao Edson Nelson Ubaldo (in memoriam), Breno Poyer (in memoriam), Adgar Bittencourt (in memoriam) e Leda S. Kerber. Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), que viabilizou importantes três anos de estudo e pesquisa e o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que viabilizou esta publicação.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 9 SUMÁRIO 11 Apresentação 13 Introdução 22 Capítulo 1 – Uma região assolada pelos movimentos revolucionários e pelo banditismo 23 1.1 O pós-Contestado: remanescentes, fronteiras e levantes 27 1.2 Os conflitos locais 29 1.3 A região do Contestado e as questões de limites 40 1.4 Desdobramentos do Acordo de Limites de 1916 66 Capítulo 2 – O movimento de José Fabrício das Neves: insubmissão e incertezas no sertão 67 2.1 José Fabrício das Neves e Marcelino Ruas 69 2.2 Instabilidades políticas na Primeira República 75 2.3 O Exército na política e os vaqueanos no Exército 78 2.4 Batalhões Patrióticos 83 2.5 Batalhões patrióticos em Cruzeiro 93 2.6 Em “operação de guerra” ou “em desobediência” 99 2.7 Acampamento em Palmas 115 2.8 Fabrício das Neves 124 2.9 Marcelino Ruas 135 2.10 Chefes menores, arregimentação e deserção 142 Capítulo 3 – Atuação das chefias políticas e militares na fronteira catarinense 144 3.1 O Levante de 1917 150 3.2 O Levante de abril de 1922 173 3.3 Fabrício Vieira e a Revolução de 1923 182 3.4 Fabrício Vieira 184 3.5 O Levante de 1924 e a Coluna Prestes (1925-1927) 193 3.6 Assalto às estações de jararaca-canoinhas ou movimento revolucionário de 1927

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 10 201 Capítulo 4 – Outros levantes no Meio Oeste catarinense 203 4.1 Levante dos posseiros em Catanduvas 212 4.2 Levante dos posseiros na propriedade Rancho Grande 219 4.3 Posseiros e proprietários regularizados contra a EFSPRG 223 4.4 Vivaldino Silveira de Ávila 235 Considerações finais 242 Referências 261 Anexo A – Mapa marcando as estações à esquerda do Rio do Peixe, em 1911 262 Anexo B – Planta das chácaras do Patrimônio Municipal de Cruzeiro 263 Anexo C – Relação das testemunhas arroladas no Inquérito de Fabrício das Neves 265 Anexo D – Relação das testemunhas arroladas no processo do Levante de Abril de 1922 268 Anexo E – Mapa marcando o itinerário do 2º Bat. Inf. Catarinense na Campanha de 1924/1925 e o itinerário da Coluna Prestes em 1925/1926

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 11 APRESENTAÇÃO O presente livro de Cristina Dallanora preenche uma lacuna historiográfica nos estudos sobre o Sul do Brasil, como um todo, e o oeste de Santa Catarina, em particular. O movimento do Contestado (1912-1916) possui mais de cem anos de uma historiografia abundante e diversificada, de igual maneira podemos considerar sobre os estudos variados a respeito da colonização do oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná a partir dos anos 1930, colonização esta praticada por descendentes de imigrantes europeus das colônias antigas do Rio Grande do Sul. Mas a década de 1920 há uma grande lacuna, apresentando muito poucos estudos sobre estes territórios. Como resultado do movimento do Contestado e da guerra que levou à liquidação das “Cidades Santas”, o planalto e o meio-oeste catarinenses viveram um longo período de instabilidade social e política. A crise agrária, existente antes da guerra, sofreu diferentes desdobramentos, principalmente depois da criação dos novos municípios de Chapecó e Cruzeiro, com o crescimento dos conflitos a oeste do rio do Peixe, na parte dos antigos Campos de Palmas que passaram à administração catarinense depois de 1917. Os proprietários norte-americanos da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, e sua subsidiária Lumber and Colonization, continuaram a grilar terras habitadas por posseiros e até por proprietários de terras regularizadas. Os poderes do Estado de Santa Catarina sobre os novos territórios incorporados ainda eram muito limitados. O governo de Florianópolis não dispunha de uma máquina administrativa e de orçamento suficientes para agregar e construir o domínio político-administrativo de forma organizada nos novos territórios. As distâncias e dificuldades de acesso ao oeste faziam com que a nomeação de autoridades públicas fosse um problema. Desta maneira, fica evidente que o aparelho de Estado precisava operar na região apelando ao apoio de chefias locais, de fazendeiros e oficiais da antiga Guarda Nacional, que empregaram seus homens armados como

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 12 vaqueanos, uma tropa auxiliar de civis ao exército. O poder estadual só conseguia agir no território recorrendo às forças informais que eram os poderes locais efetivos. As forças armadas de vaqueanos civis começaram a ser empregadas durante a repressão à Revolução Federalista (1893-95) e depois foram incorporadas ao exército na repressão às “Cidades Santas”, principalmente nos anos de 1914 e 1915, na Guerra do Contestado. Passado o conflito sertanejo, na década de 1920, os vaqueanos continuaram atuando no planalto, ora a serviço de forças dos governos estaduais de Paraná e Santa Catarina, ora a serviço de grupos insurgentes, como os Assisistas ou Borgistas gaúchos (da Guerra de 1923), os Tenentes rebeldes, nos levantes de 1922 e 1924, ou simplesmente agiam em benefício próprio, no contrabando com a fronteira argentina ou na apropriação ilegal de terras públicas. Muitos destes chefes participaram dos levantes em favor da criação do Estado das Missões. Este livro de Cristina consegue fazer importantes conexões entre conflitos locais, regionais e nacionais, estabelecendo um verdadeiro jogo de escalas que possibilita a inteligibilidade dos conflitos que se processaram neste território. O trabalho tem inúmeras contribuições inéditas, baseadas em pesquisa em vários acervos documentais. Com esta obra temos condições de avaliar os problemas e perigos da fronteira, a circulação de indivíduos, ideias e mercadorias pelos diferentes estados do sul, o protagonismo de pequenos posseiros, ervateiros e colonos. A influência platina e a cultura política do planalto. Embora seja originalmente uma tese de doutorado, sua leitura é acessível ao público não acadêmico pelo fato de possuir uma redação de leitura direta, acompanhando a trajetória de alguns indivíduos que são fundamentais para o conhecimento do território, personagens que atuaram antes, durante e depois da Guerra do Contestado. Florianópolis, 26 de maio de 2023. Paulo Pinheiro Machado Professor Titular do Departamento de História da UFSC.