É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos

Marília Veríssimo Veronese É aminha opinião! Textos em veículos midiáticos Casa Leiria

“É a minha opinião!” Não sei quanto a você, leitor/a, mas essa frase costuma me causar um mal- -estar muito grande. Geralmente ela precisa ser emitida para justificar algo que tenha soado estranho, absurdo, esdrúxulo ou preconceituoso. Vamos, portanto, problematizá-la, em tempos de pós-verdade. Marília Veríssimo Veronese PPG CIÊNCIAS SOCIAIS

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2023 Marília Veríssimo Veronese É A MINHA OPINIÃO! Textos em veículos midiáticos

É A MINHA OPINIÃO! TEXTOS EM VEÍCULOS MIDIÁTICOS Marília Veríssimo Veronese Capa: Casa Leiria O texto é de responsabilidade da autora. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. DOI: https://doi.org/10.29327/5336769 Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Ficha catalográfica Veronese, Marília Veríssimo V549m É a minha opinião! : textos em veículos midiáticos [recurso eletrônico]. / por Marília Veríssimo Veronese. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ acervo/cienciassociais/eaminhaopiniao/index.html> ISBN 978-85-9509-104-7 1. Sociologia – Veículos midiáticos – Brasil. 2. Veículos midiáticos – Vida social e política – Brasil. 3. Comunicação – Sociologia. I. Título. CDU316.7 (81) PPG CIÊNCIAS SOCIAIS

DEDICATÓRIA Dedico este livro às e aos intelectuais públicos que, no início desta terceira década do século XXI, se expõem e defendem ideias e valores que lhes são caros, mesmo em um contexto de intolerância, agressões e violências virtuais e presenciais.

AGRADECIMENTOS Agradeço àqueles que me convidaram para escrever em veículos midiáticos: Moisés Mendes, Benedito Tadeu César, Andres Vince e Gilmar Rodrigues. Como a memória não anda boa, se esqueci de alguém, peço desculpas e agradeço também!

“O jargão assombra a vida de muita gente, limitando o alcance público da reflexão” Márcia Tiburi

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 11 SUMÁRIO 13 Prefácio 14 Introdução 23 Textos em veículos de mídias 24 Jornal Zero Hora 29 Jornal Já 71 Fase pandêmica sem condições de manter colunas, somente textos ocasionais 72 Humanoides, Paradoxos e Jacarés (Publicado na revista eletrônica Ignorância Times n. 11, em 2020) 79 Considerações finais – muito provisórias, já que o barco segue navegando na tempestade, e o trem correndo a toda velocidade 84 Referências

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 13 PREFÁCIO Quando convidei a Marília Veronese para escrever uma coluna no Jornal Já, em 2016, num espaço reservado para o Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, eu já conhecia sua produção acadêmica e seus textos nas redes sociais e, portanto, sabia de sua capacidade de escrever de forma clara e objetiva, capaz de cativar também o leitor de fora do meio acadêmico. Marília aceitou prontamente meu convite, enfrentou o desafio e seus textos para o Já fizeram sucesso imediato, integrando o grupo dos mais lidos naquele período. Marília vemescrevendo emdiversos veículos de comunicação social sobre temas de sua área, as ciências sociais, como a desigualdade e a pobreza, o autoritarismo e a democracia, e sobre temas comportamentais, como gênero e racismo, sempre com o mesmo vigor, capacidade analítica e de se fazer entender de forma cativante. Essa é uma qualidade rara no meio acadêmico, onde a busca do rigor analítico faz com que os autores se armem de precauções, citações e conceitos herméticos, que são essenciais à produção científica, mas descabidos em textos para os leitores não especializados. Marília é uma autora engajada, mas faz isso sem perder a objetividade analítica e sem se deixar arrastar apenas pela emoção. A emoção está presente, mas em diálogo constante com os argumentos e os dados. Neste livro, que reúne parte da produção textual de Marília para as mídias digitais ou impressas, o leitor encontrará, mais do que simples “opiniões” sobre assuntos variados, interpretações embasadas em sólido conhecimento na sua área de domínio acadêmico, escritas de forma acessível a todos e todas e, mais do que isso, com graça, alegria e comprometimento social. Porto Alegre, dezembro de 2023. Benedito Tadeu César Cientista político e Coordenador do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e da Rede Estação Democracia.

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 14 INTRODUÇÃO É a minha opinião! Não sei quanto a você, leitor/a, mas essa frase costuma me causar um mal-estar muito grande. Geralmente ela precisa ser emitida para justificar algo que tenha soado estranho, absurdo, esdrúxulo ou preconceituoso. Vamos, portanto, problematizá-la, em tempos de pós-verdade. A pós-verdade, em 2016, foi escolhida pelo Oxford Dicionaries como “a palavra do ano”, ou seja, a mais socialmente significativa daquele ano que teve ampla disseminação de notícias falsas, por ocasião da campanha do BREXIT e da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América do Norte. A palavra alude a uma situação em que as pessoas acreditam não em fatos, concretos e evidenciados, mas em experiências ou relatos individuais, que fazem apelo às emoções e crenças, gerando processos de identificação. A pós-verdade é um conteúdo que distorce um fato e cria fantasias em torno dele, alterando seu sentido original. O apego às convicções pessoais é acompanhado por certo ceticismo em relação às fontes ditas “oficiais” (Guareschi; Amon; Guerra, 2017). Existem assuntos, dentre as tantas coisas do mundo, que são mesmo questão de opinião. No Rio Grande do Sul, eu prefiro o Internacional, mas muita gente prefere o Grêmio... vá entender, mas respeito sua preferência. Eu amo Beatles desde que estava na barriga da minha mãe, já que minha irmã mais velha, no final dos anos sessenta, quando nasci, tocava seus discos na “eletrola” e assimme criei, ouvindo Beatles (na banda e na carreira solo). Também escutava, por obra de irmãos/ ãs que chegaram antes de mim, músicos e bandas como Mutantes, Secos e Molhados, Led Zeppelin, Yes, Pink Floyd, Emerson, Lake & Palmer, Alice Cooper, Simon & Garfunkel, David Bowie etc. Então, para mim, a melhor música, a que mais gosto de ouvir, é o rock’n’roll. Vem de berço, passa a correr nas veias... até hoje, aos 55 anos, sou grande apreciadora do gênero e amo escutar meus vinis, CDs, MP3, rádio... Quando vejo alguém dizer que não gosta e prefere escutar sertanejo universitário, ou pagode, ou bate-estaca, posso até estremecer de horror..., mas engulo em seco, disfarço e respeito a escolha do

