Equidade de gênero e raça em perspectiva interseccional

Laura Cecilia López Gisele Cristina Tertuliano Cauê Rodrigues (Organizadores) EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA EM PERSPECTIVA INTERSECCIONAL DIALOGANDO SOBRE POLÍTICAS, CUIDADOS E SAÚDE COLETIVA Casa Leiria

O livro está composto por uma seleção de textos relacionados a dissertações e teses defendidas nos PPGs em Ciências Sociais e em Saúde Coletiva, a Trabalhos de Conclusão de Curso e das Residências Multiprofissionais em Atenção Básica e em Saúde Mental, assim como a resultados de pesquisas coordenadas pelas professoras Laura Cecilia López e Tonantzin Ribeiro Gonçalves, com participação de bolsistas de iniciação científica. Com esta publicação, pretendemos ressaltar a relevância da produção de conhecimento que entrelace não só áreas de estudo diferenciadas, mas fundamentalmente baseada em epistemes que abram caminhos para a investigação e práxis críticas, para corpos engajados nas micropolíticas cotidianas, com vistas às transformações e a justiça social.

EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA EM PERSPECTIVA INTERSECCIONAL DIALOGANDO SOBRE POLÍTICAS, CUIDADOS E SAÚDE COLETIVA Laura Cecilia López Gisele Cristina Tertuliano Cauê Rodrigues (organizadores) CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2024

EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA EM PERSPECTIVA INTERSECCIONAL: DIALOGANDO SOBRE POLÍTICAS, CUIDADOS E SAÚDE COLETIVA DOI: https://doi.org/10.29327/5393978 Organizadores: Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues. Capa: recorte da imagem gerada por Canva (IA Image Gen App). Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Editora Casa Leiria – Conselho Editorial Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS) Ana Patrícia Sá Martins (Uema) Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo (UERN) Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco (UFRN) Haide Maria Hupffer (Feevale) Isabel Cristina Arendt (Unisinos) José Ivo Follmann (Unisinos) Luciana Paulo Gomes (Unisinos) Luiz Felipe Barboza Lacerda (Unicap) Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos) Rosangela Fritsch (Unisinos) Tiago Luís Gil (UnB) PPG SAÚDE COLETIVA PPG CIÊNCIAS SOCIAIS E64 Equidade de gênero e raça em perspectiva interseccional: dialogando sobre políticas, cuidados e saúde coletiva [recurso eletrônico] / organização Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano, Cauê Rodrigues. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ acervo/cienciassociais/equidade/index.html> ISBN 978-85-9509-114-6 1. Sociologia – Saúde coletiva. 2. Saúde coletiva – Programas de saúde e políticas públicas. 3. Saúde coletiva – Atenção e assistência – Dinâmicas de gênero, classe e raça. 4. Sociologia – Saúde coletiva – Pesquisa e iniciação científica. I. López, Laura Cecilia (Org.). II. Tertuliano, Gisele Cristina (Org.). III. Rodrigues, Cauê (Org.). CDU 316:614

EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA EM PERSPECTIVA INTERSECCIONAL DIALOGANDO SOBRE POLÍTICAS, CUIDADOS E SAÚDE COLETIVA

6 Equidade de gênero e raça em perspectiva interseccional: dialogando sobre políticas, cuidados e saúde coletiva SUMÁRIO 9 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas Laura Cecilia López Gisele Cristina Tertuliano Cauê Rodrigues 23 Demarcando o espaço discursivo para pensar masculinidades e a equidade de gênero Cauê Rodrigues 39 Podem os homens falar sobre o enfrentamento à violência de gênero? Kathleen Kate Dominguez Aguirre 59 Reflexões sobre o processo de notificação da violência de gênero na Atenção Primária à Saúde Fernanda Copetti Müller Tainara da Rosa 71 Práticas grupais na Atenção Primária à Saúde: relações de gênero e cuidado em um território periférico de São Leopoldo/RS Sabrina Feiber da Silva Laura Cecilia López 91 Narrativas de usuárias do SUS sobre experiências de assistência ao parto na região metropolitana de Porto Alegre/RS: reflexões sobre violência obstétrica Natália Inês Schoffen Corrêa Carolina Pereira Montiel Laura Cecilia López 115 Atravessando as categorias interseccionais: a caminho da justiça reprodutiva entre gênero e raça Milena Cassal Pereira 143 Transmissão vertical da sífilis: trajetórias femininas em uma perspectiva interseccional Gisele Cristina Tertuliano

7 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues (organizadores) 167 Trabalho e produção de cuidado na prevenção da transmissão vertical do HIV/aids na rede de saúde de Porto Alegre Tonantzin Ribeiro Gonçalves Lisiane Morelia Weide Acosta Gabriela Tavares 193 Testes rápidos para HIV/IST e cuidado em saúde na atenção primária na ótica de profissionais e gestantes Éthel de Almeida Ribas Jeneson Tavares da Cruz Tonantzin Ribeiro Gonçalves 217 Um olhar aos socialmente invisíveis: aspectos de vida, condições de saúde e acesso ao SUS da população em situação de rua na cidade de Sapucaia do Sul/RS Suzene Pizani da Silva 243 Experiências e demandas em saúde mental de pessoas trans na cidade de Porto Alegre/RS Maurício Krahn Laura Cecilia López 257 Percursos terapêuticos de pessoas surdas: estigma e cuidado em saúde mental Ingrid D’Avila Francke Tonantzin Ribeiro Gonçalves 289 Narrativas biográficas de mulheres negras doutoras: analisando o racismo cotidiano na saúde coletiva Rose Mari Ferreira

