AS CONDIÇÕES SOCIOAMBIENTAIS DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO MARIZA RIOS NEWTON TEIXEIRA CARVALHO (ORGANIZADORES) CASA LEIRIA
As condições socioambientais das pessoas em situação de refúgio MARIZA RIOS NEWTON TEIXEIRA CARVALHO (ORGANIZADORES) CASA LEIRIA São Leopoldo-RS 2022
AS CONDIÇÕES SOCIOAMBIENTAIS DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO DOI: https://doi.org/10.29327/559672 Editoração: Casa Leiria. Revisão: Maria Elizabete de Sousa Arte da capa: Jean Marie Espiegle. Instagram: @jeanmarieespiegle Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores. Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 EDITORA CASA LEIRIA Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil CONSELHO EDITORIAL (UFRGS) (Uema) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (Unisinos) (Unisinos) (Unicap) (Unisinos) (Unisinos) (UnB)
SUMÁRIO 7 Introdução Mariza Rios e Newton Teixeira Carvalho 15 Capítulo 1 – Desconstruindo e construindo conceitos: Estado, Nação e Território Newton Teixeira Carvalho e Mariana Pereira Paixão 37 Capítulo 2 – Democracia e direitos humanos Mariza Rios, Luiza Aarestrup Rocha Ferreira Pinto e Camilla Rodrigues Cardoso 59 Capítulo 3 – Refugiados e migrantes forçados Marina de Melo Diniz, Kaleandra de Castro Lima e Caio Cabral Azevedo 87 Capítulo 4 – (In)tolerância e pertencimento Juliana Rocha Braga e Renata Cristina Araújo 109 Capítulo 5 – Mulheres refugiadas e migrantes forçadas Luiza Aarestrup Rocha Ferreira Pinto 121 Capítulo 6 – Políticas públicas e inclusão social Mariza Rios e Thais Durães Mol 141 Considerações finais ANEXOS 149 Anexo 1 – A atuação dos Estados Democráticos de Direito na criação de barreiras visíveis e invisíveis para a entrada de refugiados e migrantes forçados Kaleandra de Castro Lima e Mariza Rios 185 Anexo 2 – Os países democráticos e a relativização dos Direitos Humanos: a criação dos campos de refugiado Renata Cristina Araújo e Mariza Rios 219 Anexo 3 – O Português como Língua de Acolhimento (PLAc) em Belo Horizonte: uma via possível de acesso à prática cidadã do sujeito migrante Flávia Campos Silva, Eric Júnior Costa e Andreza Santos Xavier Rodrigues de Carvalho
7 INTRODUÇÃO Mariza Rios1 e Newton Teixeira Carvalho2 DOI: https://doi.org/10.29327/559672.1-10 A realidade dos migrantes e refugiados é a prova da maior crise humanitária dos últimos 20 anos e, por isso, foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como calamitosa. Nesse contexto, a triste realidade dos deslocamentos forçados, na qual milhões de pessoas foram obrigadas a deixar seu lar para buscar refúgio em outros países, atingiu, nos últimos anos, uma repercussão que assola todo o planeta, tornando a realidade dos migrantes forçados e dos refugiados responsabilidade de toda a humanidade que ultrapassa o Estado-nação e, por isso, requer posicionamentos para além deste porque o Estado, da forma como conhecemos, não consegue dar conta de tal realidade. Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados informam que o fluxo de refugiados em todos os continentes, emnúmeros estratosféricos, que superaram a casa dos 65 milhões de pessoas, somente até 2015. 1 Doutora em Direito pela Universidade Complutense de Madrid (Espanha) e Mestra em Direito pela Universidade Nacional de Brasília. Professora de Direitos Humanos e Políticas Públicas na Escola Superior Dom Helder Câmara. Professora do Mestrado e Doutorado (PPGD) em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogada. Pesquisadora no campo dos Direitos Humanos Fundamentais e da Jurisdição e Adoção de Políticas Públicas de Desenvolvimento Socioeconômico Sustentável. Associada ao grupo “Global Law comparative group: Economics, Biocentrism innovation and Governance in the Anthropocene World” e membro do grupo de pesquisa “PPG CS – UNISINOS: Transdisciplinaridade, Ecologia Integral e Justiça Socioambiental”. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3913038205048493. Orcid: http://orcid. org\000-0003-4586-9810. E-mail: riosmariza@yahoo.com.br 2 Pós-Doutor em Docência e Investigação pelo Instituto Universitário Italiano de Rosário (2019). Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2013). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004). Especialista em Direito de Empresa pela Fundação Dom Cabral (1987). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1985). Desembargador da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Juiz de Direito da 1ª Vara de Família até junho de 2012. Professor de Direito de Família da Escola Superior Dom Helder Câmara. Autor e coautor de vários livros e artigos na área de família, direito ambiental e processual civil.
8 Mariza Rios e Newton Teixeira Carvalho Contudo, a questão da migração, de acordo com os registros bíblicos levou historicamente milhares de pessoas, de diversas origens, a buscar refúgio pelo mundo antigo. Um exemplo clássico dessa realidade, conforme a tradição da narrativa histórica, é a de José do Egito, descrita na Bíblia Sagrada (BÍBLIA, Gênesis, 37, 43).3 Além disso, datada de 1060 a.C., aproximadamente, encontramos a história de Moisés e do Êxodo dos hebreus à procura de um território para instituírem seu próprio Estado depois de fugirem da escravidão no Egito, que tem seu quadro ampliado de migração com o registro da destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C. que obrigou o povo judeu a uma diáspora que o transformaria em refugiados por quase 1.900 anos. Assim, da Antiguidade à Idade Média, da Era Moderna à Contemporânea, toda a história da humanidade é marcada por conflitos armados, expansões imperiais e coloniais, ou desastres naturais de grandes proporções que levaram a humanidade a migrar em busca de condições mínimas de sobrevivência ou de proteção. No século XX tomado pelas duas guerras mundiais, damos conta de um intenso fluxo migratório, que levou a ONU a regulamentar, por meio de Convenção, em 1951, os direitos dos chamados refugiados. Nela os países assumem que, frente ao crescimento de uma realidade tão dura como a dos migrantes forçados e refugiados, fazem um acordo de promover ações de garantias de direitos humanos a essa população que não pertence aos muros de um Estado-nação, mas ao mundo. E, daí o desafio se expande ao patamar universal, pela instância internacional, a Organização das Nações Unidas. Contudo, o conceito de refugiados foi ampliado apenas em 1967, com a edição de um Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, quando esse conceito foi ampliado para as situações ocorridas após o ano de 1951, abrangendo os deslocados de outros conflitos, não se restringindo aos conflitos oriundos da Primeira e da Segunda Grandes Guerras. Além das normas internacionais de âmbito global, tem-se tratados regionais, como a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) de 1969, relativa aos deslocados por causa dos conflitos no Continente Africano, e a Declaração de Cartagena de Índias, de 1984, no âmbito da América Latina. Dessa maneira, o conceito de refugiado é ampliado para abarcar todos que tenham fugido dos seus países para garantir a vida, segurança em razão de ameaças por violência generalizada que abrange desde conflitos internos, violação de direitos humanos ou questões que possam perturbar a ordem pública, é o que garante a Declaração de Cartagena de 1984. 3 BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973.