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 15 outro. Por quê? Porque isso é mesmo uma questão de opinião! De preferências, gostos que não têmmaiores implicações na vida das outras pessoas, desde que o volume em que escutam suas músicas prediletas seja razoável. A discussão até poderia enveredar para o conceito da “distinção” de Pierre Bourdieu, mas não é esse o caso. Aqui basta evocar o senso comum (old, good common sense) em sua face de razoabilidade: é opinião e pronto, respeito mesmo que seja diferente da minha, e não me considero melhor nem pior do que ninguém, apenas diferente. Os exemplos são muitos, dada a pluralidade dos gostos, e poderiam ser enumerados às dezenas: o que vestir, gêneros literários, gostos culinários, preferências cinematográficas, qual a melhor marca de cerveja, se prefere vinho branco ou tinto, o melhor lugar para passear, para dançar etc., etc. e etc. Ou seja: questão de opinião. A opinião não é uma categoria universal, como afirmou Pierre Laborie (2009) na tentativa de defini-la, mas sim uma construção singular, que resulta de uma história individual e coletiva e que, quando compartilhada, gera representações mais ou menos precisas do real; mas que terá status de realidade para o sujeito que dela está convencido/a. Laborie ainda levanta outras interrogações acerca da relação entre opinião, memória e elementos como mídia e esfera pública: “Como se efetuam a apropriação coletiva de um discurso da memória e sua transformação em vulgata difundida pela opinião? Que acontece quando os usos sociais transformam a memória em objeto de opinião? Que sucede com essa memória e seu estatuto histórico quando ela se torna uma questão de opinião?” (Laborie, 2009, p. 6). As opiniões dependem de interpretação do mundo e, nesse sentido, quando não encontram eco, legitimidade e confirmação, tendem a justificar-se por si mesmas; como se fosse um direito reservado a cada indivíduo manifestar a sua versão do real. Toda a zona cinzenta que existe entre as experiências de um/a e de outro/a não pode ser plenamente compartilhada. A intersubjetividade tem seus limites, e os processos de comunicação e entendimento mútuo também. A fabricação da opinião – e suas formas de manifestar-se, por exemplo, nas “pes-

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 16 quisas de opinião pública” – envolve tensões e contradições e tem múltiplas racionalidades. A princípio, qualquer opinião valeria enquanto espaço individual de direito de pensamento e de expressão. Mas não é tão simples assim, especialmente em tempos de pós-verdade e de mentiras veiculadas em sites oficiais da República (que poderão ser apagadas, quando apontadas; e nada acontecerá, no Brasil de 2021, em que escrevo este texto). E, também, especialmente quando o que está posto é questão de consensos mínimos necessários para a vida coletiva e para a preservação de valores fundamentais, civilizacionais. Nessas esferas, meus caros e caras, não é apenas uma questão de opinião. Passa a ser uma questão de dignidade básica, da ética do bem comum, ou mesmo de um consenso estabelecido por sólidas evidências científicas, necessários ao viver coletivo humano. Aqui posso citar exemplos: a terra é redonda, as vacinas salvam vidas ao erradicar doenças (exemplo da varíola, poliomielite, sarampo e outras). A tortura é hedionda (e crime inafiançável por um bom motivo), racismo é um preconceito indigno e todas as origens étnico-raciais são igualmente dignas e respeitáveis. Armas de fogo aumentam as tragédias e mortes onde circulam livremente entre mãos não treinadas para usá-las e ficam acessíveis a crianças e jovens. Os dois sexos e todas as manifestações das identidades de gênero, embora tenham diferenças entre si, são igualmente legítimas, partes da diversidade da espécie humana; espancar, maltratar e até matar pessoas em função de suas características sexuais e de gênero é crime inadmissível. Existe homossexualidade também entre outras espécies, então não há nada de errado com esse comportamento, ele faz parte da natureza; negar isso é negar a realidade biológica da manifestação das espécies, sua condição filogenética, e não uma “opinião contrária”. Também aqui poder-se-ia ir longe nos exemplos; mas o argumento fundamental é que, quando se trata de consensos básicos sobre a dignidade das pessoas, sobre seu direito a uma existência digna, não se pode usar a famosa frase “é a minha opinião!!!” para justificar despautérios, que podem inclusive

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 17 adentrar a esfera criminal, no caso de manifestações racistas ou a favor da tortura. Em um contexto de democracia e pluralismo político, certas “opiniões” podem significar discurso de ódio, e devem ser coibidas de alguma maneira, sob pena de nos depararmos com o paradoxo apontado por Karl Popper: tolerar os intolerantes e seus disparates levaria à destruição de uma sociedade livre e tolerante (Popper, 2013). O chamado paradoxo da tolerância foi colocado por Karl Popper em seu livro The Open Society and Its Enemies, publicado no ano da derrocada do nazifascismo; para ele, a tolerância ilimitada teria riscos reais de levar ao desaparecimento da própria tolerância, necessária para a vida comum. E ele era um “bom burguês, bem assentado”, como disse o saudoso José Paulo Bisol ao citá-lo, numa palestra. Assim, o direito à proibição das ideias intolerantes poderia ser reivindicado em nome da defesa da sociedade (Gomes, 2021). Mesmo assim, há um extenso debate acerca desse tema, nos campos jurídico, comunicacional, sociológico e filosófico. Não vou aqui entrar nessa seara, tendo esta introdução apenas o objetivo de refletir brevemente sobre o tema dos chamados artigos de opinião. Entre uma coisa e outra – gostos e preferências x consensos básicos necessários para a vida coletiva – há um vasto e complexo campo que envolve as visões de mundo, os ambientes tipificados onde vivemos e nos formamos, as ideias, as propostas, as manifestações que trazem inovação ou que mantém tradições. É terreno minado, cheio de possibilidades de acertos e enganos, emaranhado complexo. Para navegar esses mares incertos, uma coisa me parece certa: é preciso justificar, argumentar e fundamentar muito bemnossas interpretações do mundo. Isso sem pretender que se obscureça no debate a questão dos afetos, ou assumir uma perspectiva de ação comunicativa habermasiana, cujos limites são justamente os afetos humanos e sua “irracionalidade”, ou racionalidade própria, distinta da do cogito puro. Conforme Nunes (2022), afetos – ou a forma que as pessoas afetam ou são afetadas – têm a ver com sensações de prazer e desprazer, medos, fantasias, desejos, contextos familiares/comunitários, que produzem repulsa ou admira-