9 INTRODUÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO LABORATÓRIO DE INTERSECCIONALIDADES, EQUIDADE E SAÚDE (LABIES): OS NOSSOS CORPOS IMPLICADOS EM PESQUISAS E PRÁXIS CRÍTICAS Laura Cecilia López Gisele Cristina Tertuliano Cauê Rodrigues Este livro pretende mostrar a caminhada nos primeiros anos de existência do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES), que foi certificado como Grupo de Pesquisa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no ano de 2021. O LabIES é produto de uma construção coletiva que se iniciou alguns anos atrás, quando nossos corpos e histórias convergiram no espaço da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), principalmente nos Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e em Ciências Sociais. O grupo congrega discentes nos diferentes níveis de ensino, considerando também a Iniciação Científica e a Residência Multiprofissional em Saúde. Somos um grupo que produz pesquisa e práxis críticas entrelaçando diferentes áreas de conhecimento, espaços de vida e de resistência. As duas professoras que lideram o grupo, Laura Cecilia López e Tonantzin Ribeiro Gonçalves, têm trabalhos de longa data na articulação de problemáticas de gênero, interseccionalidades e produção de cuidado em saúde, em projetos coordenados e/ou orientados por elas. Estes trabalhos se refletem em diversas publicações (Gonçalves et al., 2024; Müller, López, 2023; Rodrigues et al., 2022; Vicari; López, 2022; Costa; Gonçalves, 2021; López et al., 2021; Montiel; López, 2020; Bellotto et al., 2019; entre outras). No Laboratório contemplam-se propostas investigativas e de intervenção social vinculadas à produção da saúde e à promoção da equidade, a partir de abordagens interseccionais e decoloniais que se fortalecem nos estudos de gênero e de relações étnico-raciais latino-americanos. Discute-se a intervenção social interseccional e o uso de metodologias DOI: https://doi.org/10.29327/5393978.1-1

10 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas participativas para a elaboração de diagnósticos, bem como o delineamento e aplicação de ferramentas de avaliação e promoção da equidade em diálogo com problemáticas concretas levantadas por diferentes coletivos. Nesse sentido, visa-se uma articulação entre produção acadêmica, demandas de organizações da sociedade civil e gestão de políticas em setores públicos e privados. Congrega-nos realizar pesquisas com abordagem interseccional de gênero, raça e classe, baseada na contribuição de três intelectuais que se tornaram centrais na nossa proposta: as antropólogas negras (mulheres cis) latino-americanas Lélia Gonzalez e Mara Viveros Vigoya, e a socióloga trans (mulher branca) australiana Raewyn Connell. Adotamos uma perspectiva relacional para entender as relações raciais e de gênero através das vidas localizadas de sujeitos e sociedades, atravessadas pelos processos históricos que as constituíram. Assim, pensamos raça e gênero como eixos estruturais dentro do sistema-mundo colonial/patriarcal/capitalista/moderno (Lugones, 2008), sendo que a produção do binarismo de gênero baseado em um essencialismo biológico que fundamenta o CIStema (Nascimento, 2021) e a construção de parâmetros/valores da família patriarcal cisheterossexual e branca como ideal de civilidade/modernidade fazem parte dessa genealogia (Viveros-Vigoya, 2018). Entrelaçando pensamentos, entendemos a interseccionalidade como dinâmicas sociais entrecruzadas e potencializadas que nos ajudam a entender tanto o nível macro das relações de poder e a produção de desigualdades no Sul Global, quanto o nível micro das experiências localizadas e as subjetividades em contextos de colonialidade (Gonzalez, 2020; Viveros-Vigoya, 2016; Connell, 2016). Ressaltamos aqui o pensamento de Lélia Gonzalez, que nos inspira com suas produções acadêmicas originais e instigantes realizadas no Brasil na década de 1980, em pleno auge da abertura democrática e da aprovação da Constituição Federal de 1988. Ela foi uma antropóloga e ativista mulher negra que lutou nos movimentos sociais feministas e negros, assim como na academia, espaço este em que foi invisibilizada. Vinculou o racismo e o sexismo à formação social da América Latina, numa genealogia colonial que desvenda as relações de poder já instituídas na península ibérica e que se alastraram e reforçaram no contexto latino-americano. A autora cria o conceito de Améfrica Ladina, para expressar a construção sociocultural da supremacia da branquitude europeia num sistema de racismo “por denegação”, herdado dos dispositivos ibéricos para exaltar a “pureza de sangue” e delimitar os lugares sociais sem precisar explicitar os conflitos raciais. Ao mesmo tempo, expressa as resistências e as existências amefricanas como potências de vida no nosso território (Gonzalez, 2020).

11 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues A publicação no Brasil do livro “Interseccionalidade”, de Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge, deu um impulso renovado às ideias do Laboratório, sendo que as autoras reivindicam a interseccionalidade como investigação e práxis críticas. Segundo as autoras, “a interseccionalidade como forma de investigação crítica invoca um amplo sentido de usos de estruturas interseccionais para estudar uma variedade de fenômenos sociais [...] em contextos sociais locais, regionais, nacionais e globais” (p. 53). Por sua vez, a interseccionalidade como prática crítica, característica dos ativismos de movimentos sociais, de sujeitos e coletivos na esfera pública, “faz o mesmo, mas de maneiras que, explicitamente, desafiam o status quo e visam a transformar as relações de poder” (p. 53). A ideia que propõem as autoras é de congregar essas potências, para provocar mudanças na própria academia e para além dela (Collins; Bilge, 2021). Podemos ainda relacionar a interseccionalidade como investigação e práxis críticas com um conceito mediador que a conecte com as políticas públicas e os sistemas de proteção social, como é o caso da equidade. Entendemos a equidade como instrumento da justiça concreta, com ações que tratam indivíduos e populações que sofrem desigualdades conforme suas necessidades diferenciadas, constituindo uma via de efetivação da igualdade e universalidade das políticas públicas (Silva; Almeida Filho, 2009). A discussão de equidade permite contemplar segmentos da população através do reconhecimento de uma pluralidade de existências e necessidades sociais para a viabilização de respostas políticas frente a desigualdades persistentes, assim como em conjunturas críticas. O caso do Brasil é interessante nesse contexto de discussões. Sua Constituição de 1988 instaurou as bases para projetar um Sistema de Proteção Social, que foi posto em ato num cenário em que as políticas de ajuste estrutural afetaram de maneira diferenciada as populações que historicamente não tinham acesso pleno a direitos. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi projeto político de movimentos sociais e de reforma sanitária, tem enfrentado os desafios de um acesso universal num país com profundas desigualdades, e em cenários de constante subfinanciamento e de ampliação das políticas de austeridade. Por sua vez, o SUS incorporou uma ideia de cuidados integrais e ampliados de saúde, com a intensificação da Atenção Primária à Saúde (APS) e o elo entre os sistemas de saúde pública e os territórios. Movimentos sociais diversos e lutas pela garantia de direitos se viram refletidas nas Constituições dos diferentes países latino-americanos e nos rumos de políticas públicas de vários governos no início do século XXI (Gargarella et al, 2016). Muitas dessas políticas se efetivaram através da noção de equidade e justiça social, que ressaltamos anteriormente. Porém, continuam