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 13 INTRODUÇÃO Este livro conta a história de alguns conflitos que caracterizam o processo histórico da ocupação da região de fronteira agrícola de Santa Catarina durante a Primeira República, no território do chamado ex-Contestado. O enfoque espacial abrange parte da região em que se desenrolou a Guerra do Contestado (1912-1916), considerada um dos maiores movimentos sociais rurais do Brasil republicano, que abrangeu mais de 20 mil km² e envolveu cerca de 110 mil habitantes que viviam no Planalto e Meio Oeste catarinense.1 Abarca, principalmente, a região a oeste do Vale do Rio do Peixe, que pertencia aos Campos de Palmas, onde foi construído o Ramal Sul da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG). Fruto da tese de doutorado, defendida na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2019, é um estudo da atuação das chefias civis, políticas e militares no Meio Oeste catarinense durante a década de 1920 que buscou analisá-las e compreendê-las, a partir das suas próprias estratégias em um contexto de interiorização das instituições do Estado. A hipótese da qual partimos é a de que essas chefias buscavam garantir seu lugar social em meio a profundas transformações político-jurídicas que envolveram o processo de colonização desse território com o estabelecimento das funções oficiais do Estado, anteriormente por eles desempenhadas. Embora este estudo esteja voltado para a década de 1920, foi inevitável recorrer às primeiras décadas do período republicano, momento em que estavam sendo colocadas em prática importantes mudanças político-jurídicas e administrativas que impactaram e repercutiram nas experiências sociais do pós-Contestado. É importante destacar que a expressão pós-Contestado é utilizada para definir o período posterior à Guerra do Contestado e à assinatura do Acordo de Limites de 1916. E, a expressão “região do ex-Contestado” ou “território do ex-Contestado” aparece nos 1 MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Unicamp , 2004.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 14 relatórios de governo e jornais da época tanto para definir o espaço geográfico em que se desenrolou o movimento sertanejo, incluindo o Planalto e Meio Oeste catarinense, como para se referir à fronteira onde se estabeleceram os limites entre Paraná e Santa Catarina entre os Vales do Rio do Peixe e, ao norte, nos Vales do Rio Iguaçu e do Rio Negro. A pesquisa se apoiou principalmente nos documentos produzidos pela Justiça e pelo governo brasileiro: processos judiciais e relatórios de governos. Por meio delas, investigamos o papel de dois principais chefes locais – José Fabrício das Neves e Manoel Fabrício Vieira –, nos conflitos sociais no ex-Contestado, em uma época em que se redefinia a forma de ocupação do território catarinense passados poucos anos da Guerra do Contestado e da definição das fronteiras entre os estados do Paraná e Santa Catarina. Os documentos trouxeram à tona conflitos com a participação de forças do Exército e combatentes civis em diferentes municípios, com problemas específicos de cada região. O município de Cruzeiro, anexado ao estado catarinense com o Acordo de Limites de 1916, passava por um intenso processo de colonização. Na fronteira norte do estado, havia disputas políticas de caráter emancipacionista desde o início da década de 1900. Na década de 1920, chefes locais aderiram à Reação Republicana – representada por Nilo Peçanha, em oposição a Artur Bernardes, apoiado pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais –, portanto, contrários às facções oligárquicas nacionalmente dominantes e, principalmente, protagonizaram os momentos iniciais dos movimentos tenentistas que estouraram a partir de 1922. Além da documentação judicial, a pesquisa nos periódicos da época mostrou a forma como a sociedade interpretava esses conflitos. A busca sobre esses acontecimentos na imprensa, majoritariamente noticiadas pelos jornais governistas do Partido Republicano de diferentes estados, referiam-se aos envolvidos nos mesmos termos das fontes judiciais, “bandidos” e “revoltosos” que impediam a paz no ex-Contestado. O vocabulário da imprensa governista reverberava os registros das fontes oficiais, onde o banditismo no Oeste Catarinense era transformado em uma questão central a ser combatida pelos governos. Porém, essa questão abarcava diferentes sujeitos, ora enquadrados como bandidos ora considerados aliados do governo e até mesmo parte do quadro político local e estadual. Isso nos colocava diante de