9 Introdução No Brasil, o direito dos refugiados foi regulado pela Lei 9.474 de 1997, que definiu, em seu artigo 1º, o conceito de refugiado, acompanhando as definições dos instrumentos internacionais e além disso, incluiu, no inciso III do referido artigo, o reconhecimento da condição de refugiado à pessoa que deixa seu país de origem devido a grave e generalizada violação de direitos, garantia estendida aos cônjuges, ascendentes, descendentes e outros dependentes do refugiado. Além disso, no caso do Brasil tem-se o princípio do non refoulement (não devolução), estabelecido pelo Protocolo de 1967, que significa que não haverá a devolução do refugiado ao país de origem, ou àquele no qual possa sofrer perseguição ou tenha justificado receio de ser perseguido ou morto. Mas, apesar de toda a normatização, tanto no âmbito interno como externo relativa ao refúgio, a conjuntura extrapola o universo do “dever ser” e a realidade revela um crescimento de desrespeitos aos direitos humanos sem precedentes. Só no Brasil o grande fluxo de migrantes forçados e refugiados que têm buscado como seu destino final, como é o caso dos haitianos, venezuelanos, dentre outros, sobretudo, a partir de 2015 tomou uma proporção enorme e com ela as dificuldades de várias ordens social, econômica, discriminação criando e aprofundando o fenômeno do “eles e nós”, nacional e estrangeiro, de forma surpreendente. Enfim, após entrarem no território nacional, inicia-se um longo calvário para essas pessoas, na busca por condições dignas de vida, especialmente no ambiente urbano, pois os municípios acabam ficando com a responsabilidade final no acolhimento dessas pessoas. Nesse contexto, além da cidade de São Paulo, Belo Horizonte/Minas Gerais, outro grande centro urbano do Brasil, recebeu nos últimos anos muitos migrantes forçados e refugiados que estão sendo praticamente amparados por meio da atuação de pessoas e instituições da sociedade civil – com pouco ou nenhum envolvimento dos poderes públicos – que têm tido a preocupação de ajudar os refugiados a se integrar ao espaço urbano, enfrentando o choque de culturas, o preconceito e a falta de políticas públicas efetivas para proporcionar direitos básicos e essenciais a essa parcela da população. Emsuma, odesafioqueseapresentaparaasociedadebrasileira reside em como efetivar políticas públicas e ações reais do Estado, nas esferas federal, estadual e municipal, e da sociedade civil para o cumprimento da legislação nacional e das normas internacionais de proteção aos migrantes forçados e aos refugiados, especialmente no ambiente urbano, com a plenitude dos direitos e titulares da dignidade e da cidadania. Nesse sentido, tambéma Academia chama para si a responsabilidade de ser parceira, por meio da pesquisa, da busca de soluções relativas aos
10 Mariza Rios e Newton Teixeira Carvalho refugiados, pois os efeitos das violações de seus direitos não se restringem a eles, mas atingem direta ou indiretamente toda a sociedade e, é nesse contexto que a pesquisa busca tratar do drama dos refugiados no contexto urbano como uma grande iniciativa que visa somar esforços na busca por soluções práticas que possam apontar possibilidades científicas e práticas, no campo da política pública, com vistas a minorar a situação em tela. Devido à significativa quantidade de refugiados que o Brasil recebeu em seu território nos últimos anos, com a concentração do fluxo migratório para os grandes centros, vem crescendo a necessidade de avaliar as condições de vida dos refugiados e o impacto da sua chegada nas cidades, no que tange à demanda por políticas públicas e serviços essenciais prestados pelo Estado que visam a inclusão social desses sujeitos de direitos. Nesse sentido, o objetivo central do trabalho é analisar o contexto do impacto dos migrantes forçados e refugiados, avaliando os principais impactos sociais da sua inserção no âmbito urbano, nas políticas públicas socioambientais e como podem enfrentar os problemas identificados. Tendo em vista que a realidade dos refugiados no Brasil se caracteriza pela exclusão social, o grupo de pesquisa “As condições socioambientais dos refugiados no espaço urbano brasileiro”, enfrentou dois problemas: a) quais os impactos que a chegada de grande quantidade de migrantes e refugiados no país trazem para inclusão social na sociedade e nas políticas públicas estatais; b) é possível afirmar que há políticas públicas voltadas para os refugiados em quantidade e qualidade suficientes para efetivação dos seus direitos humanos fundamentais? Para responder a essa problemática apresentou-se três hipóteses de trabalho: a) pensar a realidade dos sujeitos de direitos, migrantes forçados e refugiados, requer repensar o trinômio Território/Nação/ Cidadania na forma clássica em que foi construído e, nesse contexto, a pesquisa propõe a ampliação dos espaços conceituais, entendendo que o espaço da cidadania precisa ser compreendido em sua forma planetária resgatando, assim, a responsabilidade da sociedade pela sua permanência; b) as políticas públicas, especialmente em nível municipal, são inadequadas, escassas ou inexistentes, uma vez que os refugiados não são vistos como parte da população local, sendo ignorados e deixados por sua própria conta e risco; c) por meio da cooperação de todos os setores da sociedade e dos poderes públicos, de todas as esferas, utilizando-se da ajuda institucional de organismos internacionais e das entidades públicas e privadas nacionais, os municípios poderão desenvolver políticas públicas de qualidade, de acordo com sua conjuntura, para promover a plena integração dos refugiados na sociedade local, combatendo a xenofobia e todas as formas de discriminação social.