12 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas em aberto dilemas para a resolução de problemas nodais das sociedades latino-americanas. Os processos de expansão das políticas neoliberais e as tensões provocadas pelo capitalismo globalizado contemporâneo têm efeitos devastadores sobre corpos e territórios, principalmente no Sul Global. O acirramento de violências estruturais recai sobre segmentos da sociedade historicamente relegados e se expressa, por exemplo, no aumento dos casos de feminicídios, de agressões e assassinatos de pessoas LGBTI+1 e de jovens negros das periferias urbanas, e em ataques diversos aos territórios/populações indígenas e quilombolas, conforme mostram diversos estudos (Faria, 2020; Observatório..., 2022; Polidoro; Canavese, 2018; Solano; Icaza, 2019; Waiselfisz, 2012; 2013, entre outros). Notam-se os impactos das violências e desigualdades, as regulações da vida e o poder de morte exercido sobre amplos setores das sociedades latino-americanas. Cabe destacar que esses processos se intensificaram com as fragilidades das respostas políticas à pandemia de covid-19, assim como pelos contextos de crises democráticas relacionadas ao avanço de setores ultraconservadores nos governos da região. No Brasil, este cenário se desdobrou em austeridade e ajuste estrutural da máquina pública, cerceamento de acesso a direitos básicos, violações de direito à vida de populações negras, indígenas e LGBTI+, e as próprias ações negacionistas que multiplicaram as mortes por covid-19 no país na conjuntura do governo Bolsonaro. São esses cenários macro e microssociais que nos instigam a delinear pesquisas e ações que possam ter impacto nessas realidades, apostando nas resistências e (re)existências de sujeitos e grupos que fazem dos corpos, territórios políticos, nas lutas por reconstruir e amplificar as potências de vida (Solano; Icaza, 2019). Cabe ressaltar que muitas/os das/os discentes que compõem o grupo acessaram a universidade através de políticas de ação afirmativa que ampliaram o acesso ao ensino superior operantes com maior força na primeira década do Século XXI. Como se trata de instituição privada, referimos principalmente ao Programa Universidade para Todos (Prouni), no nível de graduação, e às bolsas do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (Capes-Prosuc). A própria líder do grupo, de origem argentina, cursou seu doutorado em Antropologia Social no Brasil com bolsa do Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG), de cooperação sul-sul. Com isso, ressaltamos que somos produto do acesso à universidade de uma pluralidade de sujeitos considerando pertencimento racial, posição de classe, diversidade 1 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Intersexo e outras identidades dissidentes de gênero e sexualidade.

13 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues sexual e de gênero, que historicamente não se viam representadas/es/os na academia. O Laboratório tem também a característica de congregar discentes participantes de movimentos sociais e coletivos de luta pela efetivação de direitos. Não menos importante, o grupo congrega também trabalhadoras/ es do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Estas singularidades se veem expressas nas problemáticas de pesquisa engajadas nas realidades e nas áreas de atuação e ativismo das/ os pesquisadoras/es. O livro está composto por uma seleção de textos relacionados a dissertações e teses defendidas nos PPGs em Ciências Sociais e em Saúde Coletiva, a Trabalhos de Conclusão de Curso e das Residências Multiprofissionais em Atenção Básica e em Saúde Mental. Conta também com resultados de pesquisas coordenadas pelas professoras Laura e Tonantzin, com participação de bolsistas de iniciação científica. O primeiro capítulo abre a reflexão sobre masculinidades e a equidade de gênero. É um recorte da dissertação de mestrado em Ciências Sociais de Cauê Rodrigues (2022), que analisou as construções de masculinidades de profissionais atuantes na APS, questionando como essas identidades têm efeitos na produção do cuidado. No texto é trazida uma discussão do conceito de gênero e das masculinidades a partir de uma construção histórica e social, adentrando na discussão colonial, ao perceber que gênero sempre foi uma das principais ferramentas de controle dos corpos colonizados, sendo imprescindível sua demarcação para a compreensão das formas como os sujeitos existem e se relacionam na contemporaneidade. O capítulo 2 traz uma reflexão oriunda da tese de doutorado de Kathleen Kate Dominguez Aguirre (2023). A partir de uma incursão etnográfica atravessada pelo tema do feminicídio, a autora problematiza o enfrentamento à violência de gênero discutindo os conceitos de interseccionalidade e masculinidades com base em uma perspectiva decolonial e multicentrada e abrindo uma crítica ao uso despolitizado de categorias de gênero e interseccionais ao questionar qual o lugar dos homens no enfrentamento à violência de gênero. Dentro deste escopo, evidenciam-se masculinidades como heterogêneas e relacionais, produzidas historicamente, culminando no enfrentamento à violência de gênero como tarefa de todas e todos. O capítulo 3 é um recorte do trabalho de conclusão de residência de Fernanda Coppetti Müller (defendido em 2022, publicado como artigo em Müller e López, 2023), e contou com a colaboração de Tainara da Rosa para ampliar as reflexões sobre uma intervenção em duas equipes de Saúde da Família durante o período de inserção no campo da Residência Mul-