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 15 uma década bastante complicada na fronteira catarinense e no âmbito nacional, quando chefes políticos e militares eram jogados de um lado ao outro da lei, dependendo da sua atuação ao lado do governo ou na oposição. Os jornais locais utilizavam recorrentemente os termos “coronel” e “caudilho” para se referir às chefias envolvidas nos conflitos, denotando respeito ou questionando seu reconhecimento e prestígio.2 Das fontes judiciais, arquivadas no Museu do Judiciário Catarinense, em Florianópolis, seguimos para as fontes locais, na antiga sede da Comarca de Cruzeiro, atual Joaçaba e no município de Campos Novos, acreditando encontrar mais detalhes referentes aos conflitos que envolveram Fabrício das Neves, no Irani e Fabrício Vieira, no Levante de Abril de 1922. E, dessa forma, inserir os conflitos aqui tratados em seu contexto local. No Fórum Municipal de Joaçaba, antiga Limeira e sede do município de Cruzeiro e na biblioteca da Universidade do Oeste de Santa Catarina, localizamos os processos judiciais que envolviam a disputa de terra. A partir deles, rastreamos os indivíduos que foram acionados na Justiça pela Companhia da Estrada de Ferro, entre eles Vivaldino Silveira d’Avila e Luiz Poyer, a fim de que deixassem suas terras diante do processo de colonização organizado pela Companhia. Coincidentemente, esses indivíduos guardavam importantes relações com aqueles chefes e evidenciavam outros, nos conflitos deflagrados ajudando a reconstruir o contexto do pós-Contestado. Mais informações sobre os conflitos naquele período encontramos nos registros de memorialistas locais. José Waldomiro Silva, que serviu de escrivão em vários dos processos analisados, publicou, no final da sua vida, as memórias sobre conflitos que vivenciou no Meio Oeste.3 Ao registrar a memória local e socializar através dos “causos” ouvidos ou presenciados sobre a sua terra, é importante considerar que o memorialista pode reproduzir a visão oficial do que se projetava para o território do ex-Contestado. Exemplo disso é o fato de o autor considerar 2 É importante pontuar que o termo “coronel” tem sua referência inicial na mais alta patente fornecida pelo Governo Imperial a membros da Guarda Nacional, extinta em 1922. Além dos que realmente ocupavam o cargo de coronel na Guarda Nacional, o tratamento começou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe político, a exemplo dos coronéis aqui em questão (MAGALHÃES, Basílio apud LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 241). 3 SILVA, José Waldomiro. O Oeste Catarinense: memórias de um pioneiro. Florianópolis: edição do autor, 1987.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 16 a presença da ferrovia como porta-voz do “progresso” da região antes “despovoada e inóspita”, sendo a sua construção a responsável pelo desenvolvimento do Vale do Rio do Peixe, onde passou a maior parte da sua vida. Não há, portanto, a problematização dos fatos e das fontes de que se serviu para narrar suas memórias, ou seja, da história problema que Marc Bloch ressaltou.4 Por isso, é importante analisá-las dentro das circunstâncias em que foram produzidas e entender que Waldomiro Silva e outros memorialistas reproduzem a memória predominante da nova onda de colonização pela qual passava a região. Essa ressalva também vale para os registros dos militares sobre os conflitos narrados entre os rebeldes tenentistas e as forças governistas que envolveram a passagem por Santa Catarina. O envolvimento do Exército na política, desde o tenentismo dos anos 1920 até os anos de 1950, surtiu numa série de publicações de livros de memórias. As memórias desses oficiais devem ser separadas entre os que escreveram durante os conflitos deflagrados, ao calor do movimento, e os que escreveram posteriormente. Entendemos que a memória se constitui como objeto de disputa em conflitos sociais e principalmente em conflitos que opõem grupos políticos.5 A historiografia militar sobre o tenentismo menciona, pontualmente, a participação de chefes civis-vaqueanos no ex-Contestado, desde o primeiro Levante de Abril de 1922, movimento precursor e anterior ao levante Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, que só ocorreu em 5 de Julho deste mesmo ano. Esse levante uniu as reivindicações locais e nacionais, pela emancipação do território do Estado das Missões e relacionadas à insatisfação com a política vigente. Fabrício Vieira, que serviu como vaqueano na Guerra do Contestado, foi um dos implicados. Dessa forma evidenciamos a atuação dos vaqueanos – denominação que durante guerra designava os civis armados pelas autoridades para combater os sertanejos rebelados –, na década de 1920, quando civis armados em batalhões patrióticos apoiavam as forças do governo contra os tenentes insurgentes, em 1924. Essas forças eram compostas por militares e civis sobre os quais temos poucas informações 4 BLOCH, Marc. Apologia da história, ou O ofício do historiador. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 5 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. p. 202.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 17 no pós-Contestado. Mesmo assim, os raros registros que chegaram até nós carregam indícios que possibilitam o acesso ao que os personagens remanescentes do movimento do Contestado fizeram depois da guerra e nos levam a inúmeros enlaces entre as chefias nos conflitos políticos e militares durante o processo de colonização no ex-Contestado, produzindo possibilidades históricas, enriquecendo a análise.6 A Questão de Limites e a presença da ferrovia que margeia ao Rio do Peixe, acirrava ainda mais a disputa pelo território a oeste do Rio do Peixe, somados aos interesses econômicos na região rica em erva-mate, madeira e uma bacia hidrográfica favorável ao escoamento da produção para o Prata. A ferrovia estava sob a responsabilidade da Companhia EFSPRG, do grupo estado-unidense Farquhar, que detinha a maior parte da malha ferroviária do Brasil. A Companhia também ficava responsável pela colonização da região, que deveria seguir prazos para a demarcação das terras recebidas por concessão do governo brasileiro. Nesse processo, a empresa Brazil Railway Company criou subsidiárias que atuaram tanto na colonização como na indústria madeireira.7 As relações entre antigos fazendeiros e coronéis com seus subordinados sofreram mudanças que impactaram o modo de vida, as relações comerciais e de sustento que vinham praticando no ex-Contestado.8 O Vale do Rio do Peixe era parte do sul dos Campos de Palmas e foi cortado quase inteiramente pela ferrovia.9 A historiografia militar 6 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989. 