11 Introdução A metodologia utilizada pelo grupo é a jurídico-sociológica em uma análise qualitativa do tema cujo referencial teórico perpassou a leitura crítica do trinômio Estado, Nação e Cidadania como elementos que afetam a construção legislativa e teoria da democracia e dos direitos humanos, que foram os caminhos teóricos escolhidos para a pesquisa do tema. Nesse sentido, o método hipotético-dedutivo direcionou o caminho da revisão e propostas que a pesquisa buscou apontar, tendo sempre como sujeitos de direitos os migrantes forçados e refugiados. Assim, o grupo desenvolveu o trabalho utilizando as técnicas da revisão bibliográfica e documental, bem como uma pequena pesquisa de campo, cujos instrumentos utilizados foram oficinas realizadas por meio do projeto “O Direito como Ferramenta de Inclusão Social”.4 Além disso, utilizou-se do instrumento de coleta de dados e entrevistas livres cujo objetivo principal foi pesquisar as condições e possibilidade, no campo do acolhimento dos refugiados, de sua incorporação nas políticas públicas de garantia de direitos humanos em seu caráter universal, ou seja, trabalhar com ideia da inclusão social dos refugiados. Dessa maneira, tencionou o grupo fazer uma pesquisa na qual ele próprio passou a participar diretamente de ações concretas de inclusão social, por exemplo, na realização de oficinas e aulas de direitos básicos pelo “Projeto do Direito como Ferramenta de Inclusão Social” criado pelo grupo com o propósito de fazer uma pesquisa fundada na percepção metodológico-teórica da ProfessoraMiracy Gustin5 cujomodo de pesquisar requer o envolvimento do pesquisador emações concretas de emancipação social do grupo pesquisado e, nesse sentido, o conhecimento dos direitos básicos, bem como de seu funcionamento no ordenamento jurídico pátrio se torna de grande importância para a população dos refugiados que chegam em nosso país. A pesquisa foi realizada durante os anos de 2018 e 2019 sendo que, no primeiro ano, o grupo se dedicou ao aprofundamento do tema através de leituras teóricas de vários autores tendo como referencial direcionador 4 “O Direito como ferramenta de Inclusão Social” é um projeto do próprio grupo, que nasceu durante os dois anos de pesquisa com o objetivo de realizar oficinas e aulas de direitos básicos direcionados aos refugiados e contou com a participação de outros professores da Escola que voluntariamente se apresentaram para assessorar o grupo em suas respectivas áreas, tais como: direito internacional, direito do trabalho e direito das famílias. Assim, o Projeto realizou aulas no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR) localizado em Belo Horizonte e, em parceria com o Grupo de Estudos Migratórios: Acolhimento, Linguagens e Políticas (GEMALP), grupo de estudos e pesquisa do CEFET-MG, especializado em questões de migração como o acolhimento linguístico de migrantes e refugiados, ministrou oficina formativa no evento II Diálogos em Rede: Literatura de Diáspora. 5 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 2. ed., ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
12 Mariza Rios e Newton Teixeira Carvalho principal, desse momento, Bauman (em obras de 2000, 2007 e 2016). Ainda no mesmo período o grupo realizou seminário com refugiados e acadêmicos, diálogos com pesquisadores de outras instituições e entre grupos de pesquisas da instituição a que pertence o grupo. No segundo ano, o grupo se dedicou ao trabalho de campo que, como informado acima, constituiu na realização de oficinas e aulas sobre direitos básicos para refugiados, bem como de participação dos membros do grupo em congressos e seminários como proponentes do debate sobre possibilidades de inclusão social dos refugiados nas políticas públicas locais, realizou uma mesa de debate sobre a pesquisa de campo com pesquisadores do CEFET/MG, o que ajudou em muito a organização metodológica do grupo. Nesse contexto, é importante registrar que, durante todo período da pesquisa, vários membros fizeram entrevistas livres com refugiados, agentes públicos, membros de organizações sociais, da sociedade civil e pesquisadores diversos. Tudo isso, sem sombra de dúvidas teve como resultado não somente a experiência do grupo com a pesquisa de campo, mas também o aprofundamento na formação de nossos pesquisadores no campo da ciência jurídica. Dessa maneira, a pesquisa que passamos a apresentar cuidou, em primeiro lugar, do referencial teórico que norteou os trabalhos do grupo dividido em dois capítulos. O primeiro, se ocupou do problema dos limites do Estado-nação para dar conta de uma realidade que ultrapassa os muros do território nacional e por isso o debate se deu com foco no trinômio território, nação e cidadania. Nesse ponto a hipótese enfrentada foi sobre os limites do Estado que, ao ver do grupo, passa pela desconstrução dos tradicionais conceitos de Estado, Nação e Território dando visibilidade a uma espécie de cidadania planetária. Assim, concluiu o grupo que o espaço da cidadania planetária é o espaço onde a solidariedade deve ser construída pelo exercício da cidadania que, para dar conta da realidade em que vive os refugiados, necessita se expandir, se alargar para a esfera global. A segunda parte do referencial teórico, segundo capítulo, perpassou o caminho dos limites da democracia e dos direitos humanos, desde sua origem, cujo desafio foi o de sustentar que a cidadania planetária passa pela recuperação do espaço social, sob a ótica da sociedade, e pela interligação dos direitos humanos (lei e moral) na esfera da garantia de direitos em sua forma planetária onde direitos universais ultrapassam o limite estatal e, portanto, alberga todos os cidadãos sejam eles nacionais ou não, guiados pelo senso de que a exclusão social e a negação de direitos pela negação da nacionalidade, chega ao patamar da imoralidade.