14 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas tiprofissional em Atenção Básica. O intuito do texto é relatar a dinâmica de sensibilização das equipes para o enfrentamento da violência de gênero, sendo uma problemática que emergiu frente a identificação de fragilidades no cotidiano dos profissionais para atuarem nesses casos. O capítulo 4 corresponde ao trabalho de conclusão de curso de Ciências Sociais de Sabrina Feiber da Silva (2022), inserido no projeto de pesquisa Equidade de gênero e políticas do cuidado em contexto de pandemia: pesquisa-ação em territórios da cidade de São Leopoldo/RS coordenado pela professora Laura Cecilia López. Neste recorte é analisado como os grupos de convivência (principalmente o grupo de artesanato) ofertados na APS interferem na vida daquelas pessoas que deles participam. Os resultados mostram que as práticas grupais presentes na APS são importantes para auxiliar nas mais diversas questões de saúde, ao proporcionar bem-estar e criar/fortalecer relações de amizade e companheirismo entre as participantes. Essas práticas propiciam que as pessoas vivenciem o cuidado em suas diferentes formas. Uma questão limitante notada é que os grupos não estão dando conta de demandas relacionadas à violência de gênero, sendo que mulheres participantes relataram experiências que as marcaram. Também foi notada a baixa procura dos homens pelos grupos e de modo geral pelos cuidados produzidos na Unidade de Saúde. Aponta-se para o desenvolvimento de estratégias para atrair os homens para esses cuidados, inclusive para refletir sobre violência de gênero que muitas vezes os atinge, seja como vítimas ou como produtores de violência. O capítulo 5 apresenta resultados de pesquisa do projeto Assistência pré-natal, humanização e micropolíticas: um estudo antropológico sobre as experiências de gestantes no contexto do SUS coordenado pela professora Laura, e inclui o trabalho de iniciação científica de Natália Inês Schoffen Corrêa e recorte da dissertação de mestrado de Carolina Pereira Montiel defendida em 2017 (publicada como artigo em Montiel e López, 2020). No texto, são analisadas narrativas de gestantes sobre violências sofridas durante a assistência ao parto. Pretende-se ampliar o conceito de violência obstétrica, tanto ao trazer outras dimensões das violências, que articulam marcadores de raça, classe, idade; quanto ao explorar dimensões internas ao conceito, focando nos efeitos subjetivos, na tentativa de buscar caminhos ético-políticos de enfrentamento e eliminação dessas violências. O capítulo 6 é fruto da tese de doutorado em Ciências Sociais de Milena Cassal Pereira (2023), que analisou as trajetórias reprodutivas de quatro pessoas negras em situação de rua em Porto Alegre/RS. O entrelaçamento da análise das trajetórias biográficas com a ferramenta interseccional da Justiça Reprodutiva produzida por intelectuais negras, ofereceu a possibilidade de refletir sobre os atravessamentos das injustiças reproduti-

15 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues vas ao longo da vida destas pessoas, que vivem em situação de rua. O direito de decidir se deseja ou não ter filhas/es/os, o direito de poder criar estes filhos/es/as em comunidades seguras, com todos os direitos garantidos e a decisão sobre o corpo, planejamento familiar e aborto são fundamentais para Justiça Reprodutiva e devem ser inseridos nas agendas das políticas públicas, nos diversos temas que se relacionam com as vidas negras, e a luta contra a desagregação das comunidades e famílias negras. O capítulo 7 é um recorte da tese de doutorado em Saúde Coletiva de Gisele Cristina Tertuliano (2021). Analisam-se experiências de mulheres que vivenciaram a sífilis durante a gestação e a decorrente transmissão vertical em um município da região metropolitana de Porto Alegre/RS. Com o intuito de ampliar o olhar para as dinâmicas sociais que envolvem esse processo, questiona-se como e em que medida a produção de cuidado na assistência à saúde da mulher interfere sobre as trajetórias reprodutivas de sujeitos cujas vidas estão atravessadas por várias desigualdades. Reflete- -se sobre as dinâmicas de gênero, classe e raça que se interseccionam nessas trajetórias e na produção de cuidado. Os resultados mostraram trajetórias reprodutivas distintas marcadas por vulnerabilidades. Há necessidade de estudos qualitativos para que os profissionais reflitam sobre um cuidado capaz de promover a autonomia das mulheres. O capítulo 8 apresenta um recorte de pesquisa coordenada pela professora Tonantzin Ribeiro Gonçalves, Biopolíticas e desafios éticos da gestão da prevenção do HIV entre crianças na Rede de atenção à saúde: o caso do Comitê da Transmissão Vertical de Porto Alegre/RS. O projeto contou com a colaboração da servidora da Prefeitura Municipal da Saúde de Porto Alegre, Lisiane Morelia Weide Acosta. Como parte de sua atuação no projeto, a graduanda e bolsista de Iniciação Científica Gabriela Tavares, desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso em Psicologia (Tavares, 2022) que também compõe o capítulo. O estudo focalizou o trabalho do Comitê para enfrentamento da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis Congênita de Porto Alegre e a produção de cuidado na rede de atenção à saúde quanto à prevenção da transmissão vertical do HIV/Aids. Percebeu- -se a necessidade de uma atuação mais articulada e qualificada do trabalho em rede não apenas do ponto de vista dos processos de trabalho, mas também para a garantia de direitos das mulheres. Os achados fazem refletir sobre como a produção de um cuidado integral e equânime para pessoas vivendo com HIV, que leve em conta a perspectiva de gênero, raça e classe, depende também da produção de condições dignas de trabalho em saúde, bem como de processos reflexivos e solidários na rede de saúde, revelando o entrecruzamento entre as dimensões trabalho e cuidado.