7 Sobre o impacto do capital estrangeiro cf.: CAVALLAZZI, Rosângela. Contestado: Espaço do camponês...2003. Estudos subsequentes aprofundaram a discussão focando, por exemplo, nas atividades da Lumber, dos turmeiros da estrada de ferro e trabalhadores da serraria. Cf.: VALENTINI, Delmir. Memórias da Lumber e da guerra do contestado. Chapecó: UFFS, 2015; ESPIG, Márcia Janete. Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande (1908-1915). Pelotas: UFPel, 2011; TOMPOROSKI, Alexandre Assis. O polvo e seus tentáculos: a Southern Brazil Lumber and Colonization Company e as transformações impingidas ao planalto contestado, 1910-1940. 2013. 282 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. 8 MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974. 9 O Ramal Sul, partia de Ponta Grossa, no Paraná, e ligava Porto União ao Rio Uruguai. Os trilhos da ferrovia margearam o Rio do Peixe, que servia de limites entre as Províncias do Paraná e de Santa Catarina. No sentido norte, seguia até Itararé, em São Paulo, estrada que ficava a caminho de Sorocaba, onde acontecia a maior feira de compra e venda de

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 18 contemporânea ao movimento sertanejo, tornava homogêneo todo o espaço e os problemas ocorridos, e foi tomada por muito tempo como a única fonte sobre a questão de terras na região. Nas últimas três décadas, a historiografia do Contestado contribuiu para entender a complexidade da saliência do sul dos Campos de Palmas.10 As pesquisas que incidiram maior atenção sobre o Vale do Rio do Peixe constataram, por exemplo, o impacto do capital estrangeiro no processo de institucionalização da propriedade privada da terra11 e a atuação das companhias colonizadoras no processo da colonização.12 Um aspecto fundamental no processo de transformação da terra em propriedade privada no Brasil diz respeito à transferência da responsabilidade de legislar sobre as terras chamadas devolutas, do Governo Federal para os estados, incluindo o processo de demarcação. No território do ex-Contestado, isso não ocorreu, ficando por conta da empresa estrangeira, dos especuladores de terras e dos interesses estrangeiros na região e nas mãos de poderes locais o encargo. Como consequência, na década de 1920, diversos posseiros e proprietários regularizados processaram individualmente a EFSPRG, que dominava o entorno da ferrovia no trecho do Meio Oeste – linha União da Vitória em direção ao Rio Uruguai. Por um lado, os posseiros, diante desse processo, acabavam por perdê-las e o poder estatal contribuía para este processo, não apenas delegando à empresa estrangeira a demarcação das terras, mas não interferindo nas alianças entre políticos e grandes fazendeiros preocupados em aumentar seus domínios.13 Por outro, ficaram registrados os levantes de posseiros que resistiram à sua exclusão do processo de direito e acesso à terra em que um pequeno número de novos proprietários passou a controlar uma grande quantidade de terras. Assim, no início da Repúmuares do Brasil – a Feira de Sorocaba, que foi importante até a década de 1890, quando começou a declinar. Cf. ESPIG, Márcia Janete. Personagens do Contestado.... 2011. 10 MACHADO, Paulo Pinheiro. O Campesinato na fronteira Sul. In: ZARTH, Paulo Afonso; SILVA, Claiton Marcio da. História do campesinato na fronteira sul. Porto Alegre: Letra & Vida, 2012. p. 22-27. 11 CAVALLAZZI, Rosângela. L. Contestado: espaço do camponês... 2003. 12 NODARI, Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no Oeste de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009; e RADIN, José Carlos. Companhias colonizadoras em Cruzeiro: representações sobre a civilização do sertão. Florianópolis, 2006. 212 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. 13 CAVALLAZZI, Rosangela L. Contestado: espaço do camponês... 2003. p. 70.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 19 blica, a reafirmação dessa situação acabava por agravar o problema da distribuição de terras na região, resultando na concentração fundiária.14 A historiografia mais recente no ex-Contestado, apresenta um contraponto às imagens da colonização associada à “modernização” e dos sertanejos ao “atraso” e auxiliam a aprofundar problemas de pesquisas ligados à atuação das chefias locais envolvidas no processo de colonização da região. O estudo sobre a formação e atuação das chefias caboclas durante a Guerra, ajudou na reconstrução das trajetórias de chefias rebeldes, como Fabrício das Neves e Antônio Palhano, e a identificar as alianças que permaneceram, as que mudaram e suas relações com o Exército no pós-Contestado.15 As pesquisas sobre as Forças Armadas evidenciaram que a contratação de civis-vaqueanos pelo Exército para desarticular os redutos nos quais estavam reunidos os caboclos foi fundamental para o massacre que pôs fim ao conflito sertanejo. Essa estratégia, no entanto, era criticada por oficiais militares que entendiam que os civis trocavam de lado dependendo da necessidade ou serviam de espiões para o lado oposto.16 Nesse mesmo período, estava em curso a modernização do Exército. Ironicamente, os casos de insubordinação, os delitos e os crimes cometidos contra a população civil contrariavam a imagem que se pretendia construir das Forças Armadas como coesa e organizada, além da tentativa de mobilizar modernos equipamentos bélicos e estratégias de guerra que não condiziam com a realidade nos campos de batalha.17 Além disso, muitos dos combatentes ao lado do exército alçaram a importantes cargos ao final da Guerra. O general Fernando Setembrino de Carvalho, que esteve no comando do conflito, entre 1914 e 1915, tornou-se Ministro da Guerra em 1922, quando as forças do governo combatiam os tenentes.18 Na década de 1920, é importante considerar 14 RADIN, José Carlos. Companhias colonizadoras em Cruzeiro... 2006. p. 50. 15 MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado... 2004. 16 McCANN, Frank D. Soldados da Pátria: história do exército brasileiro, 1889-1937. São Paulo: Cia das Letras, 2007. 17 RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestado e a modernização do Exército Brasileiro. 