13 Introdução Dessa maneira, podemos reforçar o entendimento de que a moralidade serve como vetor para garantia da democracia social, econômica e política. Para tanto, se faz necessária a compreensão do espaço da ação pública e da sociedade – aqui entendido como cidadania –, constitui a instância diretiva da própria economia que não pode ser assaltada pelo poder econômico liberal. O terceiro capítulo tratou dos sujeitos de direitos, refugiados e migrantes forçados, razão primeira que sustentou toda a pesquisa do grupo. Nesse ponto, o grupo compilou a legislação pertinente ao tema, iniciando pelo arcabouço internacional e nacional com ênfase na perspectiva, no caso da legislação nacional, de possíveis mudanças para reconhecer os refugiados e os migrantes forçados como sujeitos de direitos universais e, assim, serem incluídos no mesmo tratamento garantido aos nacionais e, portanto, serem atendidos pelas políticas públicas comuns direcionadas à garantia dos direitos fundamentais do Estado. Nesse contexto, a dimensão da recepção e do acolhimento é tratada pelo capítulo quatro da presente pesquisa perpassando três eixos fundamentais, o papel da sociedade civil e das organizações sociais, a burocracia nacional no processo de acolhimento dos refugiados e migrantes forçados e, por fim, uma pequena análise comparativa do Brasil, na recepção e acolhimento, em relação a outros estados do mundo. Nesse processo de recepção e acolhimento, é perceptível o preconceito e a xenofobia contra os sujeitos de direitos, refugiados e migrantes forçados, muitas vezes tratados com “estranhos”. Por essa razão, a pesquisa dedicou o quinto capítulo ao pertencimento através de uma análise crítica de modelo que traz em seu cerne a discricionariedade no trato com o tema, no processo de recepção e acolhimento e por isso considerado pelo grupo como opressor. O capítulo se dedica a abordar a migração forçada e o refúgio pela perspectiva da mulher. Primeiramente, cabe a nós esclarecermos ao leitor o porquê de tomarmos a decisão de, neste livro que encerra um estudo de dois anos sobre refugiados e migrantes forçados, abordar especificamente a vivência feminina deste fenômeno. O leitor pode pensar que esse capítulo será redundante, que repetirá tudo o que foi dito anteriormente, ou até questionará que quando analisamos as condições de vida dos refugiados, já não abarcamos como vivem homens e mulheres? Todavia, como há de ser demonstrado a seguir, a vivência do refúgio é diferente para homens e mulheres. Isso porque as refugiadas e migrantes forçadas, além de estarem forçosamente em outro país, vivendo todas as opressões que essa condição implica, são pessoas do gênero feminino, e, em razão disso, sofrem também a opressão patriarcal, perpetuada pelo
14 Mariza Rios e Newton Teixeira Carvalho machismo. De certo, isto se soma à xenofobia, racismo, classismo e demais sujeições vividas pelos homens na mesma conjuntura. Por fim, o capítulo sétimo se ocupa das políticas públicas como instrumentos de integração dos refugiados e dos migrantes forçados no estado nacional de forma inclusiva com menos burocracias e com reconhecimentos de sua cidadania planetária. Assim, o GIDIR – Grupo de Iniciação Científica de Direito dos Refugiados –, composto pelas alunas e alunos: Ana Luiza Reis Resende, Bianca Izabella Carvalho dos Reis, Caio Cabral Azevedo, Camilla Rodrigues Cardoso, Isadora Camila Freire Marques, Juliana Rocha Braga, Kaleandra de Castro Lima, Luiza Aarestrup Rocha Ferreira Pinto, Mariana Pereira Paixão, Marina de Melo Diniz, Renata Cristina Araújo e Thaís Durães Mol, consolidou e condensou nesta obra um estudo interdisciplinar e humanístico, pautado em uma discussão aberta, franca e não elitista a fim de superar paradigmas. Durante os dois anos de pesquisa, quatro membros do grupo produziram trabalhos monográficos individuais sobre a temática dos refugiados. A pesquisadora Marina de Melo Diniz trabalhou o arcabouço jurídico nacional sob a ótica emancipatória dos direitos humanos, publicado no livro “Por uma humanização urgente e consciente”. Luiza Aarestrup Rocha FerreiraPinto,enfrentouotema“Empoderamentofemininocomoferramenta para vencer violência”, publicado na mesma obra indicada acima. Kaleandra de Castro Lima e Mariza Rios enfrentaram o tema das barreiras visíveis e invisíveis em pleno Estado Democrático de Direito, Anexo 1 desta pesquisa. Renata Cristina Araújo, em uma leitura sobre a democracia e os direitos humanos, fez uma análise muito importante sobre a criação dos campos de refugiados como instrumentos utilizados pelos estados democráticos como garantidor de direitos humanitários, Anexo 2 da presente obra e, por último, mas não menos importante temos o prazer de incluir neste livro um artigo dos colegas do CEFET, Flávia Campos Silva, Eric Júnior Costa, Andreza Santos Xavier Rodrigues de Carvalho, nossos parceiros, intitulado “O Português como Língua de Acolhimento (PLAc) em Belo Horizonte: uma via possível de acesso à prática cidadã do sujeito migrante”, Anexo 3.
15 CAPÍTULO 1 – DESCONSTRUINDO E CONSTRUINDO CONCEITOS: ESTADO, NAÇÃO E TERRITÓRIO Newton Teixeira Carvalho1 e Mariana Pereira Paixão2 DOI: https://doi.org/10.29327/559672.1-1 1. Desconstruindo o trinômio Estado/Nação/Cidadão Superar paradigmas é um desafio enorme, principalmente em razão do dogmatismo e do positivismo reinantes que, de certa maneira, nos deixa em uma zona de conforto. Entretanto, essa terceirização do pensar pode gerar injustiças, exclusões e não se amoldar aos tempos atuais. Por conseguinte, mesmo os institutos já consolidados carecem de constantes revisões, em prol da vivência em um verdadeiro Estado Democrático de Direito Constitucional. Conforme adverte Bauman, preocupado com as contradições da sociedade atual e sua quase nenhuma evolução, diante da ainda ausência de fraternidade entre os povos: A conclamação para amar a teu próximo como a ti mesmo, diz Sigmund Freud, é um dos preceitos fundamentais da vida civilizada (e, de acordo com alguns, uma de suas exigências éticas fundamentais). Mas é também o que de mais antagônico pode haver com o tipo de razão que essa mesma civilização promove: a razão do interesse individual, a busca da felicidade.3 1 Pós-Doutor em Docência e Investigação pelo Instituto Universitário Italiano de Rosário (2019). Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2013). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004). Especialista em Direito de Empresa pela Fundação Dom Cabral (1987). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1985). Desembargador da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Juiz de Direito da 1ª Vara de Família até junho de 2012. Professor de Direito de Família da Escola Superior Dom Helder Câmara. Autor e coautor de vários livros e artigos na área de família, direito ambiental e processual civil. 2 Advogada. Pós-Graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela FAVENI. Graduada em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (2020). Integrante do Grupo de Iniciação Científica Direito dos Refugiados (GIDIR) em 2018. E-mail: pereirapaixaom@gmail.com 3 BAUMAN, Zygmunt. A Ética é possível mundo de consumidores? Tradução de Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 37.