16 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas No capítulo 9 são apresentados dados da dissertação de mestrado em Saúde Coletiva de Ethel de Almeida Ribas (2015) com colaboração de Jeneson Cruz e Tonantzin Ribeiro Gonçalves (orientadora). O estudo buscou compreender como têm se dado a utilização do Teste Rápido (TR) para HIV/Sífilis/Hepatites no cuidado de pré-natal da APS a partir da perspectiva de gestantes e profissionais da saúde, em um cenário de epidemia generalizada como é o caso do município de Porto Alegre. Analisou-se como a APS tem operacionalizado o cuidado e quais as estratégias de sanitarização engendradas nesse processo. Como resultados, mostra-se que o controle do corpo das mulheres e dos aspectos reprodutivos apareceu no trabalho da APS e da rede de atenção, sendo que os TR se somam a programas de saúde e políticas públicas já existentes nesta área que permanecem tendo dificuldades de atuar na redução das desigualdades raciais, de classe e de gênero e na produção da autonomia. No capítulo 10 são analisados dados referentes ao trabalho de conclusão de residência em Atenção Básica de Suzene Pizani da Silva (2023). São abordados aspectos de vida e condições de saúde através das narrativas de pessoas que se encontram em situação de rua na cidade de Sapucaia do Sul/RS, tendo como pano de fundo a problemática do acesso da população em situação de rua à rede de saúde, e considerando a promoção da saúde como parte dos direitos sociais, do direito à vida. O capítulo 11 corresponde ao trabalho de conclusão de residência multiprofissional em Saúde Mental de Maurício Krahn (2021), que analisou experiências de acesso aos serviços de saúde de pessoas trans usuárias de um ambulatório orientado ao cuidado desse público na APS de Porto Alegre. Questionou-se em que medida a dimensão da saúde mental aparece nas demandas em saúde dessas pessoas. O estudo apontou que a experiência de pessoas trans nos serviços de saúde é marcada pela transfobia. Tais acontecimentos levam à construção coletiva de espaços específicos para atender a população trans, como o Ambulatório T de Porto Alegre. No entanto, tais serviços existem devido à falta de preparo e o preconceito internalizado de diversos profissionais. Conforme visto nos relatos, usuárias/ os/es do Ambulatório T se sentem acolhidos dentro do serviço, simplesmente pelo fato de terem seus direitos básicos respeitados. Destaca-se que a produção do cuidado com a população trans deve levar em consideração a pluralidade de experiências e ainda romper com a cisnormatividade que regula as formas de entendimento dessas vivências, de maneira a enfrentar a transfobia. O capítulo 12 é produto da tese de doutorado em Saúde Coletiva de Ingrid D’Avila Francke (2018). Apresenta estudo que analisa os percursos terapêuticos em saúde mental de pessoas Surdas, suas crenças e

17 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues representações sobre a multiplicidade de cuidados disponíveis, bem como os significados e trajetórias de vida relacionadas às suas demandas de saúde. Considerando as dificuldades de acesso e as barreiras linguísticas enfrentadas pelos Surdos com relação aos cuidados em saúde, bem como o duplo estigma social envolvendo a doença mental e a Surdez, e o ouvicentrismo banalizado nas práticas dos profissionais, entende-se que o acompanhamento das experiências dos Surdos em seus percursos terapêuticos pode contribuir para a compreensão das suas necessidades e colaborar com a construção de novas maneiras de produzir saúde com estas pessoas. O capítulo 13 corresponde à tese de doutorado em Saúde Coletiva de Rose Mari Ferreira (2024), que analisou trajetórias de mulheres negras doutoras, considerando suas posições no espaço acadêmico e científico da Saúde Coletiva no Brasil. Parte-se do pressuposto de que o campo da saúde coletiva, assim como outros campos acadêmicos e a produção científica no Sul Global, estão estruturados a partir do racismo e do sexismo que compõem as sociedades sulinas, como parte da colonialidade do poder e do saber. As entrevistadas apontaram situações de racismo que vivenciaram durante suas trajetórias formativas, da graduação à pós-graduação e no exercício da docência. Igualmente trouxeram em suas narrativas as estratégias que desenvolveram para poderem sobreviver nesses espaços carregados de opressões. Com esta publicação, pretendemos ressaltar a relevância da produção de conhecimento que entrelace não só áreas de estudo diferenciadas, mas fundamentalmente baseada em epistemes que abram caminhos para a investigação e práxis críticas, para corpos engajados nas micropolíticas cotidianas, com vistas às transformações e a justiça social. Essa obra também contribui para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas no sentido de dialogar com a sociedade sobre o papel das políticas públicas no enfrentamento das desigualdades de gênero, raça, etnia, sexualidade, geração entre outras. Estes modos de conceber a pesquisa/intervenção nem sempre encontram ecos nas instituições acadêmicas, e muito menos nos sistemas de avaliação da Pós-graduação baseados na meritocracia e no produtivismo. São mais acolhidos quando as instituições e os critérios de avaliação valorizam o impacto social e a relevância cidadã das pesquisas. Apostamos pela mudança de paradigmas para a valorização da ciência comprometida com as realidades sociais e com posturas cada vez mais dialógicas e inclusivas em relação às demandas de uma pluralidade de atores da sociedade.

18 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas Referências AGUIRRE, Kathleen Kate Dominguez. Gênero e Colonialidade: feminicídio e masculinidades na América Latina. 2023. 215 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023. BELLOTTO, P. C. B.; LOPEZ, L. C.; PICCININI, César Augusto; GONÇALVES, Tonantzin Ribeiro. Entre a mulher e a salvação do bebê: experiência de parto de mulheres com HIV. Interface (Botucatu. Online), v. 23, p. e180556, 2019. COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. CONNELL, R. Gênero em termos reais. São Paulo: nVersos, 2016. COSTA, A. H. C.; GONÇALVES, Tonantzin Ribeiro. Globalização farmacêutica e cidadania biológica: notas sobre a implementação da profilaxia pós-exposição no Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, p. e00041420, 2021. FERREIRA, Rose Mari. Narrativas (Auto)biográficas de mulheres negras doutoras: estilhaçando a máscara e escancarando o racismo, o sexismo e a branquitude na Saúde Coletiva. 2024. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2024. FRANCKE, Ingrid D’Avila. Itinerários terapêuticos de surdos em busca de cuidados em saúde mental. 2018. 159 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2018. Disponível em: http://repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISI NOS/10229/Ingrid%20D%27Avila%20Francke_.pdf. Acesso em: 26 mar. 2024. GARGARELLA, R.; PADUA, T.; GUEDES, J. Constitucionalismo latino-americano: direitos sociais e a “sala de máquinas” da Constituição. Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 34-41, 2016. GONÇALVES, Tonantzin Ribeiro; TAVARES, G.; GUIMARAES, N. L.; Junges, J. R.; LOPEZ, L. C. Transmissão vertical do HIV na rede de saúde: reflexões sobre gênero e cuidado a partir de um caso emblemático. Saúde e Sociedade, v. 33, n. 1, e230102pt, 2024. GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020. 375 p.