2008. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, p. 22. 18 RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestado e a modernização do Exército Brasileiro. 2008. 460 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 20 o papel dos oficiais subalternos durante o movimento tenentista, pois os tenentes pouco teriam conseguido sem o apoio dos sargentos, chefes menores que estavam mais diretamente ligados ao controle da tropa.19 Após a guerra, percebemos que a mudança de lado por parte dos civis-vaqueanos e militares nos conflitos analisados era prática recorrente. Além disso, as formas de segurança pública e privada se confundiam, passando pela contratação de forças civis pelo estado e pela autonomia de civis frente aos chefes militares de alta patente. De um lado, as antigas lideranças rebeldes do movimento do Contestado passaram, na década de 1920, para o lado das forças do governo e, de outro, os antigos chefes vaqueanos que serviram anteriormente como braço do Exército, aliaram-se às forças rebeldes dos tenentes insurgentes. Apesar da historiografia do Contestado e do Exército constar que chefes militares e civis-vaqueanos continuaram a atuar na região, há um silenciamento no que diz respeito a sua atuação no pós-Contestado. O que esta pesquisa mostra é que houve significativa mudança nas formas de atuação das chefias locais que se cruzam com a atuação de posseiros na defesa de suas terras, evidenciando novas alianças. Nos conflitos do pós-guerra, sabemos que muitos caboclos remanescentes estão presentes, embora raramente as fontes mencionem seus nomes. A população estava fortemente armada e os crimes eram recorrentes, sendo a violência um meio frequente na resolução dos problemas pessoais. O coronelismo nesse território de fronteira é uma das questões desse estudo. Sua discussão é ampla na historiografia e nas ciências sociais, e o seu conceito não possui uma única definição. Nas recém-criadas Comarcas de Cruzeiro e Chapecó, o coronelismo tinha suas especificidades devido a dois fatores: primeiro, os órgãos do Estado estavam chegando na região, ou seja, ainda não havia uma regulamentação oficial, definida a partir “de cima”; segundo um contexto de eleição ainda estava se formando para podermos considerar esse efeito. O que se pode evidenciar é uma relação de interdependência entre políticos ligados às antigas oligarquias paranaense e catarinense e coronéis que já atuavam na região, conforme os estudos anteriores apontaram.20 A abordagem 19 CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 20 Da parte da historiografia catarinense cf.: CAVALLAZZI, Rosângela L. Contestado: Espaço do camponês... 2003; NODARI; Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas... 2009; MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado... 2004; RADIN, José Carlos.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 21 de Leal reduziria as especificidades e as transformações ocorridas na fronteira de expansão catarinense em que os coronéis atuaram. A nova leitura que faço do Coronelismo, considerando a análise da atuação “Batalhões Patrióticos” numa situação de fronteira, onde havia o envolvimento com vários pontos de instabilidade, no Meio Oeste e no Planalto Norte catarinense é de que a supremacia dos coronéis com suas milícias financiadas pelo Exército durante a Guerra do Contestado transformou-se, posteriormente, em alianças oportunistas, até mesmo realizadas por antigos rebeldes. Em meio ao processo de colonização do ex-Contestado, os coronéis precisaram negociar seu espaço de atuação diante das instituições oficiais implantadas pelo estado. Enquanto aconteciam os movimentos de Fabrício das Neves e Fabrício Vieira, associados ao tenentismo e às questões da política estadual e nacional, outros levantes ocorreram no mesmo período, relacionados diretamente aos conflitos de terras no âmbito local. Nem por isso, estes casos ficaram circunscritos ao município de Cruzeiro. Estudamos os levantes dos posseiros em 1921, identificando a participação de outras chefias civis e políticas que explicitavam diferentes noções de direito a terra num contexto em que estava se impondo a noção de propriedade moderna, demarcada e registrada em cartório, como a conhecemos hoje. Nesse período tramitava na justiça o litígio judicial entre posseiros e a Companhia da Estrada de Ferro São Paulo- -Rio Grande. Percebe-se que a indefinição dos limites das posses disputadas levava à possibilidade de alterar o domínio de um lugar para o outro, ou alegá-lo. As fontes cartográficas foram usadas pontualmente para mostrar como a Companhia ferroviária estava registrando o território que assumira a responsabilidade de colonizar. A partir desses conflitos, procurou-se demonstrar como a propriedade caracteriza-se por uma construção social com a interação de diferentes agentes sociais. Companhias colonizadoras em Cruzeiro. 2006; MARTINS, Celso. O mato do tigre e o campo do gato: José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 22 CAPÍTULO 1 – UMA REGIÃO ASSOLADA PELOS MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS E PELO BANDITISMO Após o Acordo de Limites de 1916, o território do ex-Contestado foi parcialmente incorporado ao estado de Santa Catarina, fazendo com que a sua extensão territorial aumentasse significativamente. Nele foram criadas as comarcas de Cruzeiro, Chapecó, Mafra e Porto União, que naquele período formavam o Oeste catarinense. Nas saliências do Vale do Rio do Peixe, atual Meio Oeste, e em Porto União, no atual norte do estado, desenrolou-se o movimento social do Contestado (1912-1916) e uma série de levantes armados no decorrer da década de 1920. A região contestada passou por inúmeros períodos de disputas de fronteiras, que não se restringiram ao aspecto geográfico, mas também abarcaram os âmbitos político, social e econômico. Este capítulo contextualiza a disputa de limites entre Paraná e Santa Catarina e analisa os