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 18 ção, impulsos violentos ou amorosos. Sem falar da velha força inercial dos hábitos arraigados, da tendência em repetir e seguir fazendo as mesmas coisas, como a psicanálise aponta. Não ignoro nada disso, apenas considero possível que se faça valer um senso comum compromissado com a ideia de bem comum e uma dose mínima de responsabilidade social a ser exigida de pessoas e organizações. Opiniões bem fundamentadas, justificadas por argumentos qualificados, caracterizariam o “novo senso comum” que desejava Boaventura de Sousa Santos. O sociólogo português imagina uma transformação qualitativa do senso comum, no sentido emancipatório, num senso comum solidário, participativo, reencantado. Não é fácil operar essa mudança. O senso comum é valorativo (faz juízo de valor) e impreciso; não precisa de fundamentação, posto que é crença; tenta a todo custo reconciliar a consciência com o que existe, com as convenções. Extrapola suas convicções e condena o que não lhe parece “direito, correto”. Assim, pode tornar-se preconceituoso, hostil ao diferente, obstinado com a adaptação a todo custo, e resistente com as mudanças. Diz Boaventura: uma utopia tão pragmática quanto o próprio senso comum, não é uma tarefa fácil, nem uma tarefa que alguma vez possa concluir-se. É este reconhecimento, à partida, da infinitude que faz dela uma tarefa verdadeiramente digna dos humanos (Santos, 2018, p. 135). As ciências sociais têm um papel importante em termos de impactar no senso comum para, com ele dialogando, modificá-lo – e seremmodificadas por ele, quando isso for renovador. É preciso que o conhecimento nas ciências sociais e humanidades reconciliem-se com o senso comum, hibridizando saberes rumo a um senso comum emancipatório, aberto à alteridade. Conforme o próprio autor supracitado, não é desejável ter do senso comum uma concepção fixista. Trata- -se de atenuar o desnivelamento entre o discurso da ciência e o discurso do senso comum, evitando que a prática seja uma dimensão da técnica e rearranjando a relação adaptação/criatividade (Veronese, 2004).

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 19 Há uma diferença insolúvel entre ciência e senso comum, porque são tipos de saberes diferentes, que respondem a distintas necessidades humanas. Contudo, acredito que podem dialogar, qualificando um ao outro: a ciência “cai” no mundo da vida, de onde nunca deveria ter saído, para melhorá-lo; o senso comum torna-se mais plural, crítico e reflexivo. Para conseguir concretizar esse desafio, há que ser uma ciência inter e transdisciplinar, sensível à “miséria do mundo” (Bourdieu, 1999), criativa e propositiva. A figura do/da intelectual público/a é definida como aquele/a pensador/a que escreve em jornais, revistas não científicas, concede entrevistas, comenta acontecimentos, é cronista em veículos midiáticos, mantém blogues e perfis em redes digitais para divulgação da ciência. Seria quem expõe publicamente seu conhecimento, mas também suas opiniões, defendendo as ideias que considera justas, para (in)formar a opinião pública. Nesse sentido, nem toda pessoa que domina as letras será um intelectual. Mesmo amaior erudição, quando guardada para si, não propicia o compartilhamento do saber. O estatuto intelectual está ligado à atuação pública, ao enfrentamento das eventuais guerras de opiniões que se dão, hoje, primordialmente em ambientes virtuais de interação. Existem muitos exemplos de pessoas que têm essa visibilidade, no meu campo de atuação. Só para ficar no Brasil e nas humanidades, cito Rosana Pinheiro-Machado, Marcia Tiburi e Débora Diniz. São o que Olsen (1997) chamaria de “formadoras de opinião horizontais”, pessoas que não possuem propriedade formal de meios midiáticos, mas são por eles procuradas por teremdestaque em suas áreas de atuação. Não se trata de eventual carisma de “influenciadores” da cultura digital, mas de uma enunciação qualificada que as faz interessantes para comunidades de audiência ou leitura mais ou menos amplas. Todas elas utilizam espaços de emissão de ideias e princípios éticos, conferidos pelos meios de comunicação de largo alcance. Elas podem abrir perspectivas de análise e de previsão dos cenários futuros, especialmente em contextos adversos e de enorme incerteza, como o que vivenciamos no Brasil pandêmico de 2020-2022.