19 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues KRAHN, Maurício. Saúde Mental da População Trans: Experiências e Demandas no Acesso aos Serviços de Saúde. Trabalho de Conclusão de Residência (Pós Lato-Sensu). Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2021. LÓPEZ, L. C.; SITO, L. S.; BORRERO-RAMÍREZ, Y. E. La dimensión global de las políticas de género y salud en América Latina: un análisis decolonial. Civitas, Revista de Ciências Sociais, v. 21, n. 3, p. 380-390, 2021. MONTIEL,Carolina Pereira. Saúde e direitos reprodutivos: uma abordagem interseccional de gênero e raça. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos,São Leopoldo, 2017. MONTIEL, C. P.; LÓPEZ, L. C. Trajetórias reprodutivas femininas e produção do cuidado em saúde orientado às gestantes na cidade de São Leopoldo/RS: um olhar interseccional. Revista Gênero, v. 20, p. 300-322, 2020. MÜLLER, F. C.; LÓPEZ, L. C. Notificação compulsória e o enfrentamento à violência de gênero: pesquisa-intervenção em uma equipe de saúde da família. Revista Diversidade e Educação, v. 11, p. 632656, 2023. NASCIMENTO, Letícia. Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaira, 2021. OBSERVATÓRIO DE MORTES E VIOLÊNCIAS CONTRA LGBTI+ NO BRASIL. Dossiê 2021. Acontece Arte e Política LGBTI+; ANTRA; ABGLT. Florianópolis: Acontece, ANTRA, ABGLT, 2022. PEREIRA, Milena Cassal. Do voo da fênix aos mandamentos do peregrino: justiça reprodutiva e a presença negra nas ruas do Partenon em Porto Alegre/RS. 2023 185 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023. POLIDORO, M.; CANAVESE, D. (org.) Situação da violência contra as populações negra, LGBT, indígena e em situação de rua no Sistema Único de Saúde do Rio Grande do Sul, Brasil panorama situacional do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) de 2014 a 2017. Porto Alegre: UFRGS, 2018.

20 Introdução: A construção do Laboratório de Interseccionalidades, Equidade e Saúde (LabIES): os nossos corpos implicados em pesquisas e práxis críticas RIBAS, Ethel de Almeida. Teste rápido para detecção de HIV na atenção primária: a perspectiva de profissionais e gestantes durante o pré-natal em Porto Alegre. 2015. 123 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2015. Disponível em: http://repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/Unisinos/10194/Éthel+de+Al meida+Ribas_.pdf?sequence=1. Acesso em: 26 mar. 2024. RODRIGUES, Cauê. Masculinidades e Cuidados Comunitários em Contexto de Pandemia: formulações e transformações na cidade de São Leopoldo. 2022. 103 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2022. Disponível em: http:// repositorio.jesuita.org.br/handle/Unisinos/12005?locale-attri bute=es. Acesso em: 26 mar. 2024. RODRIGUES, Cauê; CORREA, Natália Inês Schoffen; WENDT, Lucas de Bárbara; LÓPEZ, Laura Cecilia. As políticas do (não) Cuidado Masculino: aplicações teóricas e práticas para a saúde em contexto comunitário. Research, Society and Development, v. 11, p. e53611932207, 2022. SILVA, L. M. V.; ALMEIDA FILHO, N. Equidade em saúde: uma análise crítica de conceitos. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 25, Supl. 2, S217-S226, 2009. SILVA, Sabrina F. Práticas Grupais na Estratégia Saúde da Família: Relações de gênero e cuidado na ESF COHAB Feitoria em São Leopoldo/ RS. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2022. SILVA, Suzene P. Um olhar aos socialmente invisíveis: aspectos de vida, condições de saúde e acesso ao SUS da População em Situação de Rua na cidade de Sapucaia do Sul/RS. Trabalho de Conclusão de Residência (Pós Lato-Sensu). Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2023. SOLANO, X.; ICAZA, R. En tiempos de muerte. Cuerpo, Rebeldía, Resistencias. Buenos Aires: CLACSO, 2019. TAVARES, Gabriela. Produção de cuidado na prevenção da transmissão vertical do HIV no Comitê de Porto Alegre. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Psicologia) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2022.

21 Laura Cecilia López, Gisele Cristina Tertuliano e Cauê Rodrigues TERTULIANO, G. Experiências Femininas sobre a Transmissão Vertical da Sífilis : um estudo qualitativo no município de Cachoeirinha/RS. Tese (Doutorado). Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva,Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2021. VICARI, V.; LÓPEZ, L. C. Das (des)construções ao reconhecimento do gênero: narrativas e corporificações de pessoas trans. In: OLIVEIRA, Esmael Alves de (org.). Diálogos contemporâneos sobre Corpo(s), Sujeito(s) e Saúde: perspectivas cruzadas. Salvador: Segundo Selo, 2022, p. 151-174. VIVEROS-VIGOYA, M. As cores da masculinidade. Experiências interseccionais e práticas de poder na Nossa América. Rio de Janeiro: Papeis Selvagens, 2018. WAISELFISZ, J. Mapa da Violência 2012. A cor dos homicídios no Brasil. Brasília: SEPPIR; CEBELA; Flacso, 2012. WAISELFISZ, J. Mapa da Violência 2013. Homicídios e juventude no Brasil. Brasília: SPJ; SEPPIR; CEBELA; Flacso, 2013.

23 DEMARCANDO O ESPAÇO DISCURSIVO PARA PENSAR MASCULINIDADES E A EQUIDADE DE GÊNERO1 Cauê Rodrigues2 Este capítulo inicia as discussões de gênero na perspectiva relacional, dialogando com o colonialismo e como ele sempre foi marcado por relações generificadas e binárias. Ele condensa parte das discussões realizadas pelo Laboratório de Interseccionalidades, Equidades e Saúde (LabIES) e é fruto da dissertação escrita pelo autor, que se propôs a analisar as construções de masculinidades de profissionais atuantes na Atenção Primária à Saúde (APS), questionando como essas identidades tem efeitos na produção do cuidado (Rodrigues, 2022). Demarco o conceito de gênero a partir de uma construção histórica e social, no qual o biológico e o simbólico dialogam com as estruturas de poder presentes em cada cultura, o corpo serve de palco para os diferentes ensaios de gênero, através de uma incansável disputa entre diferentes discursos que buscam nomear suas possibilidades. Adentro na discussão colonial, ao perceber que gênero sempre foi uma das principais ferramentas de controle dos corpos colonizados, sendo imprescindível sua demarcação e discussão para a compreensão das formas como os sujeitos existem e se relacionam na contemporaneidade. Assim, compreender a relação entre colonizador e colonizado se faz fundamental, pois, é a partir dessa binarização feita pelo colonialismo que entendemos as futuras relações entre sujeitos que querem se dizer hegemônicos e representantes da norma com aqueles marginalizados e estigmatizados à sub-representação. 1 Este trabalho é oriundo da dissertação de mestrado defendida em agosto de 2022 junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob orientação da professora Laura Cecilia López. Foi subsidiado com bolsa Capes/Prosuc. 2 Pesquisador de masculinidades, interseccionalidades, equidades e saúde. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Especialista em Docência no Ensino Superior pela Faculdade São Luís e Bacharel em Psicologia pela Unisinos. E-mail: psicocaue@gmail.com. DOI: https://doi.org/10.29327/5393978.1-2

24 Demarcando o espaço discursivo para pensar masculinidades e a equidade de gênero Neste trabalho, assumo uma perspectiva de gênero relacional, seguindo a Raewyn Connell (2013; 2016), que propõe pensar as construções de feminilidades e masculinidades numa trama social complexa, que considera processos históricos constituintes. O conceito de gênero vem sendo utilizado na construção das políticas públicas, principalmente as de saúde. Connell (2013) aponta que a partir de 2005 a Organização Mundial de Saúde (OMS) colocou o tema “gênero” como um determinante estrutural na produção das iniquidades sociais, sendo um deles as desigualdades no acesso aos sistemas de saúde e na produção do bem-estar social. Ao olharmos para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), encontramos o 5° objetivo como “Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e meninas” (ODS, 2021). É indiscutível a relevância desse objetivo para o desenvolvimento mundial, porém, Connell ressalva que “Documentos de política sobre género usualmente toman a mujeres y hombres como categorías fijas y sin necesidad de cuestionamiento” (Connell, 2013, p. 64). Engessar esses conceitos vai contra a própria compreensão sobre o que é gênero, pois ao tomá-lo como uma construção histórica e social, entende-se que é produzido através da criação e transformação constante dos corpos, dialogando com as representações das masculinidades, feminilidades e outras possibilidades que fogem da norma binária (Connell, 2016). Com o 5° objetivo temos um exemplo dessa categorização do gênero de maneira isolada, pois buscar a igualdade é colocada como uma função social das mulheres, porém, ao pensar de maneira relacional, entendemos que essa desigualdade também se materializa através dos privilégios que os homens tomam para si. Desta forma, essa discussão atravessa tanto homens quanto mulheres e precisa ser construída de maneira conjunta, empoderando as mulheres e conscientizando os homens. Outro ponto importante é que além da compreensão relacional existente entre as diferentes formas de expressar os gêneros, também é relevante trazer as diferentes dinâmicas que se associam na construção dos corpos e subjetividades, El pensamiento categórico se puede hacer más sofisticado mediante el entrecruzamiento de las categorías de género con categorías como raza, clase social, edad, entre otras. Este acercamiento ha sido llamado interseccionalidad desde el trabajo de Crenshaw (1991). Infortunadamente, mucha de la literatura sobre “interseccionalidad” simplemente combina un acercamiento categorial a una dimensión de diferencia con un acercamiento categorial a otra (Connell, 2013, p. 64).

25 Cauê Rodrigues O conceito de interseccionalidade nos ajuda a pensar além da lógica categorial, pois não basta juntar diferentes categorias, é preciso entende-las como integradas nos sujeitos. Embora teoricamente haja a separação dos diferentes marcadores sociais para realizar discussões aprofundadas, na prática o que vemos são corpos e subjetividades constituídos de múltiplas formas e impossibilitados de serem dissociados. Por exemplo, o homem nunca será apenas homem, ele juntará em si categorias de raça, classe social, sexualidade, idade, entre outras, e é a forma como ele se relaciona consigo mesmo e com o sistema social que o circunda que construirá sua identificação no mundo. Hall (2014, p.12) afirma que “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. Ou seja, somos sujeitos que vivenciam situações de privilégio e imposições sociais e a interseccionalidade nos ajuda a discutir essas diferentes posições sociais que precisam ser visibilizadas, pois o pensamento categórico minimiza tanto as diferentes formas de expressão dentro de uma própria categoria, quanto a importância de compreendê-las em constante relações com as diferentes categorias que se atravessam na construção dos sujeitos (Connell, 2013). A partir das restrições e limitações do pensamento categorial, Connell sugere a teoria relacional como uma melhor opção, pois o gênero é compreendido como “algo que conecta al mismo tiempo las relaciones económicas, afectivas, simbólicas y de poder, y opera de manera simultánea en los niveles intrapersonales, interpersonales, institucionales y de la sociedad en general” (Connell, 2013, p. 66). Desestabiliza-se a noção de que gênero é algo fixo e imutável, além de visibilizar as transformações no conceito de gênero de forma simultânea em todos os níveis que atravessam o sujeito. Também coloca todos esses níveis em relação, entendendo que tanto o sujeito estará continuamente transformando o contexto em que vive, mas também que as diferentes condições sociais abrem espaços para limitadas possibilidades de representação, sendo que as subjetividades precisam ser pensadas e compreendidas através do contexto em que está inserido cada sujeito3. Connell (2016), nos alerta para o fato de que as teorias de gênero se veem descontextualizadas do espaço próprio de produção, segundo ela “o que as teorias de gênero ainda não compreenderam bem é que as dinâmi3 Exemplo, uma compreensão sobre o que é ser homem na Europa não dará conta de explicar as masculinidades vivenciadas no Rio Grande do Sul. Embora alguns países europeus tenham invadido e tentado destruir a cultura existente na América Latina pré- -colonial, impondo suas culturas e visões de mundo, houveram transformações sociais ao longo do tempo que diferenciaram ambos territórios.

26 Demarcando o espaço discursivo para pensar masculinidades e a equidade de gênero cas de gênero tomam formas específicas em contextos coloniais e pós-coloniais” (Connell, 2016, p. 31), ou seja, é de suma importância que haja uma discussão crítica sobre como as discussões acerca da temática gênero são produzidas pelas sociedades com história colonial, pois não basta importar o conhecimento e aplicá-lo solto nas vidas dos sujeitos pertencentes ao Sul Global, pois como a autora diz “a metrópole global é uma exceção” (Connell, 2016, p. 31). Essa posição crítica não pode ser confundida com uma rechaça indiscriminada com as teorias do Norte Global, mas é necessário que haja uma valorização dos conhecimentos produzidos a partir daqui e se mantenha uma posição de conversa aberta entre os diferentes espaços de construção de conhecimento, entendendo que as diferenças existentes entre os territórios pode ser um fator de potência e reflexão ativa para ambas as partes. Desta forma, o conceito de gênero é compreendido a partir de uma construção histórica e social, no qual o biológico e o simbólico dialogam com as estruturas de poder presentes em cada cultura, o corpo serve de palco para os diferentes ensaios de gênero, através de uma incansável disputa entre diferentes discursos que buscam nomear suas possibilidades. Ele é transmutado constantemente a partir dos diferentes atravessamentos que buscam delimitá-lo ou ampliá-lo, sendo sua materialidade percebida em contextos microssociais, através de brincadeiras infantis, relações interpessoais, experimentações de sexualidades, mas também em contextos macrossociais, como o desenvolvimento de religiões, sistemas prisionais e educacionais (Connell, 2016). Colocar gênero como uma categoria inata e intrínseca à vida humana também é uma forma de produzir uma dominação subjetiva, sendo necessário questionar a criação das categorias que baseiam as relações pessoais e interpessoais, visibilizando as naturalizações que foram sendo constituídas ao longo da construção histórica da humanidade. Outro risco iminente nessa naturalização é a presença da cisheteronormatividade, pois quando pensam nessa construção de gênero, atrelam corpos generificados de maneira polarizada, mas necessariamente construindo-os no ideal de um desejar ao outro, reafirmando a ideia cristã de sexualidade como ferramenta necessária para a procriação e constituição de descendentes. O que é errôneo tanto na premissa de utilizar o sexo heterossexual para constituir família, quanto enclausurar todas as outras formas de expressar a sexualidade humana. Somente partindo de um olhar fundado na desnaturalização dos conceitos presentes na matriz colonial do poder, e compreendendo que nenhuma das marcas presentes nela é construída de maneira isolada, é que podemos avançar na sua destituição e construção de relações sociais baseadas na equidade. É importante marcar assim que as normas de gênero que vivenciamos são construídas ao longo do tempo e foram sendo enviesadas, inclusi-

27 Cauê Rodrigues ve marcando que o próprio conceito de teoria de gênero é uma construção do Norte Global4, conceituando que “teoria é o trabalho que o centro faz” (Connell, 2012, p. 9), ou pelo menos, é o que o centro/norte quer dizer que faz, relegando ao Sul como o espaço de coleta de conhecimento, em que a vida é estudada e serve para análise, porém, ao realizar essas pesquisas “suas imaginações teóricas não incorporam o colonialismo como um processo social significativo” (Connell, 2012, p. 10), se ausentando da responsabilidade de terem invadido e investido seus conhecimentos no corpo dos demais. A autora traz uma solução para essa importação direta de conhecimento, já que “caso esse trabalho seja feito em outros lugares, o centro será fatalmente (re)localizado” (Connell, 2012, p. 10), demonstrando a importância da afirmação do conhecimento que é produzido pela “periferia”, capacitando aqueles que antes eram colocados como objetos, como os produtores de suas próprias verdades. Compreender o discurso do colonialismo e a construção da “matriz colonial do poder” é de extrema importância para o entendimento da construção da “norma” e também dos seres desviantes dela. É necessário demarcar que a matriz colonial do poder foi originalmente construída por Quijano, sendo “descrita através de quatro domínios relacionados: controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade” (Mignolo, 2011, p. 8, tradução própria). É essa matriz quem vai referenciar e controlar os modos de se relacionar na sociedade, sempre pautada por um modelo de ser humano construído a partir do eurocentrismo. Embora a discussão pautada por Quijano e Mignolo ajude a compreender as formas como o colonialismo resiste e se atualiza, ainda há muitas brechas a serem exploradas na matriz, complexificando ainda mais sua construção e a manutenção de modos de existir que fugiram da visão dos autores citados acima. Lugones (2008), reafirma a importância da construção teórica da matriz colonial do poder, porém adverte para algumas limitações presentes nela, pois a suposição de Quijano pressupõe uma compreensão patriarcal e heterossexual das disputas pelos controles das produções de sexo, gênero e sexualidade, invisibilizando historicamente todas as outras forças que questionaram essa maneira de pensar, aceitando que as produções de gênero só podem ser realizadas através de uma lógica eurocentrada e capitalista. A própria noção de gênero empreendida por Quijano é questionada, pois embora o conceito esteja entrelaçado com o conceito de raça, 4 Algumas autoras como Raewyn Connell, fazem a demarcação do Norte (Europa e América do Norte) e Sul Global (África, América Central e do Sul e Ásia), entendendo que mais do que uma demarcação geográfica, diz respeito a um espaço econômico, sendo o Norte visto como metrópole enquanto o Sul é colocado como periferia.

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