desdobramentos a partir da assinatura do Acordo de Limites, em 1916. Para a construção desse contexto, que não está dado a priori, é importante uma compreensão acerca do ambiente político local, considerando: os projetos de colonização em curso; a presença da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e suas subsidiárias também ligadas à colonização; a ocupação legal e ilegal da terra; os levantes envolvendo posseiros e prepostos da Companhia; e a atuação dos chefes civis-vaqueanos. No ambiente político local, analisaremos a atuação de coronéis, que pouco aparecia no cenário estadual ou nacional, associada com as suas práticas locais no pós-Contestado. No ambiente político mais amplo, identificaremos suas relações políticas com as oligarquias dos estados fronteiriços do Rio Grande do Sul e do Paraná, no intuito de se aproximar da dinâmica social que influenciou nas formas de ocupação territorial responsáveis por configurar o Oeste Catarinense. Além de apresentar a região, este capítulo trata dos efeitos da guerra, do Acordo de Limites e da comercialização da terra na região do Contestado, especialmente no Vale do Rio do Peixe, que foi atravessado

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 23 em quase sua totalidade pela Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG), na década de 1910, posteriormente usada estrategicamente para a deflagração da Revolução de 1930. 1.1 O PÓS-CONTESTADO: REMANESCENTES, FRONTEIRAS E LEVANTES Em 1929, Adolpho Konder era governador do estado de Santa Catarina, pelo Partido Republicano Catarinense (PRC), quando teve grande repercussão a “viagem de 1929”. Após 12 anos desde o Acordo de Limites de 1916, que estabeleceu as fronteiras territoriais entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, essa foi propagandeada como a primeira vez que um governador catarinense marcou presença no Oeste, acompanhado por indivíduos que trabalharam no registro e na publicização do evento. Essa viagem tinha um caráter oficial e estratégico de reconhecimento do Oeste e Extremo Oeste Catarinense. A interiorização do estado por meio de representantes do poder público num território para eles ainda desconhecido, conforme Josiane Oliveira, “[…] foi um ato político e público, realizado no afã de ‘tomar posse’.”21 Vários apontamentos e observações da viagem foram publicados no jornal República, publicação oficial do PRC, por um de seus acompanhantes e também chefe de Polícia do Estado, Arthur Ferreira da Costa.22 Posteriormente, foram reunidas e publicadas no Rio de Janeiro, no mesmo ano da viagem, em 1929, com o título “O Oeste Catharinense – visões e sugestões de um excursionista”.23 Na breve apresentação do texto, a viagem é descrita como “a verdadeira bandeira”, cujas conquistas não eram de terras, mas de “[…] populações brasílicas que se estavam desnacionalizando, pelo abandono completo em que viviam, sem a mínima ligação com a nossa pátria.”24 Ao longo do texto, não há 21 CENTRO DE ORGANIZAÇAO DA MEMÓRIA SÓCIO-CULTURAL DO OESTE DE SANTA CATARINA (CEOM). A viagem de 1929: oeste de Santa Catarina: documentos e leituras. Chapecó: Argos, 2005. p. 7. 22 Além de chefe de polícia no mandato de Adolpho Konder, Arthur Ferreira da Costa teve uma longa carreira política como deputado estadual (entre os anos 1913-1915; 1922-1924; 1925-1927; 1928-1930 e 1935-1937). (PIAZZA, Walter (org.). Dicionário Político Catarinense. Florianópolis: Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1994.). 23 COSTA, Arthur Ferreira da. O oeste catharinense: visões e sugestões de um excursionista. Rio de Janeiro: Villas Boas & Cia, 1929. 24 Ibid., p. 23.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 24 menção à Guerra do Contestado, aos milhares de sertanejos mortos e remanescentes expropriados, mas sim ao potencial econômico da região. A respeito dessa viagem, Ferreira da Costa assim se manifestou: A visão pessoal do presidente [de estado] permitiu uma serie de medidas conducentes à implantação da ordem, ao respeito às leis, ao fomento econômico, à civilização, enfim, de uma região assolada pelos movimentos revolucionários e pelo banditismo.25 [grifo nosso] Essa citação imprime o teor do restante do seu relato, voltado a demonstrar as iniciativas tomadas no “combate ao banditismo e as garantias da vida e da propriedade.”26 Como prova desse empenho, Ferreira da Costa apresenta o “Convênio Policial de Irahy”, primeira iniciava tomada entre os governadores de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, respectivamente, Adolpho Konder e Getúlio Vargas. Esse convênio buscava guarnecer as fronteiras interestaduais e autorizava as autoridades policiais de ambos os estados a atuarem contra o banditismo.27 Na visão do chefe de polícia, essa fronteira era um dos lugares “[…] onde o banditismo assentou a sua tenda […]”, citando como exemplos Leonel Rocha e Zeca Vacariano.28 Leonel Rocha era 25 COSTA, Arthur Ferreira da. O oeste catharinense: visões e sugestões de um excursionista. Rio de Janeiro: Villas Boas & Cia, 1929. p. 24. Presidente de estado era a designação dada ao que posteriormente convencionou-se chamar de governador. 26 Ibid., p. 35. 27 O texto do Convenio Policial de Irahy era composto de 10 itens. Os quatro primeiros autorizavam as autoridades de ambos os estados a penetrarem o território do munícipio confinante para efetuarem apreensões, caso não fosse possível obter o auxílio imediato das autoridades policiais do estado vizinho, comunicando as autoridades policiais do município em que se deu a ação. O quinto e o sexto itens designavam mútuo auxílio, inclusive de “elemento pessoal e material de ação”, ou seja, de armamento para a “luta contra os bandoleiros”, bem como para investigarem a existência de bandoleiros, armamentos, animais e demais “apetrechos” pertencentes a eles. O sétimo e o oitavo, por sua vez, tratavam da extradição, que, se requerida por Santa Catarina, seria o extraditado posto a expensas do Rio Grande do Sul, no Porto do Rio Grande, em Marcelino Ramos ou outro ponto mais conveniente da fronteira e, se requerida pelo Rio Grande do Sul, no porto de Florianópolis, na Estação Rio-Uruguai ou em outro ponto. O nono item definia que os instrumentos do crime apreendidos em poder do extraditado seriam remetidos junto com este, e os objetos ou o produto do crime ficariam sob a disposição do chefe de polícia do estado requerente. O décimo item tratava dos casos em que se admitisse fiança, o pedido de extradição seria acompanhado da certidão de arbitramento do seu valor pelo estado requerente. (COSTA, Arthur Ferreira da. O oeste catharinense: visões e sugestões de um excursionista. Rio de Janeiro: Villas Boas & Cia, 1929. p. 27-29). 