16 Newton Teixeira Carvalho e Mariana Pereira Paixão Nesse contexto, observa-se que o trinômio Estado/Nação/Território contribui sobremaneira para a perpetuação do egoísmo entre as pessoas, bem como para desprezar e desconhecer o não nacional como o nosso semelhante, o que contribuiu para a perpétua segregação. Portanto, realmente insistimos: ao nos isolarmos como cidadãos, em um determinado espaço geográfico, em negar validade a esta fala de Jesus, descrita em Mateus 22:37-39 e transportada para a filosofia “amar o próximo com a ti mesmo”. E o perigo é que sempre vamos, com nossas atitudes, legitimar barbáries ou agir como se nada estivesse acontecendo, desde que não nos atinja. E, se o estrangeiro, o imigrante forçado o refugiado é ainda mais atingido com esta ausência de amor, de fraternidade, na verdade também o próprio cidadão pode ser desconsiderado, dentro de seu próprio país e tornado, por conseguinte, um estrangeiro, conforme alertou Giorgio Agamben: Assim é que ‘o nexo nascimento-nação’ não é mais capaz de desempenhar sua função legitimadora no interior do Estado-nação e os dois termos começam a mostrar seu próprio insuturável descolamento [...] o fenômeno mais significativo, nesta perspectiva, é a contemporânea introdução, na ordem jurídica de muitos Estados europeus, de normas que permitem a desnaturalização e a desnacionalização em massa dos próprios cidadãos.4 Internamente os negros, os índios, os ciganos e diversos outros grupos, mesmo sendo reconhecidamente nacionais, perdem tambéma cidadania, pois lhes são negados direitos básicos, ditados pela Constituição atual. Conforme adverte István Mészáros, filósofo húngaro, radicado na Inglaterra: Não podemos ter medo de defender o que Daniel Singer chama de ‘utopia realista’. Pois, se toda tentativa de mudar a sociedade, e não apenas remendá-la, é classificada com raiva e desprezo de utópica, então, transformando o insulto numa medalha de honra, devemos proclamar que somos todos utópicos.5 Ao tentar desconstruir ou pelo menos suavizar o impacto da trilogia Estado/Nação/Cidadão, pensamos utopicamente em um mundo melhor, sem perseguições, com livre trânsito entre os diversos Estados. Pensamos, por conseguinte que, em vez de construir muros, devemos derrubar barreiras, dando acolhida a todos que precisam recomeçar fora de seus lugares de nascença. Depois, ver o outro, o não nacional, o não cidadão, como nosso inimigo, como algo que pode ser descartado, desprezado, coisificado, não 4 AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 138-139. 5 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. 1. ed. 5. reimpr. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 16.
17 Capítulo 1 – Desconstruindo e construindo conceitos: Estado, Nação e Território contribui em nada para a melhoria de uma convivência harmoniosa entre todos. É a certeza, se assim continuarmos agindo, de que ainda haverá fome, campos de concentração, guerras. É a negação perpétua de direitos humanos que permanecerão como mera promessa. Afinal e como adverte Bauman, preocupado com o fechamento de fronteiras pela União Europeia, com relação aos imigrantes, o mesmo acontecendo com os Estados Unidos da América do Norte, bem como a preocupação com o crescente nacionalismo, numa demonstração cabal de indiferença e de ausência de solidariedade: É bem útil definir as vítimas da globalização feroz dos mercados financeiro e de bens e commodities, antes de mais nada, como uma ameaça à segurança, e não como pessoas que precisam de ajuda e que têm direito a receber uma compensação por terem tido suas vidas prejudicadas. Em primeiro lugar, isso liquida os remorsos éticos: nenhuma falha no dever moral rói a alma quando se estiver tratando com inimigos que ‘odeiam nossos valores’ e não podem suportar a imagem de homens e mulheres que vivem em liberdade e sob democracia. Em segundo lugar, permite desviar recursos que poderiam ser usados, de forma ‘não lucrativa’, na redução das disparidades e na desativação das animosidades, para a lucrativa tarefa de reforçar a indústria bélica. A venda de armas, os ganhos dos acionistas, a melhora das estatísticas doméstica de emprego e o aumento do nível interno de bem-estar.6 Em vista da flagrante realidade dos migrantes forçados e refugiados no mundo, torna-se imprescindível repensar a trilogia Estado/Nação/ Território como condição para a validade do discurso dos direitos humanos que, por sua vez, se pauta na fraternidade como sustentáculo da dignidade e da possibilidade de que os humanos sejam parte do espaço sem distinção, sem o estigma do não cidadão e, nesse contexto, repensar o espaço urbano como lugar propício para a afirmação da lógica da exclusão se torna fundamental. 2. Nação, Estado, cidade como instrumentos permanentes de exclusão Em razão do rótulo Estado, entendido como o espaço em que se encontram reunidas várias pessoas, inúmeras guerras foram declaradas, bem como em nome desse Estado inúmeras pessoas foram mortas ou excluídas de uma convivência harmoniosa, como aconteceu comos Estados nacionalistas, de triste memória, que chegou ao absurdo de entender que 6 BAUMAN, Zygmunt. A Ética é possível mundo de consumidores? Tradução de Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 249.
18 Newton Teixeira Carvalho e Mariana Pereira Paixão os habitantes dos territórios necessariamente deveriam ser de raça pura, ou seja, a melhor em relação aos demais. Do território aparecem os nacionais, ou seja, as pessoas que nascem em um delimitado espaço geográfico, nada importando como esse espaço foi conquistado. São os proprietários, em condomínio pro indiviso, de uma porção de terra, com estatuto protecionista próprio e que não se preocupa nada (ou quase nada) com os outros, que vivem fora deste espaço geográfico. Assim, para se deslocar de um país a outro necessário é que se cumpra uma série demedidas burocráticas, alémdo necessário passaporte, documento que desqualifica as pessoas e o que as faz lembrar como sendo os não nacionais, pois este “outro” passa a ser olhado como “anormal”, remetendo-nos a Canguilhem que, refletindo sobre a patologia, aqui entendida como atitude que exclui direito, esclarece que “o normal não é um conceito estático ou pacífico, e sim um conceito dinâmico e polêmico”, para logo em seguida esclarecer: Quando se sabe que norma é a palavra latina que quer dizer esquadro e que normalis significa perpendicular, sabe-se praticamente tudo o que é preciso saber sobre o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal, trazidos para uma grande variedade de outros campos. Uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé, endireitar. ‘Norma’, normalizar, é impor uma exigência a uma existência, a um dado, cuja variedade e disparidade se apresentam, em relação à exigência, como um indeterminado hostil, mais ainda que estranho.7 Assim e através da normalização, considerando que “a norma é aquilo que fixa o normal a partir de uma decisão normativa [...] tal decisão, relativa a esta ou àquela norma, só pode ser entendida no contexto de outras normas”,8 há uma exclusão prévia, um julgamento de valor negativo, ou seja, quem não aceitou o “enquadramento” está fora, é anormal, e sua pretensão de fora é vista como a subversão da ordem imposta. Desse modo é que o imigrante forçado é considerado, em relação aos nacionais, como anormal, como sujeito, no discurso social, de nada ou de poucas palavras, de escassos direitos e, se possível, deve sentir que se encontra naquele determinado território por altruísmo dos nacionais, que apenas os tolera por um determinado do tempo. Portanto, o trinômio Nação/Estado/Cidade, com seus correspondentes: nacionalidade/estado/cidadania é negação do princípio da univer7 CANGUILHEM, Georges O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 189. 8 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 195.
19 Capítulo 1 – Desconstruindo e construindo conceitos: Estado, Nação e Território salização da cidadania. É uma maneira de ainda nos preocuparmos com as fronteiras, com os símbolos nacionais em excesso, até mesmo ao ponto de legitimar a guerra em defesa desses símbolos. Assim, essa insistência em permanecer com algo já posto pela tradição,9 a exemplo do trinômio Nação/Estado/Cidade, é que merece ser mais bem analisada nessa sociedade que pretende o reconhecimento como pluralista e democrática. Geralmente o pensamento minoritário, por ser destoante da normalidade, não é respeitado. Há uma tendência de não ouvir o “anormal”, a minoria, os excluídos. São os refugos, ou na interpretação de Eleni Varikas “optou-se aqui por ‘escória’, por combinar a ideia daqueles que sãomantidos àmargem, mas tambémdesvalorizados”.10 Nota-se que o rígido trinômio Nação/Estado/Cidade é uma maneira desumana de manter à margem das sociedades os não nacionais e de também de não os valorizar, como ser humano. É a procura constante de um inimigo, de alguém que será o responsável por toda a desgraça e infortúnio um determinado país: doença, desemprego, desgoverno, morte, etc. A nacionalidade/estadual/cidadania, além de negar a pessoa do outro, vai também contra o princípio da autonomia, pois no nacional, estado e cidadão há uma forte construção grupal hierárquica, com exclusão do individual, com a criação de rótulos, de grupos, que não levam em conta a singularidade do indivíduo. Preocupa-se apenas com a origem daquele não nacional e, por conseguinte, não estadual e não cidadão. As colocações de Giorgio Agamben vão ao encontro desta nossa proposta, no sentido de que os refugiados precisam de acolhida e, para tanto, urge que desconstruamos postulados antigos: Se os refugiados (cujo número nunca parou de crescer no nosso século (século XX), até incluir hoje uma porção não desprezível da humanidade) representam, no ordenamento do Estado-nação moderno, um elemento tão inquietante, é antes de tudo porque, rompendo a continuidade entre homem e cidadão, entre nascimento e nacionalidade, 9 Stephen Kalberg esclarece, ao manifestar-se sobre a metodologia de Max Weber, que “as pessoas têm capacidade de agir racionalmente em função de valores. Esse tipo de ação existe quando a ação social é ‘determinada por uma crença consciente no valor em si de uma conduta ética, estética, religiosa ou de outra natureza, independentemente das perspectivas de sucesso. A ação racional referente a valores sempre supõe ‘ordens’ ou ‘demandas’ que na opinião do agente lhe são compulsórias’”. E, logo adiante, na p. 36, acrescenta o citado autor weberiano: “a ação tradicional, ‘determinada por hábitos arraigados’, e costumes seculares, é quase sempre uma resposta meramente rotineira a estímulos comuns, situa-se na fronteira da ação dotada de sentido subjetivo” (KALBERG, Stephen. Max Weber: uma introdução. Tradução de Vera Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 35). 10 VARIKAS, Eleni. A escória do mundo: figuras do pária. Tradução de Nair Fonseca, João Alexandre Peschanski. São Paulo: Unesp, 2014.
20 Newton Teixeira Carvalho e Mariana Pereira Paixão eles põe em crise a ficção originária da soberania moderna. Exibindo à luz o resíduo entre nascimento e nação, o refugiado faz surgir por um átimo na cena política aquela vida nua que constitui seu secreto pressuposto. Neste sentido, ele é verdadeiramente, como sugere Hannah Arendt, o ‘homem dos direitos’, a sua primeira e única aparição real fora da máscara do cidadão que constantemente o cobre. Mas, justamente por isto, a sua figura é tão difícil de definir politicamente.11 Não se pode olvidar que a emancipação gritada no Ocidente, deve ser para todos, independentemente de suas origens. Não há que se falar em emancipação, enquanto determinada pessoa, independentemente do Estado de nascimento, for considerada indigna de participação nos benefícios de toda a humanidade. Enquanto não existir humanidade universal, impelida pelo trinômio Nação/Estado/Cidade, os direitos humanos serão ainda apenas utopia, que não se realizará. A nacionalidade é, ainda nomundo atual, o batismo excludente, porta de entrada para a sociedade. Sem esse batismo, existe apenas o “outro”, sujeito de um olhar inferiorizante. E, como alerta ainda Eleni Varikas, “na era do Estado-nação, a humanidade depende amplamente da cidadania, cuja prova culminante é o direito de morrer pela pátria”.12 Ou o dever de morrer pela pátria, o que também nos remete a Geraldo Vandré, na letra de sua música, na qual lições são ensinadas, como a de “morrer pela pátria e viver sem razão”, desprezando o fato de que “Somos todos iguais braços dados ou não”.13 Sim, somos todos irmãos, cidadãos ou não, fazendo parte de uma fraternidade universal e não apenas caseira e doméstica. Atrás desse trinômio em desconstrução nesta pesquisa, busca-se a legitimidade da dominação absolutista, com controle radical sobre os não nacionais, que a qualquer momento podem ser expulsos dos países em que se encontram e pais são apartados dos filhos e a todos, muitas vezes, são negados até mesmo o devido processo legal, que é uma conquista universal, porém e que estrategicamente também permite manipulação, sob o falso argumento de que tal princípio se aplica apenas aos nacionais, quando o correto seria entender que a aplicação é em relação à pessoa e não ao cidadão. Assim é que Sader, após afirmar que o cidadão é “o indivíduo tomado exclusivamente como ser social, independentemente de sua relação com os meios de produção”,14 acrescenta: “Noções como população, nação, 11 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 138. 12 VARIKAS, Eleni. A escória do mundo: figuras do pária. Tradução de Nair Fonseca, João Alexandre Peschanski. São Paulo: Unesp, 2014, p. 33. 13 VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. Canção de 1968. 14 SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 39.
21 Capítulo 1 – Desconstruindo e construindo conceitos: Estado, Nação e Território Estado – sintomaticamente extraídas do vocabulário das análises políticas – tornam-se inócuas como ponto de partida, porque não designam nada como mecanismo real da sociedade moderna, mas apenas dão nome a regiões desse real, compostas de maneira arbitrária”.15 Portanto, tirânico é esse trinômio, posto que sustentado em falsas premissas, em erro e no preconceito, alimentando constantemente o ódio ao não nacional, a perseguição e a escravidão ou a semiescravidão em pleno século XXI, considerando que essas outras pessoas acabam fazendo trabalhos forçados ou ganhando menos que os cidadãos, sem esquecer que os serviços por elas realizados são os que os nacionais não querem fazer, pois considerados indignos, insalubres, contagiosos etc. Ademais, “sob qualquer forma implícita ou explícita que seja, as normas comparamo real a valores, exprimemdiscriminações de qualidades de acordo com a oposição polar de um positivo e de um negativo”.16 Assim é que nasce, em razão do nacionalismo, a figura do outro, o desnacionalizado, o pária, o menos humano, se não desumanizado por completo, ao ser apartado dos filhos no país em que aportou e lançado para fora, como se um objeto fosse, sem maiores questionamentos. Calha aqui, mais uma vez, o alerta de Eleni Varikas, ao falar do pária, o qual estamos igualando ou entendendo ser o imigrante o “grande pária” do momento, porque: O pária não é, pois, apenas uma figura da exclusão política e social. Num sistema de legitimação que faz da humanidade comum a origem da igualdade de direitos, o não reconhecimento de seus direitos faz pesar uma suspeita sobre sua plena e completa humanidade e tende a associar à sua inferioridade social uma inferioridade antropológica.17 Na verdade, do nacional ao cidadão há pouca diferença qualitativa e, dependendo do momento político, pode o cidadão ser mais bem vigiado, pois encurtado é seu espaço de deslocamento e, por conseguinte, os olhares são constantes. E o cidadão também pode ser desqualificado como tal e se tornar um pária, um estrangeiro, dentro da sua própria pátria. Assim, necessário em prol de uma cidadania mundial que os países sejam mais receptivos aos não nacionais, entendendo que, a partir do momento em que tais pessoas aportam em uma determinada nação, devem automaticamente adquirir todos os direitos daquela nação para que 15 SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 48. 16 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 190. 17 VARIKAS, Eleni. A escória do mundo: figuras do pária. Tradução de Nair Fonseca, João Alexandre Peschanski. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 54.
22 Newton Teixeira Carvalho e Mariana Pereira Paixão não haja discriminação. A Constituição deve ser aplicada a todos, nacionais ou não. Na verdade, se é assim em relação a possíveis crimes em que o réu responderá processo segundo a lei do país em que se encontra, não há nenhuma razão de ser de outra maneira em relação aos direitos políticos. Esse nosso enfoque foi, em menor proporção e em um contexto específico, também o de Habermas ao considerar que: A recente discussão sobre o multiculturalismo fez com que o modelo clássico de uma cidadania ‘incolor’ sofresse uma revisão, eWill Kymlicka desenvolveu uma noção de cidadania multicultural com a qual concordo plenamente. A cidadania é uma posição definida pelos direitos civis. Mas temos de considerar também que os cidadãos são pessoas que desenvolveram sua identidade pessoal no contexto de certas tradições, em ambientes culturais específicos, e que, precisam desses contextos para conservar sua identidade.18 Pretendemos uma cidadania universal, na qual o multiculturalismo é apenas uma parte de um todo maior. Necessária é uma cidadania maior, sem exclusão, preconceito, com respeito à individualidade e à autonomia de cada pessoa, uma cidadania desligada da noção petrificada de Nação/ Estado, considerando que somos seres humanos em qualquer parte em que nos encontrarmos e esta humanidade não pode ser enfraquecida apenas em razão de determinada pessoa não pertencer àquele território. Precisamos de um mundo igual para todos, caso contrário haverá sempre negação de direitos, a ponto de Boaventura de Sousa Santos trazer a seguinte colocação para reflexão: A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana é hoje incontestável. No entanto, esta hegemonia convive com uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discursos de direitos humanos. Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou, pelo contrário, de uma derrota histórica.19 E, nesse sentido, os migrantes forçados e os refugiados, sujeitos de direitos que o grupo de pesquisa se propôs pensar sua realidade em um contexto de negação de direitos, é a prova viva das palavras de Boaventura de Sousa Santos em que o discurso dos direitos humanos acaba por legitimar a exclusão social quem como consequência o enfraquecimento 18 HABERMAS, Jurgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 34-35. 19 SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 15.
23 Capítulo 1 – Desconstruindo e construindo conceitos: Estado, Nação e Território das políticas sociais cujo sentido é dar concretude ao bem viver, é reforçar a cidadania para além dos muros do Estado porque é direito universal e independente de todos os outros que as convenções, tratados e acordos internacionais reconhecem. Escrevemos em um outro livro, ao mencionarmos a dificuldade de implementação dos direitos humanos que: Ademais, o conceito de nação vai de encontro à globalização, que ‘significa que o Estado não tem mais o poder ou o desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação’ (BAUMAN, 2005, p. 34). A globalização é uma realidade, sem volta. Assim, ‘todos nós dependemos uns dos outros, e a única escolha que temos é entre garantir mutuamente a vulnerabilidade de todos e garantir mutuamente a nossa segurança comum [...]’ (BAUMAN, 2005, p. 95). Portanto, necessário que sejamos solidários uns com outros, independentemente da nacionalidade. Enfim, necessários que os direitos humanos sejam respeitados, todos, independentemente de fronteira territorial.20 Ainda naquele aludido trabalho, já preocupados com a situação dos refugiados, impedidos que estavam (e estão) de adentrar em diversas partes do mundo ou colocados em guetos nos poucos países que os acolhem, deixamos assentado que: Demonstração cabal de negação dos direitos humanos é tornar as pessoas ‘lixo humano’, caracterizado pela rejeição delas, que são descartadas, eis que não mais necessárias ao funcionamento da economia capitalista. É uma maneira de excluir e, por conseguinte, de aprofundar a desigualdade e aumentar a pobreza, miséria e humilhação.21 Tais colocações vão ao encontro do pária, acima mencionado, e é por tal razão que ainda naquele trabalho acrescentamos: Lixos humanos também são considerados os refugiados, ‘os desterritorializados num mundo de soberania territorialmente assentada’ (BAUMAN, 2005, p. 46), cuja presença física em outro território tem sido constantemente negada, que são colocados em campos para refugiados, o campo de concentração do século XXI, que não são considerados pessoas normais, eis que não são nacionais.22 20 CARVALHO, Newton Teixeira; RIOS, Mariza. Desafios para implementação dos direitos humanos como projeto de sociedade. In: PINTO, João Batista Moreira (Org.). Direitos Humanos como projeto de sociedade: caracterização e desafios. Belo Horizonte: Instituto DH, 2018, v. 1, p. 267. 21 CARVALHO, Newton Teixeira; RIOS, Mariza. Desafios para implementação dos direitos humanos como projeto de sociedade. In: PINTO, João Batista Moreira (Org.). Direitos Humanos como projeto de sociedade: caracterização e desafios. Belo Horizonte: Instituto DH, 2018, v. 1, p. 267. 22 CARVALHO, Newton Teixeira; RIOS, Mariza. Desafios para implementação dos direitos humanos como projeto de sociedade. In: PINTO, João Batista Moreira (Org.). Direitos Humanos como projeto de sociedade: caracterização e desafios. Belo Horizonte: Instituto DH, 2018, v.1, p. 267.
24 Newton Teixeira Carvalho e Mariana Pereira Paixão E, ainda naquele aludido trabalho demonstramos que houve retrocesso com relação ao imigrante e apontamos solução a essa discriminação, advinda do termo nacionalidade: Vale recordar que nos Estados Unidos, na Austrália ou no Canadá, o que se exigia dos imigrantes era jura de fidelidade às leis do país, o que se aproxima do patriotismo constitucional de Habermas e a essas pessoas era garantida a liberdade total, limitada apenas e expressamente pela Constituição. Urge retornar a esses tempos pretéritos. Necessário nos despirmos desta noção de identidade advinda da nacionalidade, considerada por alguns de puro sangue, de triste memória, como legitimadora do nazismo e do fascismo.23 E nossa preocupação com relação aos imigrantes cresceu sobremaneira a partir da era Trump que “concebe o mundo como um campo de batalha em que todos os países estão apostados em dominar os outros”, com “uma clara separação entre vencedor e vencido”.24 Portanto, um mundo belicoso, sob a dominação dos mais fortes e poderosos, é o que pretende o atual Presidente dos Estados Unidos da América, que despreza a cooperação internacional e os valores democráticos. Conforme ressalta Albrigth, “a geração de Franklin Roosevelt e Harry Truman argumentava que os Estados conseguiriam melhores resultados promovendo a segurança, a prosperidade e a liberdade partilhadas”, certos de que “os problemas no estrangeiro, se não forem resolvidos, podem, sem que passe muito tempo, colocar-nos em perigo”.25 É de Albrigth que vem a proposta de uma necessária simpatia – e consequente empatia –, em relações às outras pessoas como maneira de não aceitarmos o prevalecimento do Estado fascista, já em atuação, infelizmente, pelos votos da maioria, em alguns países, o que coloca o Estado Democrático de Direito Constitucional, em permanente preocupação. Alerta o autor: Que todos os seres humanos têm o mesmo valor. Esta generosidade de espírito – este importar-se com os outros e com o princípio de que todos somos criados iguais – é o antídoto individual mais eficaz contra o entorpecimento moral egocêntrico que permite ao fascismo florescer. É uma capacidade que existe na maioria das pessoas, mas que nem sem23 CARVALHO, Newton Teixeira; RIOS, Mariza. Desafios para implementação dos direitos humanos como projeto de sociedade. In: PINTO, João Batista Moreira (Org.). Direitos Humanos como projeto de sociedade: caracterização e desafios. Belo Horizonte: Instituto DH, 2018, v. 1, p. 267. 24 ALBRIGHT, Madeleine. Fascismo. Um alerta. Tradução de Ana Glória Lucas. Lisboa: Clube do Autor, 2018, p. 23. 25 ALBRIGHT, Madeleine. Fascismo. Um alerta. Tradução de Ana Glória Lucas. Lisboa: Clube do Autor, 2018, p. 23.
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