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 20 A análise de Costa (2019) destaca que, historicamente, o conceito/categoria de intelectual público traz quase sempre exemplos de intelectuais homens e até por isso trouxe exemplos atuais de mulheres. Isso encontraria explicação nas naturalizações históricas de desigualdades socialmente construídas. Contudo, a autora acrescenta que houve alguns exemplos que se pode recuperar do século das luzes, como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, citando dois deles. Olympe de Gouges escreve a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) como resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Mary Wollstonecraft escreve Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792). Ambas as autoras, contemporâneas da Revolução Francesa, podem ser vistas como intelectuais públicas: elas ‘entram’ na ‘esfera pública’ da sua época, escrevendo panfletos ou livros – as suas posições são divulgadas amplamente no meio por elas frequentadas (Costa, 2019, p. 178). Em busca de uma definição no âmbito sociológico, encontro uma de caráter marxista: “[...] produtores diretos da esfera ideológica, os criadores de produtos ideológico-culturais”, o que engloba “escritores, artistas, poetas, filósofos, sábios, pesquisadores, publicistas, teólogos, certos tipos de jornalistas, certos tipos de professores e estudantes etc.” (Löwy, 1976, p. 1-2). Para Perlatto (2015), vários pensadores procuraram refletir sobre o significado do conceito, para responder a questões como a relação dos intelectuais com o Estado, com a política, com as frações de classes sociais e os variados grupos de interesse da sociedade. Também tivemeusmomentos, mesmo de formamuitíssimo mais modesta do que as colegas ou as figuras históricas que citei acima; mesmo assim, gostei da ideia de um livro que reunisse o que costumamos chamar de “textos de opinião”. Este gênero pode ter várias acepções. Quanto mais bem fundamentada é uma opinião, mais qualificada ela será, e mais esforço demandará refutá-la. É por isso que o debate público é importante, pois mobiliza esforços de argumentação. Não se trata de valorizar achismos ao léu, mas de levantar bons argu-

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 21 mentos através de leitura crítica do contexto social. De uma tentativa de dialogia (estabelecimento de diálogo) com outras perspectivas sobre a realidade. Este livro serve também para trazer esses trabalhos dispersos em vários veículos, que não contam quase nada em termos de avaliação no Currículo Lattes, mas que são uma tentativa de abrir um debate com uma audiência mais ampla do que a acadêmica. São textos nos quais, eventualmente, cito referências bibliográficas científicas, mas cuja linguagem é muito mais livre, as vezes até irreverente (tirem as crianças da sala!). É bom escrever assim, sem as amarras formais do texto científico. Todos eles fazem referência a um contexto específico, relativo às datas em que foram escritos e publicados. Algumas passagens podem estar datadas, tendo os eventos de referência se perdido no tempo; mas são suficientemente recentes para serem interpretados à luz da realidade brasileira dos últimos seis ou sete anos (período 2015-2022). As fontes bibliográficas, da internet e outras, eventualmente utilizadas, estão logo abaixo do texto, como na versão originalmente publicada. Esse tipo de linguagem implica numa assimilação mais rápida que a da ciência social, na vida cotidiana dos sujeitos. Circulação de ideias e interpretações do mundo vindas de vários lugares, expressas por um conjunto polifônico de vozes, se misturam numa esfera pública virtual caótica, que se (des) organiza de forma labiríntica. São textos, imagens, vídeos não submetidos ao rigor das avaliações por pares (blind peer review), mas tão somente à apreciação de alguém que se responsabiliza pela edição do veículo que os acolhe. Nesse sentido, são lidos e recebidos de modo bastante diferente daqueles publicados em periódicos científicos. Começo essa coletânea por um texto publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, a convite do amigo jornalista Moisés Mendes, que aderiu à campanha #AgoraÉQueSãoElas, na qual colunistas homens cederam seus espaços de visibilidade a uma mulher. Fiquei feliz e honrada com o convite, no já distante ano de 2015.

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 22 Em seguida, um outro texto publicado no Jornal ZH, versando sobre os catadores de material reciclável urbano e a urgente necessidade de valorizar essa categoria profissional, com a qual convivi por cerca de três anos, pesquisando com eles/as, ao seu lado (e não sobre eles). Na sequência, apresento os textos da coluna publicada no Jornal Já, iniciando por um que, à época de sua publicação, viralizou, cumprindo assim parte do que eu esperava dele. Finalmente, a mais recente, na revista Ignorância Times a convite do amigo Gilmar Rodrigues. Espero que sirvam como um documento de sua época, que nos relembre, no futuro, os afetos e as reflexões críticas que marcaram seu momento de produção.

TEXTOS EM VEÍCULOS DE MÍDIAS

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 24 JORNAL ZERO HORA Decapitadas em nome das luzes (14/11/2015) A professora Marília Veríssimo Veronese escreve sobre a onda conservadora contra as mulheres e imagina o dia em que até a guilhotina pode estar de volta. O texto que publico hoje foi escrito pela professora Marília Veríssimo Veronese. Cedo o espaço, com muita honra, em nome do movimento #AgoraÉQueSãoElas, de reafirmação dos direitos das mulheres. Marília é docente e pesquisadora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos. (Moisés Mendes, colunista) Fico pensando se, em tempos de deputados que ignoram a importância da filósofa existencialista Simone de Beauvoir para o conhecimento – e parecem ter orgulho de sua ignorância –, alguém lembra quem foi Olympe de Gouges. Essa moça, em 1791, propôs a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã, para igualar-se à Declaração dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Nacional durante a revolução francesa. Opôs-se abertamente a Robespierre e acabou na guilhotina, em 1793, condenada como “contrarrevolucionária” e mulher “desnaturada”. Ela inspirou minha formação política, sobre a inadequação da concepção das mulheres como um grupo homogêneo e passivo. Ou pior: divididas entre as “direitas” e as “degeneradas”, “para casar” e “para se aproveitar”. Essa distorção, ainda reforçada no senso comum, reproduz formas de masculinidade violenta, presentes em distintos modos de violência verbal, institucional e sexual. Seu pior e mais trágico produto é o feminicídio. Uma forma de violência institucional émidiática: certas manifestações de “comediantes” e “ex-músicos” com a carreira decadente, por exemplo, nada têm a ver com liberdade de expressão, mas sim com uma cultura de ódio; classista, machista, racista e protofascista. Alguns me advertem: “Não banalize a palavra fascismo! Nem tudo cabe nela”. Então, uso o

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 25 termo protofascismo, que é um estágio precedente – e perigoso – do pensamento e das práticas fascistas. Repensar a produção na área da indústria cultural – inclusive a indústria pornográfica, consumida por jovens de ambos os sexos e todos os gêneros – para que não seja um festival de incentivo à violência/subjugação, pedofilia e desigualdade de poder é uma questão hoje colocada para construirmos uma cultura da paz, inclusive nas práticas sexuais. Toda produção midiática é veículo de cultura. Nunca se trata “só de uma piada”, mas de modelos de identificação que reforçam estereótipos e desigualdades nas práticas cotidianas; estas sempre se calcam em um modo de pensar, de conceber as pessoas. Evitando a erotização da subjugação feminina ou infantil, quem sabe evitamos também práticas violentas. O erótico é o que define o sexo como diferença significativa, enriquecedora e onde cabe a descoberta do outro, com toda a ludicidade que potencialmente guarda. Já a desigualdade tende a ser ruim e nela geralmente está contida a opressão do outro, seja criança, mulher, negro, indígena, pessoa com deficiência, travesti, transgênero. O gênero, aliás, é uma das formas nas quais a sexualidade é mais vigiada, dado o constante reforço do sistema binário (masculino x feminino) como forma de controle. Se a bancada conservadora no Congresso nacional continuar sua cruzada de retorno à Idade Média, penso que em breve a guilhotina será adotada no Brasil. E nós, feministas, decapitadas como Olympe de Gouges o foi empleno século das luzes! O que mostra o eterno retorno do recalcado e a necessidade de retomarmos o pensamento de mulheres e homens como Gouges, Nietzsche, Beauvoir. A circularidade nos atormenta, e só o pensamento crítico e reflexivo pode nos fazer avançar como humanidade, em termos políticos, éticos e de conhecimento. Originalmente disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/opi niao/noticia/2015/11/decapitadas-em-nome-das-luzes-4902500. html.

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 26 Ainda no jornal gaúcho Zero Hora, da rede RBS, publiquei um texto encomendado pelo setor de marketing da Unisinos, para atender à demanda da mídia por artigos de opinião de suas/ seus professoras/es. Pela dignidade dos catadores (16/08/2018) Categoria formada por estimados 800 mil profissionais no país tem dificuldade para atingir a cidadania plena, estigmatizada pelo trabalho com resíduos. O catador de material reciclável urbano é a base da cadeia produtiva da reciclagem em nosso país. O Brasil promulgou políticas públicas para o fortalecimento dos catadores e suas organizações associativas: a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e o Programa Pró-Catador. A aprovação da PNRS do Brasil, Lei Federal n.º 12.305/2010, constituiu um marco legal regulatório para a gestão integrada de resíduos sólidos e lançou novos desafios para a implantação e o aprimoramento da coleta seletiva nos municípios brasileiros. Embora a gestão dos resíduos sólidos urbanos seja uma atribuição municipal, a PNRS estabelece mecanismos de indução desse modelo de coleta seletiva por meio de recursos econômicos para municípios que elaborarem seus Planos de Gestão Integrada de Resíduos seguindo essa diretriz. Entretanto, inúmeras dificuldades nos municípios geram atrasos na implementação, e quem mais sofre os efeitos da demora são os homens e as mulheres que se dedicam à catação. Esses trabalhadores vivenciam condições de vida ainda precárias, na periferia das grandes cidades. Os espaços sociais nos quais circulam, geralmente, os estigmatizam. A inserção econômica é limitada, e a renda obtida, nem sempre suficiente para garantir vida digna às famílias. Contudo, a categoria profissional dos catadores organiza-se e luta pelo reconhecimento social da sua profissão, devidamente registrada no Código Brasileiro de Ocupações sob o número 5192-05: catador de material reciclável. As atribuições desses profissionais, segundo o código, são: “Catam, selecionam

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 27 e vendem materiais recicláveis como papel, papelão e vidro, bem como materiais ferrosos e não ferrosos e outros materiais reaproveitáveis. As cooperativas de trabalhadores ministram treinamentos a seus cooperados, tais como cursos de segurança no trabalho, meio ambiente, dentre outros. O trabalho é exercido por profissionais que se organizam de forma autônoma ou em cooperativas. O trabalhador é exposto a variações climáticas, a riscos de acidente na manipulação do material, a acidentes de trânsito e à violência urbana. Nas cooperativas surgem especializações do trabalho que tendem a aumentar o número de postos, como os de separador, triador e enfardador”. Quem faz o trabalho de base, catando e separando material com potencial de reciclabilidade, evitando sérios problemas ambientais decorrentes da decomposição do lixo, é o/a catador/a. Por que esse trabalhador, tão importante para o meio urbano, não consegue atingir a plena cidadania, segurança, renda digna, amparo social e estima entre os membros estendidos da sua comunidade? Esse é um problema social e ético-moral que a sociedade brasileira precisa enfrentar. Os catadores, pormeio doPrimeiroEncontroNacional de Catadores de Papel e Material Reaproveitável, reunindo ONGs, Poder Público e Setor Privado, realizado na cidade de Belo Horizonte, em 1999, criaram oficialmente o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). O movimento estima que, aproximadamente, oitocentos mil catadores estejam em atividade no Brasil. Esse movimento social agrega a categoria para lutar por melhores condições de trabalho e vida, almejando dignidade a partir de uma valorização maior como base da cadeia produtiva da reciclagem. Lidam com o lixo, tornando-se alquimistas da sua transformação em trabalho, renda, dignidade e responsabilidade ambiental. É muito importante que participemos do processo, separando corretamente o lixo doméstico e empresarial e facilitando seu recolhimento. Se procurarmos no dicionário online de sinônimos, encontraremos as seguintes entradas para a palavra “lixo”: “Escória, gentalha, plebe, ralé”. Sãopalavras pejorativas que apontam para a desumanização contida nos processos de exclusão social, e por vezes o catador fica simbolicamente associado ao

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 28 lixo que recolhe. Pois os catadores e as catadoras organizados recusam essa pecha, alquimistas que são. Transformam-na e transmutam-na em outro sentido: o da valorização e do orgulho de quem suporta nas costas, nos músculos do corpo, na inteligência do cérebro e na potência da subjetividade a base da cadeia produtiva de reciclagem no Brasil. Por mais que vivenciem inúmeras dificuldades e precariedades, estão se movendo na direção de um futuro no qual interferem cada vez mais. Toda a sociedade precisa engajar-se nesse processo e apoiar essa importante e valorosa categoria profissional. Originalmente disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/ ambiente/noticia/2018/08/pela-dignidade-dos-catadores-cjkvjirb 301qz01n0stat6mcr.html.

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 29 JORNAL JÁ Agora, segue uma sequência de textos da coluna que mantive por cerca de dois anos na versão eletrônica do Jornal Já, tradicional veículo da imprensa alternativa em Porto Alegre-RS. Eu e Jean, Jean e eu, ou: As trajetórias de vida e a (im) possibilidade de desenvolver uma cosmovisão críticoreflexiva (03/05/2016) Eu perguntava a mim mesma… de onde vem essa identificação incrível que tenho com o [deputado federal] Jean Wyllys? Tudo foi diferente em nossas vidas, pelo menos até a fase adulta. Ele homem, eu mulher. Ele gay, eu hétero. Ele de Alagoinhas na Bahia, eu de Porto Alegre das plagas gaúchas, mais próxima culturalmente de Uruguai e Argentina do que do resto do país. Ele de origem pobre e periférica, eu de classe média, filha de médico e professora universitária. Ele passou fome, eu sempre desfrutei de uma boa alimentação, sendo costumeiramente a fome resolvida assim que surgia. Mas eu me sentia quase que irmanada a ele, sentia uma identificação enorme. Ele falava e parecia que eumesma estava a emitir uma opinião, de tão parecido que pensávamos o mundo e a política! A idade é próxima, nasci no final dos anos sessenta e ele no início dos setenta. Mas eu não entendia muito bem aquela semelhança das visões de mundo, até que li seu livro TEMPO BOM TEMPO RUIM – Identidades, políticas e afetos (Cia. das Letras, 2013). Aí comecei a identificar as semelhanças ocultas a um olhar mais superficial. Tivemos em casa uma formação religiosa católica, o que nos aproximou da Teologia da Libertação; estudamos numa escola pública de qualidade, que nos deu uma formação laica, humanista e politizada, eu no Colégio de Aplicação da UFRGS, tendo feito um “vestibular” aos dez anos de idade para ingressar, ele com bolsa de estudos na Fundação José Carvalho, entidade filantrópica que oferecia um ensino

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 30 técnico de excelência aos poucos escolhidos em uma rigorosa seleção de candidatos. Outra semelhança: bem antes da época, ambos enfrentamos um processo seletivo concorrido e difícil, tipo “vestibular”! Alguns anos após a data que ingressei, em 1978, o processo seletivo foi substituído por sorteio no Colégio de Aplicação, que apesar de público era de elite na época, justamente pela forma de ingresso. Ela reproduzia a mesma injustiça da universidade pública, sendo agora seu corpo discente bastante variado em termos de origem de classe. Quanto à escola de Jean, segundo informações do site da instituição, existe hoje o projeto “Garipando Talentos”, criado há três anos, que tem o objetivo de selecionar e preparar jovens de 8ª série das escolas públicas domunicípio de Pojuca para o ingresso no Colégio Técnico da Fundação José Carvalho (FJC). Percebi que o modo como construímos uma visão de mundo semelhante, eu e Jean, vinha do fato de ambos termos experimentado na educação familiar o melhor da tradição comunitária cristã – os valores da solidariedade, do poder do perdão como reconstrutor de humanidades e vínculos, da comunidade como melhor forma de vida – minha mãe costumava nos repreender com a frase “colabora com a comunidade!”, quando eu e meus irmãos agíamos de forma egoísta. Por outro lado, tivemos acesso a um ensino público laico e de excelente qualidade. No Colégio de Aplicação, tudo era calcado na noção de “liberdade com responsabilidade”, estimulava-se sempre a leitura e discussão crítica dos conteúdos trabalhados em aula, fazendo-nos compreender em profundidade o que era a justiça, e a crer, sobretudo, na sua efetivação pelos humanos em vida, corroborando com a teologia da libertação e evitando possíveis armadilhas da ética humanista cristã. Esta tem lá seus muitos aspectos contraditórios..., basta ver a “dificuldade” da Igreja com a homossexualidade, os direitos reprodutivos das mulheres etc. Com o Papa Francisco, parecem piscar algumas luzes no fim do túnel, mas a igreja católica continua sendo majoritariamente conservadora. Aprendemos o que significava a opressão ao longo do processo civilizatório e sobre as contradições e ambiguidades desse. No Colégio de Aplicação tínhamos professores vindos

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 31 das ditaduras vizinhas, acolhidos pela universidade federal para uma readaptação laboral no exílio. Acessando a memória afetiva, recordo aqui o querido professor Fructuoso Rivera, que chegou do Uruguai sem falar português e foi dar aula para trinta agitados pré-adolescentes (coitado!), a quem chamávamos de “Gardelón” devido a um personagem humorístico da época, interpretado por Jô Soares. Dele temos uma lembrança preciosa: no dia de seu aniversário ganhou de presente umpequeno bolo inglês do tipo que se vendia nos bares estudantis. Pegou um canivete e dividiu-o em 16 minúsculas fatias, para que todos ali presentes ganhassem um fragmento, ensinando que o certo é não ficar ninguém de fora, nunca. Discutíamos e participávamos muito nas aulas de história, sempre em forma de debate crítico, enquanto meus amigos de escolas privadas de classe média decoravam datas e fatos da historiografia convencional – aquela dos “vencedores” que escreveram as narrativas, carregadas da colonialidade do poder/saber e suas muitas distorções. Tínhamos aula de teatro, música e artes plásticas, além de dois anos de francês ou alemão, à escolha. Nas aulas de biologia, também discutíamos sexualidade e livre expressão do desejo, acreditem? Com a professora de ciências Maria Lúcia, linda e queridíssima, lá por 1981. Numa educação de excelência, é mais importante levar o/a estudante a pensar com independência e criticidade do que fazê-lo/a ter condições de “competir” no mercado de trabalho e “subir na vida” para além de seus competidores, isto é, o resto do mundo. Percebe-se que cada vez mais uma educação formal voltada obcecadamente para o “mercado” – uma posição vantajosa neste seria o que realmente importa – impede-se o desenvolvimento, nos estudantes, de uma formação crítico-reflexiva, plural, questionadora e que produza sujeitos capazes de indignação perante injustiças e desigualdades inaceitáveis. Mas isso tudo é para dizer que, para desenvolver uma cosmovisão crítica e reflexiva, precisamos ter experiências que alimentem/enriqueçam aspectos sociais, políticos, cognitivos, intelectuais, artísticos, emocionais e afetivos da nos-

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 32 sa subjetividade. E que isso independe de classe social ou das trajetórias de vida distintas que eventualmente tivermos, embora possamos dizer que o menino Jean teve uma boa dose de sorte também, para além de seus muitos méritos. O sociólogo Jessé de Souza, baseando-se nas ideias de Pierre Bordieu, afirma que a reprodução das desigualdades e injustiças vem “de berço”, da obtenção ou não de capitais simbólicos importantes para a vida em sociedade: uma criança pobre que é desde muito cedo expulsa da escola para trabalhar precariamente não desenvolve as qualidades necessárias para ter sucesso na vida acadêmica e profissional, tais como disciplina, capacidade de concentração e simbolização, raciocínio abstrato etc. E não porque haja algo errado com ela, mas porque não tem em casa uma mãe que lê jornais e livros e fala francês, ou não vê o tio falando inglês, ou não tem um pai médico tratando de suas doenças infantis em casa mesmo, ajudando a preveni-las, ou um irmão que ajuda nos estudos; não viaja ao exterior, não vai ao cinema, teatros e museus, não temmuito tempo disponível para estudar, não tem livros à disposição. Não teve o “treino” de passar horas em sala de aula, concentrada e focada em atividades intelectuais. Depois de adulto/a, ou aindamuito jovem, passa a trabalhar em atividades precárias e mal pagas, como serviços domésticos ou gerais, proporcionando ainda mais tempo aos sujeitos da classe média para estudarem e se qualificarem, galgandomelhores cargos e ganhandomais, enquanto eles permanecerão no mesmo emprego por falta de condições de aperfeiçoamento pessoal. Então as condições concretas de existência determinam muito mais os modos de vida de cada um/a de nós – apesar de não haver determinações absolutas – do que o simples esforço individual, ou méritos pessoais. A falácia da meritocracia constrói, contudo, uma representação social bastante difundida da pobreza como demérito e da riqueza como mérito. Nada mais enganador e reprodutor de injustiças e desigualdades. Meritocracia é um conceito que serve bem, por exemplo, no momento da composição de uma equipe econômica, ou para a formação de um ministério de Estado… A escolha e a indicação, nesses casos, devem ser por mérito, pela excelência demonstrada pelo/a indicado/a para

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 33 ocupar aquela posição (tudo, aliás, o que não estamos vendo agora, nesse governo interino [de Michel Temer] que assumiu ilegitimamente, a meu ver). Nas situações de ingresso e posição no mundo escolar e laboral, ou do julgamento de indivíduos comuns de diferentes origens, ele pouco ajuda e ainda atrapalha muito a visão clara sobre os modos de reprodução das desigualdades de classe, gênero, raça/etnia etc. A vergonha pelo fracasso dos desfavorecidos, inculcada neles desde cedo pela sociedade de entorno, também contribui para que persista o imoral abismo social, além de ser uma perversão/crueldade institucionalizada e amplamente aceita. O “esforço pessoal” e a “vocação” – tidos como causas do sucesso ou fracasso, – não são as únicas nem as principais causas de resultados obtidos na vida dos cidadãos/ãs, em situações de alta desigualdade. Há processos de estratificação social, complexos e multicausais, a serem considerados. Mas o senso comum não costuma querer saber disso, na sua tendência a enxergar os pobres como preguiçosos e não possuidores de qualidades morais positivas. A desigualdade socioeconômica não é merecida, não é causada por fatores individuais e sim de reprodução social, através de decisões políticas e econômicas, tomadas por grandes agentes com poder institucional, que afetam milhões de pessoas. Assim como as violências de que a mulher é vítima – estamos todos impactados pelo estupro coletivo havido na semana passada – não são culpa de seu comportamento, mas sim de séculos de patriarcado operando e formando uma densa camada subjetiva de machismo em boa parte dos homens (e em boa parte das mulheres). Não falta quem ache, em ambos os sexos e em todos os gêneros, que a culpa pela pobreza e vulnerabilidade é do pobre e a culpa do estupro é da mulher, que de algummodo “provocou” ou “permitiu”. Assim que voltamos à educação e seu potencial de formar reflexão crítica. Mais do que nunca precisamos de debates em sala de aula, sobre relações de gênero, sobre pobreza e desigualdades, sobre estratificação social, porque tudo é política, inclusive a ciência. O modo como queremos viver nossas vidas, o que consideramos uma boa sociedade, faz parte de

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 34 umprojeto político, de umprojeto de vida, que envolve instâncias coletivas, institucionais, grupais, culturais e individuais. Refere-se, amplo modo, ao que queremos para o mundo em que vivemos e o que queremos para nós e os que nos rodeiam. Ao reduzirmos a noção de política à sua dimensão partidária ou mesmo institucional, ela se esvazia de sentido e ainda ganha, no senso comum, uma conotação negativa ligada à corrupção. Esta geralmente tem agentes do mercado envolvidos, o que costuma ser cuidadosamente ocultado; portanto, é preciso politizar a educação, no melhor sentido em que concebo o termo: torná-la veículo de problematização e troca de ideias em todas as dimensões da existência humana e planetária. Projetos como o tal “Escola sem partido” – que parte da mais torpe e equivocada concepção da política –, se aprovados, irão decretar o descalabro do sistema educativo no Brasil, já tão debilitado. E impedirão que Jeans e Marílias, independente da origem de classe – ou de cor, de sexo, de orientação sexual e de identidade de gênero, – possam eventualmente vir a experimentar formas de empatia que sirvam para construir pontes, identificações e diálogos mundo afora, ampliando e pluralizando formas de subjetividade social (e consequentemente de vida) crítico-reflexivas. Originalmente disponível em: https://www.jornalja.com.br/arquivo/ eu-e-jean-jean-e-eu-ou/ As múltiplas desigualdades e sua reprodução: seremos mesmo o “lobo” uns dos outros? (22/08/2016) Costumamos ignorar, ou não dar a devida atenção, às desigualdades – grandes/estruturais ou pequenas/cotidianas –, que presenciamos constantemente e que fazem nossas sociedades injustas e indignas. A norma sob a qual vivemos é branca, cis (identidade sexual igual à designada ao nascer), heterossexual, masculina e rica/classe média, adulta (mas jovem), “saudável” e sem deficiências. O que acontece com quem não preenche tais requisitos? Negros, índios, mestiços, gays/lésbi-

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 35 cas, transgêneros e travestis, pobres, periféricos, portadores de alguma deficiência, crianças e velhos? Bom, esses terão muito mais chance de experimentar as agruras de uma sociedade estruturalmente injusta, cindida entre quem é plenamente cidadão e quem não é; quem acessa as benesses da civilização e quem fica de fora. Tendem a ser expulsos – ou nem sequer incluídos – do contrato social. Esse pacto foi o que fundou o Estado moderno, com o objetivo de organizar a sociedade numa forma viável, pacífica e justa de vida coletiva, na qual o mais forte não esmagasse o mais frágil. Nas aulas sobre contratualismo, quando eu “testava” meus alun@s do curso de economia para ver quem era mais hobbesiano oumais rousseauniano, sempre havia quemachasse que o homem é mesmo o lobo do homem e não tem jeito. Thomas Hobbes postulava que a natureza humana era violenta e todos se matariam uns aos outros, caso o Estado não centralizasse o poder e terminasse de uma vez com a bagaça, ficando conhecido pela expressão “o homem é o lobo do homem”. Já Jean Jacques Rousseau acreditava numa natureza humana pacífica e bondosa, mas achava que a ganância por acumular mais do que o semelhante corrompia o homem, vivendo em sociedade emregime de propriedade privada. Nesse caso, caberia ao Estado garantir a justiça e a igualdade entre os humanoides. “Deixa a Bangu pra ver o que acontece!” disse um aluno uma vez, certo do caos completo e aniquilação geral sema repressão do Estado. Em gradientes variáveis, cada um/a deles/as tinha uma posição, mais próxima ao pessimismo de Hobbes ou ao otimismo de Rousseau, em relação à natureza humana. “Poderemos viver juntos?”, perguntava-se o sociólogo Alain Touraine. Seremos mesmo os piores inimigos uns dos outros? Iguais, mas diferentes; juntos, mas separados. “O inferno são os outros”, já dizia o existencialista Sartre. Esse tema foi e é objeto das mais variadas interpretações e mais apaixonadas impressões. Conforme se combinem as vulnerabilidades citadas anteriormente, a situação pode ficarmais difícil para o sujeito em sociedade. Se for mulher, pobre e negra, os piores trabalhos e as menores remunerações serão as delas (conforme mostra a

É a minha opinião! Textos em veículos midiáticos 36 pesquisa do IPEA1). Se for travesti, ou preto e periférico, a expectativa de vida é bem menor do que a média da população em geral. Se for negro, pobre, gay e morador de rua… melhor seria fugir para as montanhas e viver de mel silvestre e gafanhotos, como aquele cara cabeludo que viveu há uns dois mil anos atrás e mandou todo mundo se amar e viver solidariamente, sem julgar ninguém (alguns não souberam interpretar sua mensagem – ou são mesmo muito canalhas e manipuladores – e preferem entender que ele mandou “dar pancada em gay”, estimulando violência e ódio). A chamada Constituição Cidadã de 1988 visou incluir mais gente no contrato ou pacto social. Aquela combinação que diz assim, “Olha, pra viver pacificamente em sociedade tem de ter maior igualdade, mais gente deve ser incluída nas benesses da civilização, nessa invenção moderna chamada cidadania”. O direito a ter direitos, individuais e coletivos. O direito a sair da condição de “inferioridade” produzida e legitimada, de não mais vivenciar conflitos sociais que causam privações, dor, sofrimento e humilhação cotidiana, aquilo que a psicóloga social Bader Sawaia chama de “sofrimento ético-político”. Agora que o projeto democrático-constitucional iniciado em 1988 está sob forte e virulento ataque, corremos o risco de aprofundar ainda mais as desigualdades, e não somente mantê-las intocadas (o que já seria terrível). No que consistia esse projeto? Na ampliação da democracia, dos direitos sociais, da participação popular, através de comitês, conselhos, mecanismos pluripartites de gestão das políticas públicas e universalização de direitos como saúde e educação básica. Os direitos sociais, econômicos e culturais são aqueles vinculados ao trabalho e renda, à educação e à saúde, chamados direitos de segunda geração, ligados à ideia de igualdade. A primeira geração de direitos, ligada à ideia de liberdade, refere-se ao direito de ir e vir, votar e ser votado, não ser preso arbitrariamente… e a terceira geração, ligada à ideia de fraternidade, são os direitos ao meio ambiente saudável, à autodeterminação dos povos, patrimônio comum da humanidade e livre comunicação. Liberté, egalité, fraternité! Ideias liberais ilu1 http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf

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