28 Ibid., p. 26; 37.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 25 chefe maragato do norte do Rio Grande do Sul e possuía muitos aliados no Oeste de Santa Catarina. Foi chefe revolucionário na Revolução de 1923, lutando contra as forças de Borges de Medeiros. Entre 1925 e 1927, liderou destacamentos da Coluna Prestes e articulou o apoio de vaqueanos na passagem por Santa Catarina, entre 1926 e 1927. Zeca Vacariano havia trabalhado como taifeiro da Estrada de ferro São Paulo – Rio Grande e também mantinha boas relações com chefes políticos e militares locais. Em 1923, juntou-se às forças revolucionárias no Rio Grande do Sul. Ambos atuavam numa região considerada promissora para o estado catarinense e eram mais próximos de chefes locais adversários políticos de Adolpho Konder. Após a travessia do Rio Uruguai em direção ao Rio Grande do Sul, Ferreira da Costa descreveu os núcleos coloniais com fortes traços de colonização associando-os ao “progresso”, enquanto “[…] via-se uma choupana de ‘intruso’ […], que ali se abrigava para explorar as matas e roubar madeira das terras devolutas.”29 Antes, porém, de reproduzir na íntegra o convênio, registrou: “É para desejar que egual ajuste seja feito com o Governo Paranaense, em represália da criminalidade nas zonas arraianas do Norte de Santa Catarina.”30 O problema de fronteiras entre os três estados do Sul era latente. A fronteira entre o Paraná e Santa Catarina, mesmo após o Acordo de Limites de 1916, preocupava as autoridades catarinenses, que almejavam guarnecê-la da criminalidade, naquele momento destacando o norte do estado. O banditismo era a expressão usada não apenas para criminosos comuns ou bandoleiros, mas para grupos de chefes locais que não se subordinavam ao poder estadual. Muitos chefes locais, anteriormente, eram uma extensão do braço do Estado Imperial no in29 COSTA, Arthur Ferreira da. O oeste catharinense: visões e sugestões de um excursionista. Rio de Janeiro: Villas Boas & Cia, 1929. p. 32-33. O termo terra devoluta refere-se, originalmente, às terras dadas por sesmarias que não foram ocupadas, sendo devolvidas à Coroa. A Lei de Terras de 1850 caracteriza terras devolutas a partir da noção de exclusão de particulares. Com a Constituição de 1891, que passa a responsabilidade de legislar sobre as terras devolutas da União para os estados, essas terras passam a ser assim discriminadas conforme o interesse das oligarquias regionais. Com o Código Civil de 1916, implementado em 1917, as terras devolutas são pertencentes ao Estado (federal ou estadual) e uma vez discriminadas passam a denominarem-se terras públicas. (MOTTA, Márcia. Dicionário da terra. 2005. p. 469-470). 30 COSTA, Arthur Ferreira da. O oeste catharinense: visões e sugestões de um excursionista. Rio de Janeiro: Villas Boas & Cia, 1929. p. 27.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 26 terior do país; porém, com o advento da República e a interiorização das instituições do Estado, iniciou-se um esforço de formalização das autoridades locais. A tese de Karla Dahse Nunes apresenta uma interpretação da viagem de 1929 para além do reconhecimento do território, mas como uma incursão estratégica, que produziu efeitos políticos a favor do governador.31 Para a autora, esse acontecimento teve destaque na imprensa, além de politicamente ter surtido efeito na carreira do político. Assim, por ter-lhe rendido simpatias de uma parcela da população catarinense, isso o colocou em vantagem em relação aos opositores políticos integrantes da recém-fundada Aliança Liberal, que havia apoiado a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. O banditismo, expressão recorrente nas páginas de jornal para se referir ao Oeste, simplifica, portanto, um circuito de poder protagonizado por adversários políticos que apoiaram a ascensão de Getúlio Vargas. Um dos desdobramentos foi a Revolução de 1930, que derrotou Adolpho Konder e possibilitou a ascensão do Partido Liberal; este, por sua vez, também empreendeu políticas contra o banditismo no Oeste. Em meio à instabilidade política da década de 1920, as fontes judiciais utilizadas neste trabalho ajudam a perceber as relações entre os diversos sujeitos no desenrolar dos acontecimentos, no intuito de melhor compreender a atuação das chefias locais. Em paralelo à política oficial do estado, bastante documentada pelos jornais que empreendiam a causa do Partido Republicano Catarinense e advogavam por ela, havia outros indivíduos, integrantes do cenário político local, que faziam articulações sem estarem ligados diretamente a cargos políticos oficiais. A partir da atuação de três coronéis que conflitaram na comarca de Cruzeiro, percebe-se como estavam conectadas tanto local quanto nacionalmente as suas ações políticas e militares. 31 Em sua tese, Nunes apresenta uma análise sobre como Adolpho Konder cercou-se de aparatos que o legitimavam como hábil governante. No contexto em que se engendrava a Revolução de 1930, a autora trata dos inúmeros combates políticos, militares e pela instituição de uma memória, na qual a Viagem de 1929 se insere. (NUNES, Karla L. Dahse. Santa Catarina no caminho da Revolução de Trinta: memórias de combates (1929-1931). 2009. 407 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.).

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 27 1.2 OS CONFLITOS LOCAIS No início de fevereiro de 1925, foram abertos dois inquéritos policiais para investigar um crime e delitos envolvendo dois chefes locais na comarca de Cruzeiro: José Fabrício das Neves e Marcelino Ruas. O inquérito civil apurou a morte de Fabrício das Neves, juntamente com outros cinco companheiros, sendo os acusados Marcelino Ruas e seus irmãos. O inquérito militar apurou os delitos cometidos por ambos os coronéis que, nesse período, estavam investidos no comando de batalhões patrióticos que levavam os seus nomes: batalhão José Fabrício das Neves e batalhão Esquadrão Ruas. Os batalhões patrióticos eram forças civis armadas por chefias locais que existiam desde a instauração do Governo Provisório, que marcou o advento da República no Brasil, sob chefia dos militares marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Devido aos movimentos de oposição à implantação do novo regime, começava a existir os “cidadãos armados” que, agrupados em batalhões, se proliferaram ao longo da Primeira República.32 Na década de 1920, os batalhões patrióticos foram formados com o objetivo de prestar auxílio às forças do Exército que combateram a favor da legalidade da presidência de Artur Bernardes contra uma série de levantes insurgentes, denominados, posteriormente, de Movimento Tenentista. Os que lutaram ao lado do Exército eram chamados legalistas, enquanto os que se juntaram aos levantes ou prestaram-lhes auxílio foram designados como revoltosos. O contexto nacional que os coloca do mesmo lado, combatendo a favor da legalidade e contra os revoltosos, escamoteia diferentes trajetórias imbricadas com o contexto local e as antigas desavenças. José Fabrício das Neves é conhecido como membro de uma das famílias pioneiras da colonização do Meio Oeste catarinense, especialmente na atual cidade de Concórdia. Antigo maragato, migrou do Rio Grande do Sul com a sua família após a Revolução Federalista para os Campos do Irani. Em 1912, acompanhava o monge José Maria e envolveu-se ao lado da resistência cabocla no combate do Irani, sendo considerado um rebelde. Posteriormente, manteve-se na região do Irani, desenvolvendo atividades de extração e 32 FAUSTO, Boris et al. (org.). Historia geral da civilização brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. v. 8, t. 3. cap. 1, p. 33; 50; CARONE, Edgard. A Republica Velha: evolução política. 2. ed. São Paulo: Difel, 1974. p. 145-154.

Coronelismo e milícias no sul do Brasil – Cristina Dallanora 28 exportação de madeira, intermediando contratos de compra e venda de terra junto às colonizadoras ligadas à Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Em 1924, atuou como vaqueano, arregimentando soldados para compor as forças legalistas que lutaram contra os tenentes rebelados no combate conhecido como cerco de Catanduva, no Paraná. Marcelino Ruas é associado à colonização da mesma região, principalmente na atual cidade de Joaçaba. Em 1915, fez parte das forças arregimentadas para combater os seguidores do monge. Integrou os piquetes de vaqueanos chefiados por Manoel Fabrício Vieira, ao lado de “Dente de Ouro”, figura conhecida da Guerra do Contestado. Após esta guerra, trabalhou no comércio da erva-mate e, junto aos seus irmãos, participava da empresa “Simão Ruas e Cia”. Em paralelo ao ramo ervateiro, atuou como vaqueano do Exército que arregimentava civis para encorpar as forças legais. Ambos participaram em momentos distintos do movimento do Contestado, que abrangeu cerca de 20 mil km², envolvendo aproximadamente 110 mil habitantes que viviam no Planalto e Meio Oeste catarinense, entre os anos 1912 e 1916.33 Passados mais de dez anos, os dois coronéis que estiveram envolvidos em lados opostos durante a guerra formaram seus batalhões patrióticos para servirem à causa da legalidade contra os tenentes rebelados. Aparentemente, estavam do mesmo lado, quando, em meio a essa missão, um coronel mandou matar o outro. Em 1925, Fabrício das Neves estava acampado com sua força no Irani, quando foram atacados pelo batalhão Esquadrão Ruas. Na sua defesa, o comandante Marcelino Ruas, acusado de ser o mandante do crime, alegou que foi “por ordens superiores, em operação de guerra”, designado a “[…] capturar ou extinguir o bando armado de José Fabrício das Neves que vinha com destino aos sertões do Irany para revolucionar a zona marginal da Estrada de Ferro.”34 Fabrício das Neves 33 Sobre a historiografia especializada na análise do conflito, cf.: QUEIROZ, Mauricio Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do contestado: 1912-1916. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século... 1974; AURAS, Marli. Guerra do Contestado: a organização da irmandade cabocla. Florianópolis: Ed. da UFSC: Assembleia Legislativa, 1984; MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado... 2004. 34 Inquérito Fabrício das Neves. f. 3. A referência a essas forças civis como “bando” deve ser problematizada, pois, no momento em que sofrem a ofensiva do Esquadrão, estavam compondo as forças legais de um batalhão patriótico. É, portanto, uma referência pejorativa para desqualificar o grupo do chefe rebelde, que será analisado no segundo capítulo.

RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz